29 Mai 2024
"Desviou o comando militar ao não prever uma operação para apagar imediatamente o previsível incêndio? Talvez todos os três tenham desviado. Ou, talvez, o estresse, as condições ambientais muito difíceis, o cansaço pela prorrogação do conflito, tornam cada vez mais difícil minimizar os riscos. Os “trágicos erros” fazem parte do panorama da rotina bélica. 'É a guerra', afinal, reza o ditado popular, revelando uma verdade profunda", escreve Lucia Capuzzi, jornalista italiana, em artigo publicado por Avvenire, 28-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Um trágico erro. Foi assim que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu definiu o massacre de refugiados em Rafah: pelo menos 45 vítimas, mais de metade mulheres e crianças.
Morto sem nome nem rosto. Não só porque os seus corpos foram devorados pelas chamas: 153 mortos, em média, por dia, são demais para serem lembrados.
Contudo, mesmo no clima de habituação global ao horror, o massacre de Rafah conquistou, por um momento, o holofote midiático. Uma após a outra vieram as condenações da comunidade internacional. O governo israelense expressou seu pesar pelo “trágico erro”.
Expressão, esta última, particularmente acertada. A palavra “erro” carrega em si o significado de cometer erros, mas também a amarga constatação de ter se desviado do caminho correto. O erro - segundo a origem etimológica - é um desvio do correto. Mas qual é o correto do qual se desviou? Essa é a questão crucial. Desviou quem deu a ordem de atingir dois terroristas escondidos em uma cidade de lona densamente povoada, aliás definida pelo próprio exército como uma “zona segura”? Desviou o piloto que apertou o botão sem objetar?
Desviou o comando militar ao não prever uma operação para apagar imediatamente o previsível incêndio? Talvez todos os três tenham desviado. Ou, talvez, o estresse, as condições ambientais muito difíceis, o cansaço pela prorrogação do conflito, tornam cada vez mais difícil minimizar os riscos. Os “trágicos erros” fazem parte do panorama da rotina bélica. “É a guerra”, afinal, reza o ditado popular, revelando uma verdade profunda. As conflagrações bélicas – enfeites retóricos à parte - produzem mortos, mutilados, refugiados, órfãos, estupros... É a guerra, portanto, o primeiro, trágico erro. Não se trata de negar as responsabilidades individuais. Estas permanecem e são objeto de leis nacionais e internacionais. Seria, no entanto, míope olhar apenas para os efeitos, sem realçar as causas estruturais das quais derivam. São os Estados que se desviam do correto quando consideram a guerra uma forma viável e sensata de enfrentar as controvérsias no século XXI.
São os analistas quando repetem que é “inevitável”, o estado natural da humanidade, confundindo o conflito e a sua resolução pelo caminho sangrenta. São os intelectuais quando afirmam que a guerra é a regra da história, a paz a exceção, quase como se fossem categorias ontológicas e não fenômenos construídos socialmente.
As conflagrações bélicas são o resultado de uma série de escolhas políticas, econômicas e culturais adotadas pelos governos e levadas adiante ao longo do tempo, independentemente dos eventos repentinos que determinam a sua explosão. Isso não significa diminuir a importância do casus belli em si. Mas entender o que está por trás. A respeito de Gaza, o jornalista israelense Rogel Alpher falou de "síndrome de Versalhes" da qual o governo de Netanyahu estaria sofrendo. Como os alemães no final da Primeira Guerra Mundial, o atual executivo se recusa ver qualquer responsabilidade das políticas adotadas por Telavive no interminável conflito do Médio Oriente. Afirmar isso não significa negar o direito legítimo à existência do Estado de Israel, mas, a partir disso, encontrar uma forma de colocá-lo em diálogo com a prerrogativa igualmente legítima de um outro povo.
Rehistoricizar ou desontologizar a guerra, remover dela a aura de suposta inevitabilidade que muitos insistem em lhe atribuir, desmascarar a sua construção silenciosa, também permite compreender o que realmente é a paz.
Não uma aspiração vaga ou ingênua, mas um horizonte a atingir, com decisões concretas.
Uma parte importante da sociedade israelense, e daquela palestina, aprenderam isso com a experiência. Não é por acaso que o mal-estar, congelado pelo choque da brutalidade de 7 de outubro, começa a surgir de forma evidente. Mais de 160 organizações pela paz dos dois povos, reunidas na Aliança pelo Médio Oriente, ofereceram-se como parceiros da comunidade internacional e, em particular, do G7 para explorar formas alternativas à carnificina em curso. Seu apelo foi assinado pelo Papa Francisco em Verona. Aos pequenos, reunidos no Vaticano vindos de todo o mundo justamente no dia de massacre de Rafah, o Pontífice confiou a missão de serem construtores de paz. Um passo de cada vez, no caminho certo, sem desviar.
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O erro e o horror. Mortes sem nome nem rosto em Rafah. Artigo de Lucia Capuzzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU