02 Julho 2024
Quando nos conectamos via Zoom para a entrevista, Haim Bresheeth acaba de regressar de uma manifestação de estudantes pró-Palestina, uma das muitas para as quais foi convidado nos últimos meses, na Grã-Bretanha e em outros países. Desde que o exército israelense iniciou a operação genocida em Gaza, Bresheeth se desdobra para explicar, para contextualizar o que está acontecendo, como parte de um longo projeto colonial, mas a sua voz de judeu israelense antissionista não encontra espaço nos meios de comunicação de massa. “A BBC entrevistou-me quatro vezes durante as manifestações em Londres. Nenhuma foi exibida. Eles não querem ouvir o que judeus como eu têm a dizer."
No entanto, Bresheeth teria mais de um motivo para ser ouvido. Professor de mídia e cinema aposentado, cineasta, fotógrafo, historiador e autor de vários livros dedicados a Israel e à Palestina, passou os últimos cinquenta anos construindo pontes entre culturas, trabalhando em universidades britânicas e israelenses, mais recentemente na Escola de Estudos Orientais e Asiáticos (SOAS) de Londres.
Nasceu em Roma em 1946, num campo de refugiados onde ambos os pais, judeus poloneses sobreviventes de Auschwitz, estavam abrigados. “Mas como apátridas não podiam obter visto, nem para ficar ou ir para outros países. As únicas soluções que nos foram oferecidas eram voltar para a Polônia, onde os sentimentos antijudaicos não haviam diminuído, ou ir para Israel. Desde a conferência de Evian, sionistas como Ben Gurion tinham oposto as políticas dos vistos para os refugiados judeus. Não tínhamos escolha".
Bresheeth e seus pais chegaram a Israel logo após a fundação do estado. "Como muitos dos recém-chegados, os meus pais não eram sionistas. Meu pai era um pacifista e foi preso assim que saímos do navio por ter recusado o alistamento no exército. Mais tarde foi convocado como médico." Bresheeth conta como o exército israelense, as IDF, tornou-se uma forma de educação para seu pai, como para milhares de outros. Ao IDF, o prof. Bresheet dedicou seu último livro, publicado pela Verso em 2020, An army like no other (Um exército como nenhum outro), com um subtítulo explícito: “Como o exército israelense fez uma nação”.
A entrevista é de Max Mauro, publicada por Il Manifesto, 28-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O ponto central do seu livro é que as IDF não são simplesmente um exército, mas a própria essência do projeto sionista. O que quer dizer com isso?
Acredito que para entender o que está acontecendo em Gaza, e o que aconteceu desde 1948, é preciso compreender essa instituição e o seu papel na estrutura social de Israel.
Israel nasceu com a Nakba, a expulsão de 800.000 palestinos das suas casas, dos seus campos, das suas cidades, das suas aldeias. Sem entender as IDF não se consegue entender o que aconteceu depois. As IDF são Israel, nem mais, nem menos.
Um judeu moderado como Primo Levi definiu Israel como um “estado militar”; quais são as suas características?
A identidade desse povo e a identidade do estado são um produto das IDF. Na maioria dos estados é o oposto: é o estado que cria um exército e o exército serve o estado. No caso de Israel é o exército que criou o estado e definiu a sua identidade sionista. Muitos daqueles que estavam na Palestina, em 1948, não falavam hebraico e nem sequer eram sionistas. Ben Gurion, o primeiro líder político de Israel, dizia naqueles primeiros anos: temos um Estado, temos um exército, mas não nós temos um povo. Gurion usou o exército para transformar um povo de muitas identidades diferentes em uma só nação. O exército ensinava-lhes hebraico, criou a sua identidade, mas também a ensinava às crianças, pelo menos até meados dos anos 1960, nas aldeias dos recém-chegados.
Um projeto de engenharia social.
É isso mesmo, um grande projeto de engenharia social que acontecia às custas das identidades e das culturas que as pessoas traziam com elas. Por exemplo, como os meus pais, noventa por cento dos judeus que chegaram da Europa falavam iídiche, mas isso não era bom no novo estado. Na década de 1950, a produção de textos teatrais em iídiche não era permitida e as publicações de jornais e livros em iídiche, ao contrário de outras, eram tributadas, um imposto punitivo. Muitos israelenses ignoram isso até hoje.
Que implicações teve o papel atribuído ao exército na história de Israel?
Israel conseguiu transformar o povo do livro no povo do tanque, do fuzil, do míssil. No meu livro tento analisar o papel desempenhado pelas IDF destacando as particularidades sociais, políticas, culturais e raciais do projeto colonial israelense, porque é disso que se trata, um projeto colonial que toma forma no momento em que o colonialismo noutros locais estava em declínio.
Pelo uso de mitos bíblicos conseguiu criar uma sociedade ultramilitarista e opressiva, e os efeitos são os que vemos hoje. Ilan Pappe considera que a guerra em Gaza levará à extinção do projeto sionista. Você concorda?
O projeto sionista está de joelhos, mas não terminará amanhã nem no próximo ano. Pelo contrário, historiadores e ativistas agora entendem que o sionismo superou a si mesmo. Israel é o único país que ao mesmo tempo está sendo investigado pelo Tribunal Internacional de Justiça, pelo Tribunal Penal Internacional, pela ONU e muitas outras organizações. Isso nunca aconteceu antes com nenhum país. É um resultado que sublinha a severidade dos crimes cometidos, ao ponto de falarmos de judeus envolvidos num caso de genocídio. Para alguém como eu, é a pior coisa que se possa imaginar: judeus envolvidos num genocídio! Não há nada de judaico no genocídio, não há nada de judaico no apartheid e nada de judaico no colonialismo. E não há nada de judaico no estado judaico. O judaísmo teve 2.000 anos de história, experiências, tradições, condições de vida da diáspora. As comunidades judaicas na Europa e nos países árabes não eram militarizadas. Esse é um desvio da história judaica!
Você coloca ênfase na história, mas o discurso público em torno dos acontecimentos atuais está fixado em 7 de outubro.
No Ocidente, as mídias e o discurso público centraram-se em 7 de outubro, mas há um percurso, uma história e isso também tem implicações para os jovens. Quando encontro os estudantes, pergunto-lhes: quando vocês decidiram que a Palestina era uma causa pela qual valia a pena se empenhar? Alguns dizem dezembro de 2023, outros março de 2024, após o assassinato de alguns ocidentais. Eles ficam abismados ao ouvir um judeu israelense falar sobre a história dessas coisas. Ninguém lhe falou, por exemplo, do gesto da mão de Ben Gurion.
Quando, durante uma reunião de gabinete, perguntaram a Gurion: “O que fazemos com os árabes?”, ele fez um gesto com a mão para indicar: “Fora”. As coisas foram assim, o que estamos assistindo não começou em 7 de outubro.
Qual é a saída?
O cessar-fogo é apenas o primeiro passo, necessário, mas apenas o primeiro passo. Precisamos de uma solução política. Essa situação já dura 76 anos. Mas o sionismo não permitirá uma solução política, porque o seu objetivo é esvaziar a Palestina dos seus habitantes árabes indígenas. Esse é o seu objetivo, desde sempre. Mas fracassou. Ao cometer um genocídio, transformou-se num Estado pária.
Contudo, dentro de Israel não faltam posições críticas.
O país está muito dividido, entre velhas e novas elites. Estamos à beira de uma guerra civil. Muitos dizem e escrevem isso abertamente, mas isso não transparece fora de Israel e mesmo entre os críticos de Israel, esse é um assunto incômodo. Não é uma divisão puramente política, mesmo que no geral duas linhas possam ser identificadas, de um lado a "esquerda" Ashkenazi e do outro a direita religiosa. Essas duas realidades não podem conviver no mesmo país, têm valores e visões diferente, a única coisa que as une é o ódio aos palestinos. São realidades armadas, e temo que os territórios palestinos continuarão a pagar o custo desse conflito interno. Sob a névoa do que acontece em Gaza, crimes terríveis são cometidos diariamente na Cisjordânia. Se a comunidade internacional não pôr um freio aos crimes de Israel, teremos uma Nakba 3 depois da Nakba 2. A Nakba 2 já causou três vezes o número de vítimas da primeira Nakba.
Então você não está otimista de que uma pressão interna possa pôr fim à guerra?
O genocídio que Israel está realizando é perfeitamente democrático porque quase todos os judeus de Israel o apoiam. Uma pesquisa da Universidade de Tel Aviv revelou que apenas 3,2% dos judeus israelenses não apoiam o genocídio. Até os acadêmicos o apoiam e escrevem isso. Para mim uma sociedade que comete um genocídio não é sustentável, não tem futuro. E, de fato, em Israel falam em continuar a guerra por décadas, e se o resto do mundo permitir, é isso que farão.
Como avalia a dissonância das mídias ocidentais em reportar a guerra na Ucrânia e aquela de Gaza?
Sou originalmente um historiador da imprensa, mas hoje tenho dificuldade em ouvir os meios de comunicação ocidentais, as suas mentiras. É terrível, mas não é tão difícil de explicar. Há uma guerra da OTAN em curso na Ucrânia. Embora a Ucrânia não faça formalmente parte dela, é a OTAN que faz com que essa guerra continue. Uma semana após a intervenção russa, foi desencadeado um bloqueio partilhado por todo o Ocidente. Se definirmos a Rússia como um Estado terrorista, tudo o que pudermos fazer contra ela torna-se justificável. Nada disso aconteceu no caso de Israel – nenhuma sanção, nenhum boicote, total apoio do Ocidente ao genocídio! Um exemplo assombroso de duplicidade de critérios por parte das mídias ocidentais.
E em Gaza?
Israel não é membro da OTAN, mas é um elemento importante do campo ocidental, é visto como um posto avançado do Ocidente no Oriente Médio. O que estamos assistindo é um conflito entre o Ocidente e o resto do mundo. Itália, Alemanha e Grã-Bretanha estão entre os maiores fornecedores de armas para Israel e, obviamente, os EUA. O Ocidente sustenta Israel com armas, dinheiro, diplomacia e mentiras, especialmente com mentiras. Todas as mídias mainstream estão mentindo, porque defendem Israel, não é difícil de entender. Gaza não está simplesmente sujeita ao ataque de Israel, é um ataque do Ocidente contra as pessoas mais desfavorecidas do planeta, para lhes ensinar uma lição: “Não sonhem em nos resistir!”. Como outras operações ocidentais, tudo isso é brutal e injusto e está destinado a fracassar.
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“Israel transformou o povo do livro naquele do tanque”. Entrevista com Haim Bresheet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU