01 Junho 2024
"Como hoje, a Guerra Fria era mais fria do que nunca. Por isso. O Vietnã e agora a Ucrânia, pareciam o lugar mais adequado para tornar a força credível", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 29-05-2024.
Aqui está: a palavrinha foi falada: instrutores, conselheiros, boinas verdes. Parece uma palavra inofensiva. Em vez disso, lembrem-se desta data, 27 de maio. Porque quando a guerra, aquela grande, e não aquela cômoda por procuração ou confortavelmente não beligerante, se intensificar, vocês poderão começar disso para refletir com consternação sobre como começou para nós também. Infelizmente não nos ajudará a sofrer menos.
Dois anos foram desperdiçados para se acertar com as inverossímeis (mas utilíssimos, para eles, os arautos da Vitória Certa) comparações históricas com 1939 e a Segunda Guerra Mundial: Putin como Hitler quer conquistar o nosso mundo, Ucrânia como Polônia, riscos mortais de uma nova Munique se forem ouvidos os vis pacifistas etc., etc.. Como construir uma homeopática descida ao inferno, um Baedeker de guerra total, escrito, claro e distinto, no Vietnã dos anos 1960.
No entanto, tentem negar que aqueles eram tempos emocionantes. Muito diferentes daqueles das lentas digestões biderianas para o qual basta uma prosa simples. Os EUA, e com eles o Ocidente, finalmente tinham como líderes homens brilhantes e enérgicos, não cruéis e não fanáticos, tinham assumido o comando com ousadia, dinâmicos, rápidos e confiantes. Porque não havia mais tempo para esperar, a História nos momentos cruciais não concede tais luxos. Caso se hesite, se pense demais, o mundo, aquele inimigo, avança sem a gente. Sim, houve erros, Cuba, também então; como hoje, Afeganistão, Iraque. Mas, afinal, nada de muito importante, nada de muito grave: um vidro quebrado por uma pedrada, como brincava uma das cabeças-duras kennedianas. Sim: um vidro quebrado. Mas aquela sensação de terem se tronado vulneráveis, não era fácil de eliminar.
Como hoje, a Guerra Fria era mais fria do que nunca. Por isso. O Vietnã e agora a Ucrânia, pareciam o lugar mais adequado para tornar a força credível.
Tudo começou exatamente assim, com o envio dos instrutores militares para Saigon. Hoje muitos o estão anunciando, o furor galicano de Macron na linha de frente. O todo está camuflado com filosofismos xaroposos, minimalistas e fáceis de usar: o que muda, afinal? Foi apenas uma forma de se livrar do incômodo e longo processo de transferir os discípulos, os soldados ucranianos, para a Inglaterra ou a Polônia para os treinar com as novas armas decisivas, que acabarão num instante com a guerra.
O governo Kennedy não percebeu uma verdade muito antiga: quando se começa a discutir o uso da força, os defensores da força estão sempre mais bem organizados, parecem mais numerosos e sabem utilizar a seu favor tanto as armas da lógica, quanto aquelas do medo.
Assim como a água se transforma em gelo, nestes dois anos de guerra a ideia de que a vitória ucraniana fosse possível sem nós acabou se cristalizando até se tornar uma realidade. Não porque fosse verdadeira, nunca o foi, nem mesmo no momento da retirada russa, no início da agressão. Mas porque se tornou real nas mentes de alguns líderes muito poderosos que viam nela enormes vantagens para o seu próprio poder e para consolidar um incerto futuro político. Então, o que nunca existiu e que desde o início pareceu imediatamente frágil e transitório, a vitória ucraniana e a rendição russa com o fim de Putin, foi transformado em algo sólido e estável.
Um país heroico com um exército formado por uma falange tebana que aprendia rapidamente e dispunha de sugestivas capacidades de bricolagem bélica, os drones caseiros, os aposentados com os coquetéis molotov capazes de repelir os tanques russos, generais brilhantes com aparência marcial... E acima de tudo ele, Zelensky, o Grande Encantador. Aquele que foi o líder sul-vietnamita Diem para dar corpo ao trágico erro estadunidense na década de 1960.
É o presidente-star ucraniano que conseguiu, mês após mês, uma imperceptível, mas substancial mudança, a ilusão de que bastassem munições e depois tanques e depois alguns mísseis e os F-16 e... vamos lá, preguiçosos, mais um esforço e pronto. Porque era a ideia de vitória que nos ligava cada vez mais a ele. Dessa forma os protetores começaram a ficar à mercê dos protegidos.
Biden, Macron e, um após o outro, também aqueles que pudicamente continuam a jurar: nunca um soldado na Ucrânia!, se deram conta e se darão conta, às suas custas, que lidar com o complexo militar, industrial (e financeiro), depois que conseguiu se inserir no mercado, é terrivelmente difícil, leva você aonde você não queria ir.
Os belicistas endinheirados, tanto democráticos como autocráticos, têm a ideia de dispor sempre de uma nova arma, de uma estratégia imbatível. A fé deles sobrevive há mais de dois anos apesar dos fatos demonstrarem cada vez mais a sua ineficácia. São crentes que convertem por utilidade ou por mediocridade, aos poucos, até mesmo os políticos. Assim, a diplomacia encosta-se agora silenciosa num canto, miserável e perdida como um chinelo no meio do Saara. Usando de uma maneira inescrupulosa bandos de especialistas não relutantes e às vezes macarthistas para fazer o exame em quem não demonstraria suficiente zelo ocidental, a vitória a todo custo contra "os mongóis" tornou-se o que a opinião pública ocidental, "o povo", quer. Porque essa "é a nossa guerra", não se pode deixar os ucranianos lutarem sozinhos. A primeira etapa são justamente os conselheiros militares.
Os civis continuam a iludir-se de que são eles que controlam a situação, enquanto os novos mastins da guerra, em ternos e uniformes alinhados, dia após dia asseguram a sua posição de cada vez mais amplo controle das decisões na escolha dos fins e na avaliação dos meios. Enquanto eu os políticos perdem terreno, um passo após o outro, sem sequer perceberem que estão perdendo. A mentira tornou-se realidade, os governos ocidentais estão presos nela. A sua política fracassou, mas não podem admitir isso. Porque seria o seu fim político. Talvez poderíamos batizá-la de extensão, em outro tabuleiro de xadrez, da síndrome de Netanyahu.
A ajuda militar aos arrozais da Indochina e nas estepes ucranianas não mudou nada, pelo contrário, vietcongues e russos ganham terreno. Então se explica que a culpa não é das decisões erradas, mas dos sul-vietnamitas e dos ucranianos que se deixam matar rápido demais, erram as contraofensivas, pedem continuamente e depois desperdiçam os presentes. Bastaria algum bom soldado ocidental para ensiná-los a combater melhor a guerra. Depois, quando o primeiro “conselheiro” for morto, porque isso vai acontecer, aí cada soldado morto ocidental acabará por se tornar mais uma razão para que outros morram na Ucrânia. Foi assim no Vietnã.
Quando Kennedy foi morto, “os instrutores” já eram dezesseis mil. Setenta haviam sido mortos. A guerra tinha se tornado infinita e já estava perdida.
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A deriva belicista dos líderes que lembra a Guerra do Vietnã. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU