25 Abril 2024
Stefano Levi Della Torre, ensaísta, crítico de arte, está entre as figuras mais respeitadas, no plano cultural e pela coragem das suas posições, do judaísmo italiano.
A entrevista é de Umberto de Giovannangeli, publicada por l'Unità, 24-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor Levi Della Torre, o que na sua opinião distingue uma crítica a Israel pelo que está perpetrando em Gaza de uma atitude antissemita?
A crítica de Israel pelo massacre em Gaza é necessária. A terrível agressão do Hamas em 7 de outubro traumatizou profundamente Israel, renovando memórias dos pogroms e do genocídio e revelando uma sua inesperada vulnerabilidade.
Israel tem o direito de reagir e de se defender?
Negar isso seria um sintoma antissemita. Mas em Gaza e na Cisjordânia Israel transformou a guerra contra o Hamas numa guerra contra o povo palestino em duas frentes, a de Gaza e a da Cisjordânia. Defender-se da agressão do Hamas é um dever, defender-se da própria existência do povo palestino é, em vez disso, um crime contra a humanidade, que além de bombardeios indiscriminados com bombas de várias toneladas, utiliza como instrumentos de guerra a fome, a sede, os cortes de energia, a destruição de hospitais, a limpeza étnica.
Culpar todo o povo palestino, incluindo as crianças, de ser "terrorista" tem algo semelhante ao antissemitismo. Com os seus crimes em massa, Israel fomenta o antissemitismo, desperta-o como tradição e o encoraja oferecendo-lhe argumentos baseados em fatos atuais. Se Israel tem o direito de existir e defender-se, os palestinos também o têm, diante da sistêmica agressão de Israel nos territórios ocupados. Se existem organizações palestinas que praticam assassinatos e massacres indiscriminados, ou seja, terroristas, devem ser combatidas e condenadas; mas também o massacre em Gaza e na Cisjordânia são terrorismo em grande escala, e toda forma de terrorismo, de grupo ou de estado, deve ser condenada e combatida politicamente.
Tem havido um antagonismo colusivo entre o Hamas e a política de direita de Israel. Em que é colusivo? Ambos convergiram na rejeição do compromisso de paz: o Hamas rejeitava a existência de Israel, a direita israelense rejeitava a independência palestina. O que o Hamas ofereceu à direita israelense? A divisão política e geográfica dos palestinos. O que Israel ofereceu ao Hamas? A causa palestina deixada a apodrecer, sem outras perspectivas que não a opressão, o apartheid e a espoliação sistêmica, e o Hamas a instrumentalizou como motivação política para sua própria agressão terrorista.
O antissemitismo é um problema persistente, que o massacre de Gaza está agravando. Incentiva o antissemitismo como tradição secular a se revelar abertamente tirando, da direita e da esquerda, argumentos a partir dos massacres atuais.
Tranquilidade para os judeus, agora Israel se torna fonte de insegurança.
Posto avançado do Ocidente na zona de falha com o Oriente Médio, agora Israel torna-se um problema para o Ocidente, colocando em dificuldade o seu apoio, o seu consenso e as suas alianças internacionais.
Ora, se toda crítica for rejeitada como “antissemita”, a acusação de antissemitismo de escudo de defesa acaba se invertendo: torna-se uma pretensão de privilégio, o privilégio de estar isentos da crítica em memória do Holocausto, graças ao qual toda ação de Israel quer se passar para sempre como “legítima defesa”.
Mas toda pretensão de privilégio facilmente se inverte em acusação, em hostilidade, em ódio. É por isso que a acusação de antissemitismo deve ser ponderada com muito cuidado para não a ver degenerar em abuso, em detrimento de Israel e dos judeus no mundo.
Você não acredita que seja um erro, cultural, religioso e político, equiparar antissionismo e antissemitismo?
Muitos judeus, dentro e fora de Israel, consideram-se não-sionistas, se não mesmo antissionistas.
Sionismo e judaísmo não são a mesma coisa: o judaísmo é uma tradição, uma cultura, uma condição histórica, para muitos é também uma religião. O sionismo, ou melhor, os diferentes sionismos, desde aquele socialista laico que fundou o Estado até o atual de hegemonia nacionalista e fundamentalista, são, em vez disso, posições políticas, politicamente criticáveis. A menos que o "antissionismo" queira expressar a ideia de que Israel, único entre os estados existentes, não tem o direito de existir, no qual aflora uma discriminação antissemita.
Tem havido muita discussão e polêmica sobre o uso do termo genocídio em referência à morte de dezenas de milhares de civis, entre os quais 10 mil mulheres e mais de 13 mil crianças, em Gaza. Como você o definiria?
A acusação de genocídio tem uma ressonância específica para os judeus e para Israel. No contexto de Holocausto, não é difícil de entender.
Certamente, essa acusação está infiltrada pela intenção de desmantelar o escudo de defesa que é a memória do genocídio nazista constituído durante muitos anos pelos judeus e por Israel. Que as vítimas por excelência se tornem algozes, neutraliza o "prestígio" das vítimas e suas pretensões de um tabu defensivo.
Eu suspendo as minhas conclusões sobre o caso específico jurídico relativo aos crimes contra a humanidade do Hamas e de Israel; uma controvérsia que pode se tornar um álibi para se levar para o território do conflito terminológico a questão hoje principal: que as pessoas, e em particular os judeus, os israelenses e os palestinos não podem se eximir de considerar os fatos, que precisam julgá-los, tomar posição, se esforçar para elaborar o que é urgente no futuro imediato e quais perspectivas políticas se devem perseguir.
Gostaria de me deter no tema da memória e do seu uso político e identitário, em particular em referência ao Holocausto.
Os corpos esqueléticos das crianças da Faixa de Gaza que morreram de fome devido ao cerco israelense nos lembram algo que está plantado na nossa memória.
A memória da Holocausto foi de alguma garantia para os judeus no mundo e para o nascimento e a própria existência de Israel. Diante das atrocidades em massa que continuam sem atenuação e atenuantes na Faixa de Gaza, aquela garantia tende a se inverter em acusações contra os judeus e contra Israel. As vítimas a serem protegidas e em relação às quais existe dívida se mostram algozes a serem combatidos.
Também para se livrar da dívida.
O antijudaísmo e o antissionismo estão crescendo no mundo, tanto na direita como na esquerda.
No mundo judaico existem duas definições da memória da Holocausto: a primeira a entende como “nunca mais para os judeus", a segunda a entende como "nunca mais para ninguém", nem como resultado de genocídio, nem como fatos que são sua possível premissa, como a perseguição, a deportação e as atrocidades em massa.
A primeira interpretação vê o Holocausto acima de tudo como o máximo crime contra os judeus, a segunda vê no máximo crime contra os judeus o máximo crime contra a humanidade. Porque ambas são verdadeiras, conviveram, mas agora o seu conflito se acentua porque divergem as consequências políticas e éticas que delas decorrem. “Nunca mais contra os judeus” leva a colocar os judeus como as vítimas por excelência, sem comparação e para sempre, de forma que toda violência político-militar de parte judaica não seria, em qualquer caso e indiscriminadamente, nada mais do que “legítima defesa”.
Essa versão acabou por se tornar a alma e o instrumento do nacionalismo de direita em Israel, e vemos isso à obra na carestia induzida e nos massacres indiscriminados na Faixa de Gaza, bem como na agressão sistêmica dos colonos na Cisjordânia. Atos que estão aumentando a hostilidade contra Israel, colocando em crise o seu prestígio, os seus apoios e as suas alianças, e expondo os judeus no mundo a um crescente antissemitismo.
A “privatização étnica” do Holocausto, desfraldada como pretensão do privilégio de inquestionabilidade dos judeus, associa-se ao “negacionismo” para desacreditar a memória.
A outra definição da memória que vê o genocídio dos judeus como um crime contra a humanidade, em vez disso apela à responsabilidade universal, incluindo os judeus, para prevenir e reprimir toda atrocidade em massa e genocídio. Mesmo sem garantias, esse caminho não privatista, mas universalista, parece prometer algo mais também para a proteção dos judeus e de Israel. Deixe-me acrescentar algo que sei que é doloroso para a diáspora...
Ou seja?
Apresentar-se como uma corporação unívoca, assumir critérios advocatícios e corporativos de proteção acrítica contra toda crítica é a maior contribuição que os judeus possam dar ao antissemitismo, para a confirmação dos seus estereótipos. Especialmente se para a própria proteção nos encastelamos em justificar o injustificável, na lógica segundo a qual muitos de nós sustentam que os judeus, como vítima do máximo crime, o Holocausto, têm o direito a qualquer revanche contra os outros porque qualquer crime em massa cometido por judeus nada mais é que “legítima defesa”. Mentir para mitigar ou justificar o massacre em Gaza é um presente ao antissemitismo que não podemos nos permitir, e isso recairá sobre nós com o tempo.
Você está entre os signatários do “Nunca indiferentes”, apelo de vozes judaicas pela paz. A indiferença é sinônimo de cumplicidade?
A indiferença, assim como não querer ver, é sempre cumplicidade, mesmo que passiva. Muitas vezes é inspirada pelo fato de não saber ou não querer ser envolvido, de não ter a força, a competência, a disponibilidade de energia ou de tempo. É natural, normal. Não por isso é inocente. Sem querer, é fatalmente colaboracionista, porque cria o ambiente favorável para que o crime, sem oposições, seja realizado.
Em Israel, pelo menos metade da população pede a renúncia de Netanyahu. Pela primeira vez na sua história, a guerra não une o país inteiro em torno do Primeiro-Ministro.
Isso é verdade e dá motivos para ter esperança numa necessária virada radical que liberte Israel da condição patológica dos territórios ocupados, cuja infecção prolongada arrasta Israel para o nacionalismo e também o racismo generalizado. Mas não vejo uma virada possível tão cedo. A oposição ao governo Netanyahu é forte e extensa, mas existe um problema, a questão palestina é marginal para essa mobilização da oposição, causa divisão, apesar de ser a questão principal. Parece-me que agora a questão entre israelenses e palestinos não possa mais ser resolvida entre os dois contendores, mas deva ser enfrentada em nível regional e internacional, porque essa é a sua dimensão.
A guerra que já se tornou regional deve conduzir a um processo de paz regional, que promova a convergência de interesses e aspirações entre as várias partes. Os pactos de Abraão devem incluir os palestinos.
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“O massacre em Gaza e na Cisjordânia é terrorismo”. Entrevista com Stefano Levi Della Torre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU