21 Dezembro 2023
Primo Levi (Turim, 1919-1987) falou muitas vezes de Lorenzo Perrone, o homem que salvou sua vida quando esteve preso no campo de concentração Auschwitz III-Monowitz. Em É isto um homem?, seu livro mais famoso e um dos mais importantes testemunhos do Holocausto, o escritor judeu italiano escreveu: “Creio que é a Lorenzo que devo o fato de estar vivo hoje”.
Lorenzo Perrone (Fossano, 1904-1952) era um pedreiro piemontês, pobre e quase analfabeto, que trabalhava na ampliação do campo de extermínio nazista. Um dia, em inícios do verão de 1944, enquanto colocava tijolos em um andaime, ordenou ao famélico prisioneiro 174.517 que lhe passasse um balde de argamassa. Contudo, Primo Levi estava tão desnutrido que, ao tentar entregá-lo, derrubou-o no chão.
Depois de seu primeiro encontro, Lorenzo arriscou a sua vida todos os dias levando sopa secretamente para Primo Levi, seu amigo Alberto Dalla Volta – ambos compatriotas do pedreiro – e a outros “escravos dos escravos”, ou seja, àqueles que ocupavam o lugar mais baixo na hierarquia dos prisioneiros.
Após sua libertação, Primo Levi, eternamente grato, manteve contato com Lorenzo durante anos e tentou ajudá-lo financeiramente. Inclusive, deu o nome dele a dois de seus filhos: Lisa Lorenza e Renzo. Agora, era o seu salvador que precisava de ajuda: era pobre e alcoólatra, havia contraído tuberculose e não tinha mais vontade de viver.
Até o momento, pouco se sabia sobre a vida de Lorenzo Perrone antes de sua chegada a Auschwitz como trabalhador voluntário. A partir de uma intensa pesquisa, no livro El hombre que salvó a Primo Levi (Crítica), um conterrâneo de Levi e Perrone, o historiador italiano Carlo Greppi (Turim, 1982), reconstruiu a biografia deste homem que salvou diversas pessoas da morte, mas não pôde salvar a si mesmo.
A entrevista é de Fernando Díaz de Quijano, publicada por El Cultural, 14-12-2023. A tradução é do Cepat.
Como ficou sabendo da existência de Lorenzo Perrone e por que decidiu escrever um livro a seu respeito?
O clique para mim foi a voz ao vivo de Primo Levi no documentário Il coraggio e la pietà, de Nicola Caracciolo, de 1986, que vi em 2014. Só naquele momento percebi o quão importante era a figura de Lorenzo Perrone na vida e obra de Levi. A necessidade de pesquisar e escrever esta história aumentou ao longo dos anos, em particular entre 2019 e 2022. Tomei cada vez mais consciência de que o “personagem” Lorenzo deveria ter sua própria biografia.
Imagino que reconstruir a vida de Lorenzo tenha sido uma tarefa muito complicada. Quais foram os principais obstáculos e os aspectos mais difíceis? Quais foram suas principais fontes?
A parte mais difícil de reconstruir em uma vida como esta – a de um pedreiro semianalfabeto, que cresceu entre as tabernas do “velho povoado” de uma pequena cidade piemontesa, Fossano, e estava habituado a migrar regular e clandestinamente para procurar trabalho – é o que antecedeu ao seu encontro com Levi, em Monowitz, em junho de 1944. Os primeiros 40 anos de sua vida estão cheios de vazios, permita-me o oxímoro.
A partir daí, tem a voz de seu amigo para nos dar as coordenadas e, de fato, as obras de Levi, incluindo as inúmeras entrevistas concedidas na última parte de sua vida, foram uma das duas matrizes de meu trabalho, juntamente com o arquivo do Yad Vashem, o museu do Holocausto de Jerusalém, que nomeou Lorenzo Perrone “Justo das Nações”.
Depois, veio o trabalho de campo, sobretudo em Fossano, e uma impressionante pesquisa em equipe com a participação de dezenas de testemunhas, arquivistas e estudiosos. Minha gratidão a esta rede de pessoas tão generosas é inesgotável. Também porque permitiu encontrar fontes de inestimável valor.
Perrone arriscou sua vida para ajudar Primo Levi (e Alberto Dalla Volta). Qual foi o momento mais perigoso para ele?
Todos, eu diria. Todos os dias, durante seis meses, arriscou sua vida por esses dois rapazes, esses dois “escravos dos escravos”, que até junho de 1944 nunca tinha visto. E fez isso por muitas outras pessoas, de diversas nacionalidades, das quais provavelmente nunca saberemos nada. Foi a encarnação concreta do bem sistemático e radical, diante de tanto mal.
No prólogo, diz que o documentário ‘Il coraggio e la pietà’ descreve a solidariedade (tanto a “fingida quanto a autêntica”) que os italianos demonstraram aos judeus perseguidos. A que tipo de “solidariedade fingida” se refere?
Nas décadas do pós-guerra, também graças à divulgação de obras como Il coraggio e la pietà, construiu-se na Itália o mito da “boa gente”, que essencialmente sustenta que os italianos, por cultura, para não dizer por natureza, foram, para não dizer são sempre, solidários, generosos, humanos. Isto não é verdade. Apesar das peculiaridades de cada contexto geográfico, social e cultural, o ser humano no momento da Shoah deu o melhor e o pior de si; e os italianos não foram a exceção.
Existia uma vasta rede de participação e cumplicidade nos crimes cometidos na península itálica e no estrangeiro. Ao mesmo tempo, havia milhares de pessoas capazes de se opor ao projeto de aniquilação realizado pelos nazifascistas. Havia italianos terríveis e italianos maravilhosos.
Quando Lorenzo Perrone se alistou como trabalhador voluntário para a Alemanha nazista, o que se sabia sobre o Holocausto na Itália?
Nada, essencialmente, sendo uma pessoa comum como Lorenzo. Não pouco, inclusive, eu diria muito, sendo pertencente a outros níveis da sociedade. Penso, obviamente, nos dirigentes político-militares da República Social Italiana e nas hierarquias vaticanas. Até mesmo as vítimas, como diz o próprio Levi, tinham um certo temor – fundamentado, sabemos hoje – acerca dos rumores provenientes da Europa do Leste, mas não tinham ideia da imensidão do crime que estava sendo cometido.
Qual foi a impressão de Lorenzo Perrone quando viu, em primeira mão, a condição física dos prisioneiros? Chegou a ter conhecimento das câmaras de gás?
A documentação não fornece uma resposta definitiva a esta pergunta específica. Lorenzo viveu e trabalhou em estreito contato com os “escravos dos escravos” por mais de dois anos e meio, então, presumo que “lá” conheceu cada detalhe do extermínio em curso, chegando ao mesmo nível de percepção dos acontecimentos dos internados. Ele os viu morrer todos os dias, emagrecer notavelmente. Viu tudo. E agiu.
Além da solidariedade, considera que desafiar a autoridade foi um estímulo para Lorenzo ajudar Primo Levi?
Certamente. Até onde sabemos, resistia totalmente ao poder. E para ele um poder absoluto e genocida como o dos algozes de Auschwitz era certamente a negação de tudo em que acreditava.
Embora Lorenzo tenha ido voluntariamente trabalhar em Auschwitz, tornou-se um escravo? Não tinha o direito a renunciar?
Poderia ter partido e, inclusive, retornado para casa em um Natal, mas – com cautela – levanto a hipótese de que não abandonou o seu trabalho porque já estava ajudando a outras pessoas, e sabe-se lá quantas. Embora eu não tenha nenhuma prova a esse respeito.
A verdade é que depois de 8 de setembro de 1943, quando caiu o regime fascista e a Itália assinou o armistício com os aliados, os trabalhadores “livres” já não tinham esta condição, a tal ponto que para sair teriam que fugir. No entanto, nunca se tornaram escravos, obedecendo a ordens. Salvo exceções, estavam destinados a sobreviver, ao contrário dos internados.
Primo Levi adoeceu “uma vez, mas no momento justo”. Qual foi o papel da sorte em sua sobrevivência?
Foi central. É o eixo do “tríptico” sorte-habilidade-prevaricação. Para Levi, os “ingredientes” necessários para sobreviver. E, de fato, teve uma boa dose dos dois primeiros, o que lhe permitiu evitar prevaricações. Entrou no laboratório de química e contraiu escarlatina. Soube explorar uma habilidade e teve uma sorte imensa, que lhe evitou as marchas da morte.
Contudo, para chegar vivo aos últimos meses antes da libertação do campo, o encontro com Lorenzo foi fundamental. O pedreiro de Fossano é a sorte constante da qual tudo depende. Caso contrário, Levi teria sido, com toda a probabilidade, um dos enterrados no verão ou inícios do outono de 1944.
O que Primo Levi fez por Lorenzo Perrone quando recuperou a liberdade?
Tudo: foi um amigo presente, empático, solidário. No entanto, há uma diferença substancial, além do contexto completamente diferente entre a ajuda que Lorenzo deu a Primo “lá” e a que Primo tenta lhe dar, em seu regresso.
Em Auschwitz, em 1944, aquele jovem quis se salvar: não pediu a Lorenzo, mas este o ajudou. Entre 1945 e 1952, na Itália, aquele homem, destroçado pela experiência, não conseguiu se levantar. Não quis que o ajudassem em todo o caminho. Queria morrer, viver não lhe interessava mais. O jovem amigo Primo, que estava florescendo, fez tudo o que pôde, mas não foi o suficiente. E Lorenzo afundou.
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Lorenzo Perrone, o pedreiro que salvou Primo Levi, em Auschwitz: “Encarnou o bem radical diante de tanto mal” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU