19 Junho 2024
Podemos reencontrar o diálogo se tivermos a audácia da paz, de reconhecer o outro. Os judeus que nunca foram maioria nos países em que vivi, agora em Israel devem ter a força para incluir as minorias. Assim, ontem à noite o escritor David Grossman foi entrevistado pelo diretor Maurizio Molinari, no palco da Repubblica delle Idee em Bologna.
A entrevista é de Eleonora Capelli, publicada por La Repubblica, 17-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Assistimos primeiro à dor de Israel em 7 de outubro e depois à dor de Gaza, das vítimas civis israelenses e palestinas. Como devemos encarar essa tragédia?
Primeiro deveríamos compreender que algo horrível aconteceu, para além da possibilidade humana de suportar. Penso também que devemos ser precisos: com toda a minha simpatia por aqueles que apoiam a liberdade da Palestina, enquanto dizer “Palestina livre” significa que Israel não deve existir, os israelenses não se sentirão seguros; e enquanto os israelenses não se sentirem seguros, os palestinos não se sentirão seguros. É preciso apelar para uma boa relação de vizinhança e isso é muito mais difícil.
Há algo que une a dor de Israel pelo 7 de outubro e a dor pelas vítimas civis de Gaza: é o sentido da violação das próprias casas. Quão importante é a defesa do local ao qual se pertence para construir a convivência?
Os judeus, tanto como indivíduos quanto como coletividade, nunca se sentiram em casa no mundo, desejados e aceitos. A ideia de construir o Estado de Israel foi concebida para ter um lar.
Parte-me o coração ver que, depois de 76 anos de independência e soberania do Estado, ainda não nos sentimos em nossa casa. Sentir-se em casa quer dizer ser livre, não ter conflitos com os vizinhos e sentir que esse lugar é o mais relevante para você.
No centro da ferida do 7 de outubro está a questão dos reféns. Centenas de famílias ainda têm parentes em Gaza, quão profunda é essa dor?
É uma sensação horrível, sinto que faz parte de mim: sinto-me refém do Hamas, faz parte da minha alma e do meu coração, não há dia em que não pense em pessoas apodrecendo, violadas, abusadas, atormentadas. Seres humanos que nada têm a ver com o conflito, arrancados da cama de pijama, com uma brutalidade atroz. Essas são as pessoas pelas quais é importante que Israel chegue ao fim do conflito, a uma trégua, a fim de trazer os reféns de volta para casa.
No centro da dor dos palestinos em Gaza estão os milhares de vítimas, muitas delas crianças. Como os israelenses vivem a dor dos palestinos?
Penso que a maioria dos israelenses quase não tem consciência do que os palestinos estão passando e da sua dor tremenda e pavorosa. Existem poucos canais de comunicação, se há um sentimento de remorso, é posto de lado. Temos a responsabilidade de nos colocar no lugar deles. Nós, israelenses, devemos permitir que a narrativa dos palestinos se infiltre na nossa. Isso não nos irá prejudicar, irá ajudar-nos a assumir a responsabilidade pelo que estamos fazendo em Gaza.
O mundo viu nos acordos de Oslo de 1993 o horizonte de dois Estados, de convivência em paz e segurança. O que resta daquele horizonte?
O conflito penetrou sob a pele, leva tempo para curar e superar o preconceito. Muitas coisas envenenaram a nossa vida, mas mesmo que a situação seja extremamente deprimente agora, e estejamos todos tristes, acredito que se nos for dada a possibilidade de iniciar um diálogo, de compreender melhor os nossos próprios erros e os erros do inimigo, se possa começar a mudar as coisas. Mas isso só poderá acontecer se não esquecermos os palestinos, porque de fato os acordos assinados até agora os ignoraram, os deixaram de lado. Temos que envolvê-los, gostemos ou não, são parceiros iguais e são essenciais. Merecem iniciar juntos um processo de cura e recuperação para entender que se pode aceitar o outro lado, mesmo que isso entre em conflito com a nossa dor e os nossos medos mais profundos.
O que significa ser escritor em meio a um conflito tão brutal?
É o oposto do que descrevi até agora: se em tempos de guerra é preciso ignorar a complexidade do inimigo, a narrativa é salvar a individualidade, resgatar o indivíduo da massa, conceder-lhe humanidade, grandeza, dignidade. Cada pessoa é um mundo inteiro, ser escritor é tomar a individualidade como um desafio, como uma bênção, como a grandeza daquilo que os seres humanos podem criar uns para os outros. Penso sempre na sorte que nós artistas temos, no privilégio que temos num mundo tão obtuso: é um grande prazer escrever com precisão, com nuances, num mundo que ignora as nuances e é tentado por todo tipo de preconceitos, de ódio.
Em 2008 foi lançado o livro “Até ao fim da terra”, no qual você conta a história de uma família presa na realidade. O quanto isso se assemelha ao que está acontecendo hoje?
Espero que diga o quão destrutivo é para uma família ficar presa no conflito, viver no ódio, e como é fundamental deixar os filhos viverem nos valores do diálogo e da reciprocidade mesmo quando a realidade ao seu redor é tão cruel e severa; se não acreditarmos mais na capacidade de criar filhos melhores do que nós, perdemos a guerra. Se, em vez disso, reconhecermos os elementos da nossa própria sociedades que inflamam as nossas piores qualidades, esse é o começo: e entendemos que as pessoas que pretendem ser os nossos protetores, na verdade são os nossos piores inimigos. A extrema direita em Israel está impedindo qualquer acordo com o Hamas, agora falam em recolonizar a Faixa de Gaza. Aqueles são os nossos inimigos.
Israel é marcado por protestos contra o governo: de onde nasce essa separação entre as pessoas que saem às ruas e Netanyahu?
Até 7 de outubro, as manifestações eram contra o partido de Netanyahu, acusado de tirar valor ao Supremo Tribunal. Depois de 7 de outubro, as coisas mudaram. Agora são apelos a Netanyahu para fazer de tudo para trazer os reféns para casa. E também há os manifestantes que pedem novas eleições já. Há pouca confiança não só nos parlamentares, mas também no primeiro ministro. Ele envenenou a atmosfera, poderia ter sido professor de Maquiavel, tanta é a sua capacidade de manipulação.
O Hamas tinha certeza de que depois de 7 de outubro haveria um levante a seu favor dos árabes israelenses e dos árabes que vivem na Cisjordânia, nada disso aconteceu: que explicação foi dada?
A minoria árabe dentro de Israel é muito mais madura no plano político do que era com da Intifada, há uma certa relutância em pertencer ao campo do Hamas, dizem isso abertamente: é o início de uma atitude nova. Espero que Israel reconheça a grande responsabilidade da maioria judaica de Israel de acolher a minoria árabe. Nós judeus sempre fomos uma pequena minoria nos países onde vivemos. Em Israel, como maioria, temos uma responsabilidade para com as minorias. Não é fácil para nenhum país, mas é uma exigência crucial compreender a armadilha em que se encontram israelenses e palestinos. É uma das situações mais complexas da história, desvendar esse nó de ódio levará décadas se não tivermos a coragem de compreender que esta guerra entre nós e os palestinos não pode ser vencida.
Essa tentativa deve ser feita porque a merecemos, ambos os povos. Israel não poderá vencer todas as guerras do futuro, estabelecer a paz é uma exigência existencial. Caso contrário, estaremos condenados a repetir o círculo vicioso. Os israelenses fizeram muitos milagres: voltemos agora a um espírito de diálogo, mas para conseguir isso é preciso coragem, audácia e inteligência.
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“A dor é indescritível. Israelenses e palestinos merecem um futuro”. Entrevista com David Grossman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU