06 Janeiro 2025
Hoje nos deparamos com uma realidade na qual os direitos humanos já há vários anos estão em uma condição extremamente deteriorada, em sintonia com o enfraquecimento das democracias.
Isso se deve não apenas aos conflitos em andamento, mas também a um novo elemento: neste século, estão surgindo novas potências, como a China e a Índia, para as quais os direitos humanos estavam baseados em valores ocidentais, aos quais acrescentar ou contrapor valores asiáticos. Desde a década de 1990, e especialmente neste século, os conflitos se tornaram, em sua maioria, conflitos civis, ou seja, guerras dentro de um único país. Quanto à questão do genocídio, só existe com certeza quando um tribunal o estabelece. Enquanto isso, o que devemos tentar fazer imediatamente é ajudar de todas as formas, políticas, diplomáticas e até militares, quando necessário, a evitar crimes que não são apenas de genocídio, mas crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Crimes que são tão graves quanto os de genocídio, enquanto existe a ideia de que quando se fala de genocídio, está se referindo à pior situação, à mais terrível; por outro lado, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade são deixados de lado como se fossem algo aceitável.
Direitos humanos, a ferida aberta no mundo.
O L'Unità discute o assunto com um dos historiadores italianos mais reconhecidos: Marcello Flores. O professor Flores lecionou História Comparada e História dos Direitos Humanos na Universidade de Siena, onde também dirigiu o Mestrado Europeu em Direitos Humanos e Estudos de Genocídio. Entre livros recordamos: La forza del mito. La Rivoluzione russa e il miraggio del socialismo (Feltrinelli, 2017), Il secolo del tradimento. Da Mata Hari a Snowden 1914-2014, (il Mulino, 2017), Il genocidio degli armeni (il Mulino, nuova ed. 2015), Traditori. Una storia politica e culturale (il Mulino, 2015), Storia dei diritti umani (il Mulino, nova ed. 2012), Il genocidio (Il Mulino, 2021).
A entrevista com Marcello Flores é de Umberto De Giovannangeli, publicada por ‘l'Unità’, 03-01-2025. A tradução é de Luisa Rabonlini.
Professor Flores, 2024 deixa ao novo ano que acaba de entrar um mundo mais “desumanizado”?
Certamente estamos diante de uma realidade de direitos humanos que não só no último ano, mas já há vários anos, vem se agravando extremamente, em sintonia com o enfraquecimento das democracias. Um enfraquecimento que os principais institutos que avaliam o nível de democracia no mundo avaliam que existe há pelo menos dez ou quinze anos. Os dois aspectos estão interconectados. Em particular, além disso, vivendo em um período de guerras e conflitos mais intensos do que no passado, especialmente em torno dos dois conflitos mais graves, o da Ucrânia e o que agora afeta grande parte do Oriente Médio, em cada conflito as violações dos direitos humanos se tornam extremamente contínuas e violentas, como testemunham numerosas e documentadas investigações, tanto jornalísticas quanto judiciais, que apontam para um aumento dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade. Essa é a situação geral com relação aos direitos humanos; uma situação que só podemos julgar de forma negativa e com preocupação. E, inclusive, há uma consideração mais fundamental que valeria a pena fazer....
O senhor tem a palavra, professor Flores.
Além dos conflitos em andamento, essa degradação do respeito aos direitos humanos é dada por um novo elemento. Neste século, mas já havia sinais na década de 1990, surgiram novas potências, como a China e a Índia, para as quais os direitos humanos eram baseados em valores ocidentais aos quais acrescentar e muitas vezes contrapor valores asiáticos, o que, para resumir, marcavam a atenção para os direitos coletivos em detrimento dos direitos individuais, típicos do Ocidente.
Esse tipo de raciocínio levou, neste século, ao fato de que países ditatoriais ou autoritários, de tipo diferente, a China ditatorial e a Índia, uma democracia com tendências autoritárias, desenvolveram, como outros países da Ásia e, em parte, da África, uma ideia nacionalista dos direitos humanos, ou seja, a ideia de que os direitos humanos estão vinculados à história de cada país e, portanto, não podem ser universais de forma geral, pois conhecem diferentes etapas.
Isso justificaria o fato de que alguns direitos, considerados universais pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, serem, para os países a que me referi anteriormente, direitos que podem ser congelados, deixados de lado, pois será o progresso e a história de cada país que os fará emergir se e quando necessário. Uma situação que enfraquece muito a visão geral e global dos direitos humanos que existe no mundo.
Antigamente, os direitos humanos dos civis também eram contemplados por convenções de guerra, como a Convenção de Genebra, apenas para citar a mais conhecida. Você não acha que, nas guerras de hoje, o inimigo é desumanizado e não se faz diferença se ele usa uniforme militar ou é um civil, mesmo uma mulher ou uma criança?
A condenação de crimes de guerra, que dizem respeito principalmente a civis, mas também se estendem ao tratamento particularmente violento e injusto de feridos e prisioneiros, foi questionada em todo o mundo já no final dos anos 1800, durante o 1900, pelas primeiras Convenções de Haia e depois nas Convenções de Genebra de 1949 e nos dois protocolos adicionais de 1977, que esmiuçaram o assunto de forma cada vez mais explícita.
Isso não impediu que, durante todo esse tempo, também houvesse violações cometidas por praticamente todos os que entraram na guerra, tanto por aqueles que a iniciavam – estamos pensando na Primeira Guerra Mundial, a Áustria e a Alemanha, ou na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista - como também por aqueles que respondiam defendendo-se, estamos nos referindo aos bombardeios devastadores dos Aliados na Alemanha e no Japão e nas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Após a Segunda Guerra Mundial, com as convenções de 1949 e os acréscimos de 1977, tentou-se criar um discurso que fosse válido para todos.
Com que resultados, professor Flores?
Bem, se pensarmos não apenas na guerra do Vietnã, mas nas muitas guerras que ocorreram nas últimas décadas, essa realidade jurídica deixou a desejar, embora houvesse a consciência de que estavam sendo cometidas ações que eram impedidas pelo direito internacional.
O que mudou é que, a partir da década de 1990 e especialmente neste século, os conflitos se tornaram, em sua grande maioria, conflitos civis, ou seja, guerras dentro de um único país, embora muitas vezes apoiadas por outros Estados que os patrocinam e ajudam, o que fez com que o número de vítimas civis aumentasse cada vez mais. A guerra civil, por si só, cria essa alternativa de viver ou morrer, do inimigo absoluto, que depois se traduz, de alguma forma, nas guerras mais tradicionais, como a invasão da Ucrânia pela Rússia, de modo que, atualmente, a atitude dos ucranianos não apenas em relação ao governo russo, mas, de modo mais geral, em relação aos russos, é uma atitude de hostilidade, o que torna extremamente difícil supor em um futuro próximo um relacionamento conciliatório entre os dois povos.
Sem mencionar a situação caótica no Oriente Médio, um teatro de conflito no qual os atores envolvidos e contrapostos são ainda mais numerosos que no front russo-ucraniano.
Professor Flores, você escreveu livros importantes sobre um tema extraordinariamente sensível e atual: genocídio. Pode nos ajudar a entender melhor a essência da questão que está gerando polêmicas sem fim?
A coisa mais simples que poderia ser dita sobre genocídio é que o genocídio existe quando há um tribunal que estabelece sua existência.
E isso, infelizmente, sempre acontece depois que o genocídio já foi consumado. Há momentos em que os tribunais internacionais, como, por exemplo aconteceu com o Tribunal Internacional de Justiça em Haia, falam de um possível perigo futuro de genocídio e alertam sobre esse risco. Isso, no entanto, na propaganda política e ideológica, que especialmente em torno de Gaza alcançou níveis de absoluta falta de racionalidade e bom senso, fez com que essa atenção em evitar o genocídio fosse vista como uma condenação de genocídio, de modo que, o coloca em discussão, não acredita nos direitos humanos e no direito internacional, ou vice-versa, por parte de Israel, se acusa quem aponta a existência de atos genocidas de ser antissemita. Essa é a lógica destrutiva da qual não se consegue sair. O problema é começar a entender que, nesse meio tempo, não somos nós que podemos decidir se há genocídio ou não. O que deveríamos tentar fazer é ajudar de todas as formas, políticas, diplomáticas e até militares, quando necessário, a evitar crimes que não são apenas de genocídio, mas crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Crimes que são tão graves quanto os de genocídio, enquanto existe a ideia de que quando se fala de genocídio, está se referindo à pior situação, à mais terrível; por outro lado, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade são deixados de lado como se fossem algo aceitável, algo que está fora da lógica, da história de qualquer possibilidade de raciocínio sensato.
Mas não acha, professor Flores, que os Estados também têm uma grande responsabilidade quando, em acordos bilaterais, a questão do respeito aos direitos humanos não é mencionada ou é posta no rodapé, como um acessório que pode ser dispensado? Basta pensar no Mediterrâneo, onde a Itália e a Europa buscam e apoiam autocratas e ditadores que são solicitados a fazer o trabalho sujo, a repatriação de migrantes, em nosso lugar.
Na maioria das vezes, esse é o caso. Todos os álibis sumiram. Veja, antes, costumávamos nos entrincheirar atrás do esquema da Guerra Fria, atribuindo principalmente às duas superpotências, a União Soviética e os Estados Unidos da América, as principais violações dos direitos humanos, enquanto os países dentro dos dois campos se consideravam de alguma forma vítimas e alegavam que queriam lutar pelos direitos humanos. Hoje, esse esquema não se sustenta mais. Não se sustenta mais em um mundo cada vez mais multipolar, que é assim não porque existem muitas grandes potências, mas porque, além das poucas grandes potências, há potências de médio porte que têm cada vez mais autonomia e capacidade de influenciar autonomamente o curso dos acontecimentos. Vamos pensar, por exemplo, como Israel se moveu em relação aos Estados Unidos, que é seu principal aliado. Essa realidade significa que cada país escolhe um falso realismo no qual coloca suas relações de interesse em primeiro lugar, especialmente com os países aos quais está mais intimamente ligado em termos de economia e comércio, tomando cuidado para não levantar questões, muito menos restrições, relacionadas aos direitos humanos.
São pouquíssimos os chefes de Estado ou de governo que, quando vão à China, lembram Xi Jinping da realidade de Xinjiang ou da perseguição aos uigures. Isso para evitar ter que pagar algum preço no plano econômico. O problema, o desafio de civilização que devemos conduzir, é a reconstrução de um clima cultural e político que não apenas estabeleça as bases para um novo equilíbrio internacional mais avançado do que aquele que fracassou nos últimos anos, mas que também levante novamente a questão da centralidade dos direitos humanos em uma globalização que, em nome de interesses econômicos tornados absolutos, desdenhou esses direitos.
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“Os crimes contra a humanidade em Gaza não são menos graves do que um genocídio”. Entrevista com Marcello Flores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU