11 Julho 2024
Conhecido como o pai das pesquisas na Palestina, a voz de Jalil Shikaki (Gaza, 1953) costuma ser ouvida tanto por palestinos como por israelenses em tudo o que tem relação com a governança, a construção da paz e a transição para a democracia nas sociedades árabes. Professor de Ciência Política desde 2005, Shikaki possui doutorado pela Universidade Columbia, em Nova York, e lecionou em universidades estadunidenses e palestinas, entre elas, a de An-Najah, em Nablus.
Em seus quase 30 anos de trajetória como especialista em opinião pública, Shikaki dirigiu a elaboração de centenas de pesquisas entre palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Desde 2000, também codirigiu várias dezenas entre israelenses. Seu último trabalho realizado para o Centro Palestino de Pesquisa Política e Enquetes, com sede em Ramallah, traz conclusões fundamentais para compreender a opinião pública palestina, nove meses após o início da sua pior e mais mortal guerra, que já deixou mais de 38.000 mortos e cerca de 90.000 feridos.
A entrevista é de Ana Garralda, publicada por El Diario, 09-07-2024. A tradução é do Cepat.
Desde 7 de outubro, realizaram três pesquisas em Gaza e na Cisjordânia. Os dados provocaram alvoroço, pois ressaltam que embora o apoio ao Hamas se manteve no primeiro território, disparou no segundo. Como explicar isto?
Não entendo a surpresa. Estamos falando da quinta guerra em Gaza desde que, em 2007, o Hamas assumiu o poder na Faixa. Em todos os casos, o apoio disparou significativamente durante o tempo em que a guerra durou.
Entre seis e nove meses após o 7 de outubro, o apoio ao Hamas manteve-se muito alto e sabemos que será necessário o mesmo tempo para que volte ao ponto onde estava antes, ou seja, a esses 38%, em Gaza, e a 12%, na Cisjordânia. É o que também está acontecendo desta vez. Não há nada de surpreendente.
O que chama a atenção é o aumento da popularidade do Hamas na Cisjordânia, que disparou, ao passo que o apoio em Gaza, hoje, é quase idêntico ao de antes de 7 de outubro, que já era um dos mais baixos desde 2007. Os dados de antes da guerra são o verdadeiro termômetro para saber o apoio real que possui na sociedade palestina.
O Hamas precisava lançar um ataque contra Israel?
Meses antes do ataque, havia manifestações dentro da Faixa de Gaza que reivindicavam a melhoria nas condições de vida no território. As críticas estavam aumentando. Esses 38% de apoio que eu comentava provêm de islamistas que veem o Hamas como um representante de seu sistema de valores, sobretudo em relação à religiosidade, ao papel da religião na esfera pública e para eles próprios. O resto, a maioria dos palestinos de Gaza e da Cisjordânia, hoje, não o apoia, mesmo que a sua popularidade tende a crescer em tempos de guerra.
Os resultados da sua pesquisa mostram um enorme descontentamento com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP): 94% na Cisjordânia e 83% em Gaza…
Não há dúvida de que as pessoas na Cisjordânia sentem que a AP, concretamente o Fatah, não está fazendo o suficiente por Gaza e ficam enormemente descontentes. Por isso, o apoio a Abbas está na metade do que era antes, o que explica o aumento tão significativo da popularidade do Hamas.
No entanto, este apoio não significa que compartilham os seus valores. Aqueles que os compartilham são uma minoria que, atualmente, não passa dos 25%. Antes da guerra, era de 12%. Isto nos aponta que mesmo entre aqueles que agora o apoiam, o Hamas não era visto de forma positiva, o que pode ser por causa do crescente descontentamento que existia antes de outubro.
De acordo com outros dados da pesquisa, 90% dos palestinos dizem que não assistiram a vídeos dos atos cometidos pelo Hamas contra civis israelenses e 88% pensam que não cometeu atrocidades...
Existem dois fatores. O primeiro tem a ver com o acesso à informação em tempos de guerra. A tendência diz que quando nos afeta diretamente, tendemos a recorrer às fontes em que mais confiamos, e essa fonte na Cisjordânia e em Gaza tende a ser a Al Jazeera. Seu canal árabe não exibiu nenhum dos vídeos [de 7 de outubro] que a maioria das pessoas viu em outros canais ou nas redes sociais. Na Cisjordânia, também não se vê o Hamas cometendo atrocidades.
Como dado, posso dizer que na última pesquisa também descobrimos que entre aquelas pessoas de Gaza que viram as imagens, a resposta foi diferente daquela das que disseram que não. Entre as primeiras, 44% afirmaram que o Hamas, sim, havia cometido atrocidades, ao passo que entre as que não viram os vídeos, apenas 3% afirmaram que sim. Ou seja, a crença de que o Hamas cometeu atrocidades é 15 vezes maior entre aqueles que viram os vídeos do ocorrido.
O segundo fator é a negação. Se você vê o Hamas como uma organização religiosa e um partido político que é disciplinado e que está comprometido com valores humanitários que não permitiriam tal coisa, negará que os seus homens possam ter estuprado e matado mulheres e crianças, apesar da grande quantidade de provas.
Para os israelenses é a mesma coisa. Caso pensem que o seu exército é um exército criminoso, isto colidirá com a sua ideia de que é um dos mais morais do mundo. Por isso, não querem mudar de um sistema de crenças para outro sobre algo que é fundamental em sua escala de valores.
Em definitivo, nós nos protegemos seguindo o que está perto de nós e não costumamos procurar notícias que contrariem o que esperamos ouvir. Isto se aplica a palestinos e israelenses.
E para outros conflitos. Na Europa, estamos vendo isso com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia…
É o que os seres humanos fazem em tempos de guerra. Buscamos comodidade, tranquilidade, buscamos fontes onde não temos de ouvir más notícias e confiamos no que nos contam. Por isso, após o início da guerra, a porcentagem de pessoas que agora assistem a Al Jazeera quase duplicou. Veem isto e nada mais.
É claro que não assistirão aos canais israelenses para se informar, nem os israelenses assistirão aos canais palestinos. Então, uns e outros não têm fontes de informação que contradigam as suas crenças. Essas redes também não lhes mostrarão notícias preocupantes, mesmo que estejam acontecendo, o que mantém sua ignorância sobre o que realmente está acontecendo.
Por último, existe a questão da guerra psicológica, o fato de pensarmos que a informação que recebemos é “para o nosso próprio bem”, dado que o inimigo pode tentar manipular as notícias, caso seguirmos outras redes. Por isso, as autoridades israelenses impedem os meios de comunicação de expressar certas opiniões sobre os reféns, por exemplo, as apresentadas pelo Hamas. Por quê? Porque consideram propaganda. Isto também se aplica à outra parte.
Preferimos viver na ignorância...
Isso mesmo, mas só acontece durante as guerras. Assim que terminam, é o momento de acertar as contas. As pessoas não precisam mais olhar para o umbigo e começam a se abrir para outras fontes de informação, começam a fazer perguntas e a se interessar mais pela política, questionam os dirigentes em quem confiavam.
Em Israel, esse processo já estava acontecendo antes, seja pela questão dos reféns, como pelo ódio ao seu primeiro-ministro, que agora é mais questionado e odiado. No entanto, isso não está ajudando muito os palestinos. Em seu caso, o acerto de contas virá, mas não enquanto houver guerra, como já se viu em casos anteriores.
Em sua pesquisa, uma das perguntas é sobre a solução de dois Estados. Como especialista em governança e construção da paz, considera que ainda é possível?
Já estamos de fato na realidade de um só Estado, não de jure, mas, sim, de facto, o que a torna reversível. É possível restaurar a ideia de dois Estados se houver uma verdadeira determinação por parte dos atores envolvidos e se, com eles, a comunidade internacional também trabalhar. No entanto, a cada dia que passa, o custo de revertê-la é mais proibitivo, mas isso não a torna impossível. Também não significa necessariamente que a solução de dois Estados esteja morta.
De momento, a primeira coisa é alcançar um cessar-fogo que coloque fim à guerra, à presença israelense em Gaza, e que isso leve a uma retomada das negociações entre israelenses e palestinos em sintonia com uma solução de dois Estados. A Autoridade Palestina também deve voltar para a Faixa de Gaza. Depois, seria necessário estabelecer um governo de unidade nacional formado por tecnocratas e, finalmente, convocar eleições. Esta é, na minha opinião, a estratégia mais eficaz, a longo prazo, para nos tirar do conflito.
O conflito ameaça se espalhar por todo o Oriente Médio…
Não há dúvida de que o 7 de outubro desestabilizou a região e criou riscos muito maiores, incluindo uma guerra regional que arraste não só o Líbano, a Síria, a Cisjordânia e Gaza, mas também o Irã e, inclusive, o resto do Golfo: o Iraque, o Iêmen e a Arábia Saudita. Esta preocupação está impelindo o mundo a tentar estabilizar a situação, mas requer o consentimento de Israel, que está resistindo, apesar de ter a opinião pública global contra.
Por exemplo, países que normalmente o apoiavam estão se rebelando. Mesmo nos Estados Unidos o apoio está diminuindo, especialmente entre os jovens. Foi o que vimos nos campi universitários. Cada vez mais pessoas acreditam que Israel está cometendo atrocidades, genocídio e limpeza étnica. Será extremamente difícil que consiga reverter estas percepções.
A esse respeito, não há dúvida de que hoje estamos em uma situação melhor em termos de buscar uma solução para o conflito. No entanto, não é provável que algo aconteça sem uma mudança real em Israel, bem como na liderança palestina.
O apoio incondicional do presidente do Joe Biden a Israel pode levá-lo a perder as próximas eleições nos Estados Unidos?
Se fossem hoje, eu diria que sim, que suas chances de perder as eleições são maiores. Biden terá dificuldades em conquistar os votos dos árabes e dos jovens que hoje são pró-palestinos e isso trará dificuldades extremas para ele. Alguns dos estados divididos – esses três ou quatro nos quais venceu as últimas eleições – podem não o apoiar desta vez.
É muito cedo para saber, pois ignoramos como esta guerra terminará ou se continuará até as eleições acontecerem. Até que ponto a administração Biden conseguirá, a partir de agora, distanciar-se de Israel e do seu comportamento? Não sabemos, mas, neste momento, eu diria que as perspectivas de Trump são muito melhores do que antes do 7 de outubro.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A maioria dos palestinos em Gaza e na Cisjordânia, hoje, não apoia o Hamas”. Entrevista com Jalil Shikaki - Instituto Humanitas Unisinos - IHU