18 Agosto 2021
“Se Pequim se envolver muito no Afeganistão, enviar muitas tropas e estabelecer uma presença forte, pode ser terrível porque a China pode ter de administrá-lo como os EUA e a Rússia tentaram fazer. Se a China se mantiver indiferente e se envolver muito pouco, o Talibã pode contaminar Xinjiang e os muçulmanos chineses. Um meio-termo é difícil, mas a China é muito inteligente e não pode ser subestimada”, opina Francesco Sisci, sinólogo italiano, em artigo publicado por Settimana News, 16-08-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A retirada das tropas ocidentais do Afeganistão provocou uma profunda reflexão no Ocidente. O que nós fizemos, o que nós estamos fazendo agora com a sofrida terra no coração da Eurásia?
Isso também mostra uma sombra sobre a escolha americana presente sobre a China. Se Washington estava errado no Afeganistão 20 anos atrás, poderia estar agora sobre o “Império do Meio” e sua confrontação?
Ainda, realmente, depois de 20 anos e centenas de bilhões de gastos, era correto continuar pagando líderes corruptos para não servir seu país? Era necessário colonizar o Afeganistão? Era necessário sangrar em uma guerra sem esperança? Qual é uma alternativa realista à retirada?
Ainda, talvez não seja o fim do mundo para os Estados Unidos.
Os EUA manterão uma presença em Cabul e outros centros. Existem grupos guerrilheiros anti-Talibã em todos os lugares, os Talibãs estão divididos e, em 2002, os EUA levaram apenas algumas semanas e alguns milhões de dólares para tomar todo o país.
Mapa do Afeganistão e países de fronteira. (Foto: Britannica)
No futuro, o que será?
A história da presença ocidental no Afeganistão é horrível e, nela, há também uma semente do atual confronto com a China. Se o Afeganistão e o Iraque tivessem sido bem administrados, isso poderia ter mantido a China mais alerta. Essas falhas contribuem para convencer Pequim de que o Ocidente está em declínio. Mesmo assim, é preciso reconhecer os erros e não se ater a eles. Errare humanum est, perseverare autem diabolicum.
Havia boas razões para intervenção no Afeganistão e no Iraque, mas poderia ter sido melhor simplesmente contratar alguns chefes e mantê-los sob controle. Teria sido uma solução imperfeita, mas talvez tivesse sido melhor do que lutar sem parar por duas décadas.
O erro, em retrospectiva, talvez tenha sido acreditar que a democracia poderia ser exportada como a Coca-Cola. Na época da revolução no Egito contra Mubarak, os Estados Unidos decidiram manter al-Sisi na reserva caso a Irmandade Muçulmana se mostrasse fanática. Este foi o caso, e al-Sisi salvou o dia.
Al-Sisi pode ser horrível para o paladar ocidental, mas a Irmandade era pior. Hoje, o Egito não é um paraíso, mas está melhor do que o Afeganistão ou o Iraque.
No caso do Afeganistão, o fracasso em capturar Bin Laden imediatamente, o principal responsável pelo ataque terrorista de 11 de setembro, complicou as coisas por anos, como David Frum explicou. Isso tornou impossível para os Estados Unidos se retirarem sem retribuição pelo mais grave ataque ao solo americano desde Pearl Harbor.
No entanto, sob a superfície do desastre atual, há também uma história diferente: a América pode ser louca, mas ainda é poderosa. Suportou 20 anos de guerra inútil e agora começa tudo de novo.
Por outro lado, não é simplesmente uma questão de força. Os EUA precisam superar o desprezo pela falta de inteligência prática. Perseguir sonhos de democracia onde não há instalações básicas e as pessoas não sabem ler e escrever é um absurdo; pois é um absurdo não buscar uma evolução liberal quando os países se tornam robustos, organizados e ricos. Recusar uma sociedade liberal transformaria o mundo inteiro em um campo de batalha de tiranos egoístas e nacionalistas. É essencial saber a diferença.
Praticamente agora, o rápido colapso do exército oficial afegão revela que os militares estavam em conluio com o Talibã ou cheios de agentes duplos. Os EUA estavam no topo de um prédio cheio de nada além de minhocas e ainda conseguiram superá-lo, saindo do Afeganistão.
É como a história de Aníbal que o grego Políbio contava a seus companheiros gregos. Não quer dizer que Aníbal foi um grande general. Diz que Roma era invencível e que Cipião derrotou Aníbal aprendendo com ele e melhorando seus métodos.
Então, há uma vantagem geopolítica para os EUA. A China ainda está lidando com o espinhoso Afeganistão. Pequim enfrenta enigmas complexos no momento.
Mapa da fronteira do Afeganistão com a China (Foto: Wikipédia)
Se Pequim se envolver muito nisso, enviar muitas tropas e estabelecer uma presença forte, pode ser terrível porque a China pode ter de administrá-la como os EUA e a Rússia tentaram fazer. Se a China se mantiver indiferente e se envolver muito pouco, o Talibã pode contaminar Xinjiang e os muçulmanos chineses. Um meio-termo é difícil, mas a China é muito inteligente e não pode ser subestimada.
O Talibã não é uma entidade unitária, mas uma aliança fluida de diferentes bandos com diferentes agendas. A menos que um soberano influente surja, vencendo todos os outros, eles se espalharão como água derramada.
Além dos EUA, Índia, Irã ou Rússia continuam a ter muitos ativos e podem não estar de acordo com os planos chineses.
Além disso, o Paquistão é patrocinador do Talibã e amigo da China, mas tem laços de longa data com os EUA. Agora as relações do Paquistão com os EUA estão enfraquecidas, por causa de melhores relações dos estadunidenses com a Índia, mas não acabaram. O Paquistão é malabarista, mestre da política com muitos jogadores, e é improvável que siga a linha chinesa simplesmente.
Os chineses também tentarão manter relações com todos, mas é um espaço novo e perigoso por causa da Guerra Fria em curso com os EUA.
Em suma, é outro problema de fronteira quando Pequim já tem Myanmar e Coreia do Norte. Este é talvez um bônus extra para os EUA.
Para os EUA, no entanto, também é hora de profunda reflexão e explicação sobre o que está acontecendo com a China e o futuro do mundo.
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Afeganistão de quem? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU