O que a história nos ensina sobre as consequências econômicas de grandes epidemias como a peste

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17 Março 2020

Séculos atrás, os navios eram obrigados a guardar quarentenas nos portos durante as pragas para impedir sua propagação pelas cidades costeiras. Agora, são proibidos os voos da Itália para Espanha e para os Estados Unidos da Europa. O coronavírus é incomparavelmente menos letal que a peste negra, que devastou o mundo em várias ondas, sobretudo entre os séculos XIV e XVIII, acabando com a vida de cerca de 100 milhões de pessoas na Europa, África e Ásia (entre 25 e 60% da população europeia, segundo estimativas).

A reportagem é de Mariana Estévez Torreblanca, publicada por El Diario, 15-03-2020. A tradução é do Cepat.

Os contextos históricos e de desenvolvimento científico também são muito diferentes, mas, com todas as distâncias e sem a possibilidade de fazer uma comparação direta, ambas são epidemias e podem compartilhar certas características sociológicas e econômicas comuns, que também se encontram em outras grandes crises de saúde como a gripe de 1918, explica a professora de História Econômica, da Universidade Autônoma de Barcelona, Carmen Sarasúa.

Os efeitos da pandemia de coronavírus são impossíveis de estimar em sua totalidade enquanto ainda se está imerso nesta crise. Mas se espera que o impacto econômico a curto e médio prazo seja muito alto: os sistemas de transporte e abastecimento são interrompidos e a produção cai em muitos setores, além da demanda. E, ao cair a demanda, conforme explicava Keynes após a Depressão de 1929, diminui o emprego e a renda familiar cai, o que aumenta ainda mais o desemprego (além da arrecadação de impostos, a renda que o Estado tem para financiar serviços públicos).

No caso da peste negra, essa epidemia supôs mudanças importantíssimas na economia e um fortíssimo retrocesso, o colapso da população levou cem anos para se recuperar. “O comércio desapareceu, as cidades caíram, as pessoas foram para os campos, morreram reis, atingiu todos os estratos sociais”, expõe em uma entrevista Pedro Gargantilla, professor de História da Medicina, na Universidade Francisco de Vitória, e chefe de Medicina Interna do Hospital de El Escorial (Madri).

A curto prazo, as consequências econômicas mais relevantes da chamada peste bubônica, originada no deserto de Gobi, podem ser resumidas no fato de que os campos foram deixados sem trabalho e as colheitas apodreceram. Isso levou à escassez de produtos agrícolas, monopolizados apenas por aqueles que podiam pagar por eles. Os preços subiram, então aumentaram as dificuldades e o sofrimento dos menos abastados.

“Não há dúvida de que essa epidemia produziu efeitos econômicos que levaram à recessão mais drástica da História. É relevante notar que é neste momento, com clara influência da epidemia da peste, quando se põe fim à construção massiva de mosteiros, igrejas e catedrais. Por todas essas razões, pode-se dizer que é a razão do fechamento do período medieval”, enfatiza uma publicação de BBVA.

A fome, a peste e a guerra que marcaram o século XIV acabaram transformando a sociedade e disparando as desigualdades. Os poderosos aumentaram seu poder e riqueza, e as pessoas comuns ficaram mais empobrecidas e perderam alguns direitos das gerações anteriores, conforme explica o artigo De la peste negra al coronavírus [Publicado por El Diario, em 03-02-2020].

Mas quando se fala dos efeitos econômicos da peste negra que assolou a Europa, em meados do século XIV, apesar de seu início devastador, os historiadores concordam em apontar outros efeitos econômicos e sociais positivos para os sobreviventes. Como explica Carmen Sarasúa, “a terra era abundante, ao cair a oferta de trabalho, os salários aumentaram, e foi visto, por exemplo, que as mulheres encontraram muito mais oportunidades de emprego nas associações que até então as vetavam, nas jornadas agrícolas, etc.”. Efeitos que também foram observados após picos de mortalidade, como os que ocorrem nas guerras, embora não aliviem, nem compensem a devastação econômica e social e a perda de vidas iniciais.

Além disso, as epidemias serviram para introduzir melhorias na saúde pública que pretendem reduzir o risco das aglomerações urbanas. No caso das ondas de peste, acabaram favorecendo a coleta de lixo e esgoto, a regulamentação da presença de animais vivos e mortos, e a construção de cemitérios fora das áreas urbanas e a obrigação de lavar igrejas (após a promulgação da Real Cédula Carlos III, em 1787).

Consequências de outras epidemias

Outra epidemia que afundou a economia foi a gripe de 1918 (chamada de gripe “espanhola” por ser um dos primeiros países em que foi relatada, por ser estranha à guerra), que causou mais mortes do que a Primeira Guerra Mundial (umas 50 milhões de acordo com as estimativas). Entre a doença e a guerra, a atividade econômica afundou e houve mudanças nos movimentos migratórios, embora seja difícil discernir quanto do colapso da economia pode ser atribuído a cada fenômeno.

Surtos infecciosos mais recentes, incluindo medos de alguns relativamente contidos, afetaram o comércio nas últimas décadas. Por exemplo, a proibição da União Europeia de exportar carne bovina britânica durou dez anos devido a um surto de doença da vaca louca no Reino Unido, embora a transmissão aos seres humanos seja relativamente limitada.

Além disso, algumas epidemias prolongadas, como o HIV e a malária, desencorajam o investimento estrangeiro direto. Um relatório do Fundo Monetário Internacional sobre epidemias estima o custo anual esperado da gripe pandêmica em cerca de 500 bilhões de dólares (0,6% da renda mundial), incluindo a perda de renda e o custo intrínseco do aumento da mortalidade.

E embora o efeito na saúde de um surto seja relativamente limitado, suas consequências econômicas podem se multiplicar rapidamente. Por exemplo, a Libéria sofreu uma redução de 8 pontos percentuais no crescimento do PIB, entre 2013 e 2014, durante o surto de Ebola na África Ocidental, apesar da baixa taxa geral de mortes no país durante esse período.

Vencedores e perdedores das epidemias

Os efeitos de surtos e epidemias não são distribuídos equitativamente na economia. Alguns setores podem até se beneficiar financeiramente, enquanto outros sofrerão excessivamente. Os farmacêuticos que produzem vacinas, antibióticos e outros produtos necessários para a resposta ao surto são potenciais beneficiários.

Como explica Sarasúa, em todas as situações existem setores econômicos que se beneficiam. Quando há uma demanda excepcional por determinados bens e serviços, os setores que os fornecem “obtêm bons lucros” (pode ser o caso de máscaras e alimentos básicos atualmente na Espanha), enquanto os que fornecem bens e serviços que deixamos consumir e aqueles que são afetados pela interrupção de componentes e matérias-primas se afundam.

Mas a desigualdade também se reflete em doenças e na mortalidade. Nesse momento, uma das grandes causas de desigualdade no impacto de uma epidemia é o acesso aos cuidados médicos. Nos países que carecem de sistemas públicos de assistência médica universal, onde é preciso pagar os diagnósticos, os tratamentos e a hospitalização (no caso dos Estados Unidos), o nível de renda será determinante.

A literatura como fonte histórica sobre as pandemias

A professora se lembra de três obras literárias que são fontes históricas de grande valor sobre epidemias: Decameron, de Boccaccio, descreve a peste que atingiu Florença, em 1348, Um Diário do Ano da Peste, escrito por Daniel Defoe, em 1722, que narra a epidemia de peste que Londres sofreu, em 1665, que matou um quinto da população. E Manzoni, em Os noivos, relata a peste de Milão, em 1628.

“As três nos falam sobre o medo, sobre como a sociedade enfrenta a morte em massa e inesperada, alguns procurando culpados e acusando certos grupos e indivíduos, recorrendo à magia e à religião... outros tentando entender as causas científicas do que acontece, buscando soluções racionais e cívicas que fazem a sociedade avançar e aliviam os efeitos econômicos adversos dessas crises”, conclui Sarasúa.

 

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