Auschwitz. "Estudar o que aconteceu em Auschwitz significa entrar nas profundezas da natureza humana para tentar entender o que somos"

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08 Fevereiro 2021

No Dia da Memória em que são lembradas todas as vítimas do Holocausto, e que coincide com o dia da libertação do campo de extermínio de Auschwitz (27 de janeiro de 1945), SettimanaNews propõe uma entrevista com dois especialistas: Frediano Sessi, autor de o volume Auschwitz. Storia e memorie [Auschwitz. História e memórias (em tradução livre), Marsilio 2020]; e Enrico Mottinelli, autor de Il silenzio di Auschwitz. Reticenze, negazioni e abusi della memoria [O silêncio de Auschwitz. Reticências, negações e abusos de memória (em tradução livre), San Paolo 2018], que também colaborou no volume de Sessi.

 

A entrevista é de Giordano Cavallari e Tiziana Bacchi, publicada por Setimana News, 27-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

O que Auschwitz representa na pesquisa histórica contemporânea?

Sessi - Auschwitz tornou-se ao longo do tempo um símbolo, um ponto de referência imprescindível para a memória contemporânea. Inclui todos os modelos do universo dos campos de concentração nazistas: do campo de reeducação, ao campo de trabalho, ao centro de extermínio. Mas além dessas características, há outra, a meu ver, cada vez mais relevante na pesquisa histórica.

A solução final da questão judaica tinha que ser uma solução territorial, geográfica, ou seja, deveria significar o deslocamento físico de populações não germânicas - portanto judeus e populações de raça inferior - para abrir caminho para os colonos alemães engajados na construção da nova Alemanha e da nova Europa, ou seja, da nova ordem geopolítica ariana.

É, portanto, dentro desse objetivo utópico que deve ser interpretada a realidade de Auschwitz: um lugar a leste da Alemanha, em território polonês, incorporado ao Grande Reich, posto avançado ideal para a realização dessa utopia.

 

 

Auschwitz não é importante apenas pelo grande número de mortos. A razão destacada por nosso volume é que em Auschwitz devia se criar a região experimental dos novos assentamentos alemães no Leste, portanto, é precisamente em Auschwitz que as categorias do racismo nazista se condensam. O projeto de eutanásia é realizado em Auschwitz.

Em Auschwitz o projeto de esterilização feminina e eugenia é realizado em vista de um gênero ariano perfeito. Em Auschwitz, mulheres, crianças e homens são mortos, principalmente judeus, não antes de ter aproveitado a possibilidade de exploração do trabalho. Em Auschwitz, encontramos o concentrado do pensamento nazista que estudamos profundamente.

 

 

Por que tanto empenho com Auschwitz?

Mottinelli - Os leitores às vezes me perguntam se sou judeu. Não sou. As razões do meu interesse são outras. Auschwitz não é simplesmente um evento na história do nosso passado. Nem é - de acordo com a retórica dominante - o mal extremo que devemos necessariamente lembrar para que nunca mais aconteça. Para mim, estudar o que aconteceu em Auschwitz significa entrar nas profundezas da natureza humana para tentar entender o que somos.

Reflito sobre o que aconteceu em Auschwitz para investigar os lados mais sombrios que pertencem a mim como a todos os seres humanos, pois todos pertencemos à mesma natureza.

Muitas vezes me lembro do que Ruth Klüger escreveu sobre Auschwitz, considerando-a uma das instituições mais inúteis e vãs da história. Não serviu a nada. Se não para mostrar até onde a natureza humana pode ir. Talvez seja por isso que nunca deixamos de nos aprofundar no tema.

 

 

Sessi - Tendo conhecido testemunhas como Primo Levi pessoalmente, entendi melhor como o limite extremo do mal de Auschwitz foi alcançado gradualmente. Creio que este é um ensinamento fundamental para a sociologia da história, ou seja, para o estudo dos processos que vão amadurecendo gradualmente dentro de uma sociedade até limites originalmente impensáveis.

Como mostrou o grande historiador Raul Hilberg, da solução territorial chegou-se, por pequenos passos, mas inevitavelmente, à solução final, sem que esta, em si, tivesse sido planejada nas origens. A história de Auschwitz é paradigmática.

Nasceu como um campo para esvaziar as prisões polonesas, depois foi transformado em um campo temporário de quarentena onde se colocavam os prisioneiros poloneses antes de transferi-los para a Alemanha. A partir do momento em que começa a funcionar, tornou-se um campo de reeducação e punição. Aos poucos, esse processo se acelerou até assumir, a posteriori, a forma de um projeto global. É crucial observar que da xenofobia se chegou ao extermínio. Portanto, é crucial ter todas as etapas bem claras.

Aquele que hoje faz populismo sobre os italianos, e não alemães, franceses ou ingleses, pedindo poderes para salvaguardar a cultura dos povos, já está realizando, para mim, pelo menos um passo além da xenofobia: está trilhando o mesmo caminho perigoso. Essa lição também foi aprendida por Primo Levi. Muitos, demais, parecem tê-la esquecido. Vou ler para vocês duas linhas muito lúcidas encontradas na introdução de Se questo è un uomo: "Muitos podem [...] acabar considerando que todo estrangeiro é um inimigo. Na maior parte, essa convicção jaz no fundo da alma como uma infecção latente”; mas quando esse pensamento latente "não expresso torna-se a premissa principal de um silogismo, então, no final da cadeia, existe o Campo de concentração", e com o Campo obviamente há o extermínio. A razão de meu estudo, de meu empenho ético de 30 anos, está nessas linhas.

 

 

O que aconteceu e o museu

O museu ajuda a entender o que aconteceu?

Mottinelli - Se olharmos para Auschwitz do ponto de vista da estrutura final assumida pelo museu do campo, não entendemos bem o seu significado. Hoje se pode visitar Auschwitz para ver o que resta de um campo de extermínio, câmaras de gás, móveis, latas de veneno, etc. Mas isso não é suficiente para entender o que aconteceu. Se pensarmos em Auschwitz como o lugar do mal absoluto, no final das contas será estranho e distante, porque somente monstros poderiam ter produzido aquele resultado.

Quem poderia pensar em matar milhões com gás, senão um ser desumano? É praticamente impossível nos identificarmos com os algozes. Em vez disso, devemos nos propor a repercorrer os elos da cadeia de que falou Primo Levi, desde o início. Então é possível entendermos que os resultados de certas concatenações de causas, efeitos e imprevistos não estão tão distantes de nós. E isso é muito mais inquietador, porque leva à pergunta: o que eu teria feito naquelas circunstâncias e com aqueles condicionamentos? Obviamente, ninguém pode dar uma resposta certa. Mas a pergunta é importante.

Pretendemos, portanto, dar a este nosso livro sobre Auschwitz a forma simbólica do acordeão: abrindo-o, desdobra-se toda a cadeia em todas as suas partes, para finalmente chegar a uma visão diacrônica do todo.

 

Sessi - Para enquadrar a humanidade dos torturadores, quero relembrar um álbum de fotos que representa oficiais e mulheres graduadas passando seu tempo livre em uma espécie de restaurante nas colinas acima de Auschwitz: eles iam lá para tocar, cantar, tirar fotos. Se você for à origem desses álbuns - existem vários - descobre-se que eles foram preparados para os oficiais que deixavam o serviço do campo para outro lugar.

São presentes que geralmente eram oferecidos no final da carreira, para relembrar os bons momentos com os colaboradores, para permitir dizer aos amigos: eu também estava lá! É concebível que pessoas que poderiam ser apontadas como criminosas quisessem conservar memórias daquela natureza? Absolutamente não. Esses álbuns foram feitos enquanto se estava construindo uma história considerada inteiramente positiva, feita por pessoas normais, movidas por um ideal preciso.

Aqueles que serviam nesses campos se sentiam como pessoas perfeitamente normais. Não só isso: cada pessoa havia sido treinada para administrar seus próprios sentimentos de culpa, para dispor de um hábito moral e até religioso.

 

Faz sentido restaurar um campo de extermínio?

Mottinelli - A questão é certamente muito complexa. O primeiro aspecto diz respeito ao que foi preservado em Auschwitz. O que restou é apenas uma pequena parte do sistema de concentração que se desenvolveu ao longo do tempo. Alguns lugares permanecem, mas nem tudo que estava dentro e ao redor. Isso não ajuda a dar uma interpretação histórica correta.

Depois disso, sem dúvida, surge o problema do que preservar e restaurar: quer dizer retornar ao estado original? Qual? Auschwitz era um canteiro de obras em constante transformação. O que vemos hoje é, em grande parte, o que a grande maioria dos prisioneiros nunca viu.

Até agora, a lógica da restauração tem sido a de manter ao mínimo a estrutura existente, garantindo que os galpões não desmoronem ou afundem (por não terem alicerces). Por outro lado, existe o risco de transformar Auschwitz em um parque dos horrores. O potencial existiria. Atrairia muito mais visitantes e turistas se novas formas de restauração fossem experimentadas. Mas, a meu ver, significaria abusar do lugar desrespeitando a memória, especialmente dos submersos.

Ainda acho que faz sentido manter a materialidade do lugar. Lembro que minha primeira visita a Auschwitz foi chocante. Já tinha lido muitos livros, achava que já sabia tudo que se precisava saber. E, em vez disso, o confronto com o lugar físico foi literalmente devastador. Esse contato tem um efeito imprevisível nas pessoas, tanto que os educadores de museus são especialmente treinados para gerir as reações emocionais dos visitantes.

Acredito que manter essas ruínas faz sentido, mesmo que não seja o suficiente por si só. Tive a ideia de que cada cidadão europeu deveria, pelo menos uma vez na vida, experimentar esse confronto com a materialidade de Auschwitz.

 

O que significa fazer memória?

Sessi - A memória tem a ver com uma elaboração coletiva da história. Você pode ver isso no itinerário do museu de Auschwitz, por exemplo, através dos pavilhões nacionais: cada coletividade elaborou a história à sua maneira e, portanto, cultiva sua própria memória, muitas vezes muito diferente umas das outras.

Basicamente, há uma memória diferente entre o lado judeu e o lado cristão. O museu hoje localizado em Oswiecim/Auschwitz evidentemente tem uma história própria, que já é bastante complexa. Após a liberação do campo, só restava devolver à população polonesa do local o que havia sido roubado para a construção: tijolos, madeira, ferro, etc. Inicialmente decidiu-se manter apenas o local polonês, ou seja, o campo base das primeiras vítimas polonesas. Também foi decidido manter Birkenau como um grande cemitério ao ar livre.

Quer dizer, transformações importantes ocorreram desde 1947 e, até os anos 1990, principalmente devido a um tipo específico de memória: aquela católica polonesa. Mas o sítio ainda está lá; e agora está organizado de forma a poder valorizar todas as memórias dos deportados e das vítimas, incluindo aquela dos judeus. Além disso, o sítio preservado ainda é uma fonte tridimensional para continuar trabalhando.

Onde os sítios foram destruídos - por exemplo, dos Gulags soviéticos – também a elaboração da história e a construção da memória mudam significativamente. O sítio de Auschwitz conserva, portanto, um posto fundamental na pesquisa histórica, de modo que uma memória comum, muito menos parcial do que as memórias individuais das comunidades nacionais, ainda possa ser elaborada.

Confio em uma pesquisa histórica que nos permita trazer, por meio de atualizações contínuas, uma memória compartilhada tanto quanto possível entre os povos. Antes do advento da orientação política do atual governo na Polônia, um bom trabalho estava sendo feito a esse respeito. O estudo do sítio, desde a década de 1990, permitiu-nos compreender como a história nacional polonesa interferiu na modificação da sua memória. Agora os conflitos estão se reproduzindo novamente.

A "cristianização" do local e a negação da responsabilidade dos poloneses no extermínio dos judeus condicionam fortemente o trabalho dos historiadores poloneses. No entanto, acredito que a pesquisa não possa ser impedida em seu curso: pesquisas arqueológicas e estudos geológicos, por exemplo, continuam reconstruindo a região dos campos de concentração de forma cada vez mais precisa.

 

Narrações

Que vidas contar?

Mottinelli - A vida dos algozes nazistas, por exemplo. A ausência de suas biografias constitui um vazio evidente na reconstrução da história de Auschwitz. Estou pensando nas controvérsias sobre a estrutura do museu: ainda se discute se representar ou não as biografias dos comandantes, dos oficiais e dos suboficiais do campo.

Atualmente - para o museu do campo - é como se nunca tivessem existido. Acredito que isso decorra da ideia de que eles não merecem memória, ou que sua memória seja desrespeitosa para as vítimas. Em vez disso, acho que conhecer aquelas pessoas, saber como elas chegaram a fazer o que fizeram, seria de enorme interesse. Como eu disse, enquanto deixarmos esses homens em segundo plano, não há possibilidade de reflexão sobre suas histórias pessoais e, portanto, sobre nós mesmos.

Esta é precisamente a parte relevante da memória que corremos o risco de perder. Assim como os sobreviventes estão desaparecendo, os algozes também vão desaparecendo, muitas vezes sem terem deixado nenhum testemunho. Mas certamente há seus diários em algum lugar, suas cartas: de vez em quando, algo é descoberto. Lembro-me agora de um cartão-postal escrito por um nazista para um colega soldado, descrevendo a vida no campo como igual a um emprego qualquer. Pois bem, é nessas vidas que mais deveríamos entrar.

 

Sessi - Certamente o conhecimento individual das vítimas é tão importante quanto o conhecimento dos carcereiros. No livro, também tentamos propor a vida dos carcereiros. Escrevemos capítulos inéditos movendo-se em novas direções de pesquisa.

As vidas individuais são obviamente importantes para entender as profundezas do ser humano. Penso na sensação de vergonha a que Enrico se referiu. Primo Levi escreveu sobre isso com maestria. Em La tregua ele descreve a vergonha que os primeiros soldados com a estrela vermelha, que vieram libertar o campo, sentiram ao ver os cadáveres: no chão, no meio da neve, abandonados. Eles ficaram mudos, silenciosos, oprimidos pela vergonha.

O conhecimento das vidas individuais permite também conhecer - e é relevante para mim - quem foi capaz de iluminar, ainda que por alguns instantes, um mal tão tenebroso, a vida de quem soube resistir ou não perder a própria humanidade, expressando a virtude cotidiana de altruísmo. Isso é muito claro para mim: aqueles que conseguiram resistir em uma situação desumanizante são aqueles que conseguiram preservar a humanidade.

 

Lembro-me de um episódio narrado por Primo Levi. Os presos estão reunidos na praça para a chamada. Um enforcamento está ocorrendo. Estão tão desumanizados que não conseguem tirar o boné diante de quem morre por tentar se rebelar, ou seja, depois de fazer o que os outros não conseguiram fazer. Primo Levi escreve que o homem pode ser aniquilado e a prova está justamente na incapacidade de sentir piedade, a ponto de não sentir mais nada.

Bem, se alguém consegue resistir a tal aniquilação, isso significa que ainda há vida, humanidade. Esta é uma memória preciosa que devemos cultivar. Estou convencido de que, na maioria dos casos, os nazistas não conseguiram desumanizar totalmente os prisioneiros. Eles não conseguiram. E isso é realmente relevante.

 

 

O livro em que vocês colaboraram trata de Auschwitz também nas artes: você pode dar alguns exemplos?

Sessi - O cinema que hoje representa Auschwitz na Itália é praticamente "A vida é bela" de Benigni, ou A lista de Schindler de Spielberg. Trata-se de uma filmografia que tende a proporcionar uma leitura tranquilizadora. Se pegarmos o personagem Oskar Schindler no filme, encontraremos basicamente um cowboy: um criminoso herói da tragédia.

Se pegarmos o protagonista de "A vida é bela", encontramos o pai que salva seu filho. Com isso, o cinema deixa de representar plenamente o drama. Voltamos ao que falávamos antes: o clichê é o dos nazistas como monstros estranhos. Ora os monstros foram derrotados e podemos viver tranquilamente na democracia que venceu.

 

 

Mottinelli - Certamente o limite de filmes como A vida é bela ou A lista de Schindler é querer passar uma mensagem boa e tranquilizadora, querer fazer as pessoas acreditarem que com boa vontade e otimismo se podia sair de Auschwitz com sucesso, vivos, em suma.

Isso me parece uma traição profunda do evento histórico. Por exemplo, aquela que é a criticidade típica das testemunhas, conscientes, elas mesmas, da contradição viva que encarnaram, é completamente evitada, porque justamente não se saia vivos de Auschwitz. Outra mensagem enganosa em minha opinião é que dessas experiências se pode sair melhores. Não foi assim. A humanidade não saiu melhor.

Nas escolas, mais do que nesses filmes, os professores poderiam oferecer a série Holocausto que, do ponto de vista educacional, é sem dúvida a melhor. Entre os filmes mais recentes que, na minha opinião, captam muito bem o teor histórico da tragédia está "O filho de Saul", de Nemes László, um diretor húngaro que espia com a câmera dentro do campo de extermínio com os olhos de um sonderkommando: e de certa forma não se entende nada neste filme, porque ele leva você para dentro de um mundo absolutamente caótico, do qual não é compreensível a linguagem, a história, o grau de consciência do protagonista, engolfado pelo caos,. E acaba mal: porque aquela é a representação mais próxima da realidade.

Mas esse tipo de cinematografia não chega ao grande público, porque, como dissemos, não é reconfortante.

 

 

Um exemplo de teatro?

Sessi – Vou falar algo sobre a peça Il Vicario, escrita por Rolf Hochhuth como ato de denúncia do silêncio do Vaticano, em particular de Pio XII. Alega-se que o papa foi informado e não interveio. É preciso dizer que os documentos da Santa Sé só foram liberados no final da década de 1990. Acredito que somente naquela época um grande dramaturgo como Hochhuth poderia ter escrito uma obra mais historicamente confiável, menos polêmica e menos provocativa.

Na Itália, foi representada em fevereiro de 1965 por Gian Maria Volontè com um grupo de atores politicamente engajados. Parecia uma acusação forte e direta, com o risco de produzir um incidente diplomático de grande dimensão. Para se ter uma ideia, basta dizer que a programação foi imediatamente interrompida.

É uma obra que hoje, francamente, voltaria a propor apenas pelo seu valor teatral, não pelo seu valor historiográfico: há um grande sentimento de raiva, não só contra o Vaticano, mas também contra a Cruz Vermelha e as potências ocidentais que, sabendo o que estava acontecendo, poderiam e deveriam ter intervindo.

Quero acrescentar, de acordo com minhas observações, que a Igreja Católica foi e ainda é alvo de acusações, especialmente por aqueles que estão dentro da Igreja como fiéis. Um historiador, um pesquisador, que não vê a Igreja como portadora de uma verdade superior, mas sim como uma instituição política, chega à conclusão de que tal instituição não agiu de forma diferente de muitas outras.

Não esqueço que na Itália os judeus que escaparam ao extermínio também foram escondidos em igrejas e conventos, por sacerdotes e religiosos. Mas, do meu ponto de vista, o Vaticano teve de cumprir uma tarefa histórico-institucional diante de uma instituição muito poderosa como o governo do Reich, tentando reduzir os danos que estavam ocorrendo em toda a Europa.

Devemos, portanto, sem dúvida, atribuir ao Papa Wojtyla - e aos pontífices que o seguiram - o reconhecimento do antijudaísmo histórico enraizado na Igreja. Il Vicario de Hochhuth certamente tocou essa verdade muito incômoda que só mais tarde seria admitida até certo ponto.

 

 

Exemplos de obras musicais?

Sessi - Krzysztof Penderecki foi um dos principais compositores poloneses contemporâneos. Morreu recentemente, em 29 de março de 2020. O oratório Dies Irae - sem nada tirar da qualidade da obra realizada dentro do campo em 16 de abril de 1967 - é outro exemplo de representação cristã de Auschwitz, em cujo perímetro evidentemente muitos mais judeus morreram – por serem judeus - do que cristãos - não por serem cristãos.

O texto da partitura sagrada foi escrito por uma escritora católica polonesa. O polonês Smoleń - que me lembro ter sido um importante diretor do museu de Auschwitz - encomendou a Penderecki exatamente aquele tipo de oratório, segundo ele, capaz de representar a verdade no campo. Acho que hoje não seria mais possível: em Auschwitz deveria ser tocada a música que veio do grito das vítimas, o que infelizmente ainda não aconteceu, embora a busca prossiga no sentido da recuperação de partituras concebidas por prisioneiros do campo.

Em outros aspectos, a obra do grande músico russo Shostakovich pode ser tomada como exemplo: Babij Jar, primeiro movimento da sinfonia no. 13 sobre textos do poeta Yevtushenko, em memória do massacre de judeus perpetrado pelos nazistas na Ucrânia. Essa obra deve ser entendida como uma "nota dissonante" na compacta memória russo soviética.

Stalin nunca quis reconhecer o extermínio de judeus por serem judeus. Se o fizesse, teria que reconhecer seus próprios crimes. A memória russo soviética está impregnada da retórica dos libertadores, isto é, daqueles que assumiram o mérito de ter libertado Auschwitz, salvando assim os povos europeus que resistiram e lutaram contra o nazismo. Todos os artistas que se desviaram da retórica do regime tiveram alguns problemas. Isso é exatamente o que aconteceu em Shostakovich com esta obra.

É interessante estudar o que aconteceu ao longo do tempo. O pavilhão de Moscou no museu de Auschwitz - primeiro soviético e depois russo - conheceu três versões: a soviética que foi transformada pela primeira versão russa e depois pela segunda versão russa.

Na última versão, Putin retorna sobre seus passos, cancela a revisão e repropõe a epopeia heroica do exército soviético. No fundo, ainda está o antissemitismo escondido dos soviéticos. Reconstruir a verdade significa reabrir um conflito muito forte, não só na Rússia, mas em todos os países da ex-URSS.

 

Refletir

Também a teologia e filosofia entram em seu livro: para traçar quais parábolas históricas?

Mottinelli - Quero relembrar um episódio histórico ainda recente e muito significativo. Um mosteiro de freiras de clausura carmelita foi instalado na área usada como depósito de contêineres de gás letal, bem próximo à cerca do acampamento de Auschwitz, entre 1984 e 1993, após a visita de João Paulo II em 1979.

Isso obviamente gerou um caso. O prédio ainda está lá. Acaba de ser restaurado e serve para acolher grupos de jovens que vêm em visita de estudo. Ali, no jardim, foi colocada a grande cruz usada em Birkenau para a missa do Papa. Ao entardecer, no escuro, há um farol que ilumina a cruz e projeta uma sombra majestosa sobre os blocos adjacentes do campo, fazendo de Auschwitz um imenso cemitério cristão (especificamente, católico polonês). O caso envolveu os vértices do Vaticano, a comunidade judaica internacional e as instituições polonesas.

Foi uma polêmica muito tensa, que só foi resolvida com a intervenção direta do papa, que solicitou e obteve a remoção do mosteiro. Esta história é emblemática, porque levanta uma forte questão sobre a pertença da memória de Auschwitz: lugar do martírio polonês ou o maior cemitério judeu do mundo? Até o momento, a questão certamente ainda está aberta.

Lembro que o próprio Raul Hilberg, autor da monumental obra A Destruição dos Judeus da Europa, não hesitou em dizer em essência que o Holocausto é o resultado de uma guerra religiosa milenar do Cristianismo contra o Judaísmo.

No que diz respeito à reflexão teológica sobre o Holocausto, pode-se dizer muito brevemente que aquela de matriz judaica, notoriamente muito articulada e complexa, apresenta diversas chaves interpretativas. Há aquela mais tradicional dos rabinos ortodoxos, para os quais o Holocausto seria a punição para o povo judeu que se afastou de Deus: o povo se curvou aos ídolos e, para buscar a assimilação com as nações em que se encontra, renegou suas próprias tradições. A memória do Holocausto, portanto, torna-se uma advertência para o retorno à ortodoxia.

Outra chave interpretativa é a do chamado tzim-tzum - o afastamento de Deus - defendida em particular por Martin Buber e Hans Jonas: Deus teria se retirado para dar espaço ao mundo, mas como consequência também teria deixado espaço para a possibilidade do mal. A humanidade não teria sido capaz de administrar o espaço concedido por Deus. E outras interpretações ainda.
Em geral, porém, todas as correntes do pensamento judaico convergem para um ponto: a fundação do Estado de Israel como ponto de redenção do mal sofrido.

No contexto cristão, a reflexão teológica sobre o Holocausto, que se desenvolveu depois daquela judaica, produziu um repensamento muito profundo. O ponto de partida é um curto-circuito paradoxal. O Cristianismo nasce em Jerusalém como uma costela do Judaísmo. Com o tempo, desenvolve um sentimento antijudaico que começa com a condenação à morte de Jesus.

Essa aversão experimenta altos e baixos ao longo dos séculos, mas nos anos 1900 se funde com as instâncias da ciência, da técnica e do direito que são a mistura com a qual a ideologia nazista alimenta seu projeto de exterminar o povo judeu. O paradoxo surge quando Jesus é reconhecido como judeu. Ou seja, o cristianismo fecharia o círculo ao aniquilar a própria raiz da qual nasceu. É claro que disso decorre a necessidade de um profundo repensamento sobre a identidade do Cristianismo e sua relação com o Judaísmo.

É nesse repensamento que se enraízam alguns gestos fortemente simbólicos que ocorreram nos anos seguintes, como aqueles realizados por João Paulo II, o primeiro papa a visitar uma sinagoga, onde definiu os judeus como "irmãos mais velhos".

A reflexão filosófica também se confrontou inevitavelmente com o Holocausto. Nesse caso, o tema é o naufrágio da cultura iluminista, guiada pela razão e pela ciência, que em Auschwitz mostra seu fracasso. Fala-se, portanto, de 'ruptura de civilidade' e da necessidade de repensamento da racionalidade, pois, como já destacamos, a história do Holocausto é fruto de um percurso rigorosamente racional, não foi uma loucura. Auschwitz é tudo menos uma loucura.

 

É a expressão rigorosa de um pensamento desenvolvido e levado ao extremo com grande rigor lógico. O resultado é o que conhecemos. Portanto, é natural ter questionado a razão e ter destacado em especial sua submissão à técnica.

Sessi – Vou tentar esclarecer em poucas palavras A banalidade do mal de Hanna Arendt. Minha avaliação é mais histórica do que filosófica. Um pensamento banal é um pensamento produzido por um ser humano que não tem ideia das consequências de suas ações. Ele segue as decisões e age com indiferença. É preciso dizer que Arendt não tinha conhecimento histórico preciso do que aconteceu. Sua elaboração decorre da breve experiência pessoal de prisão em um campo de trânsito francês, de onde foi libertada. Ela assiste apenas à primeira semana do julgamento de Eichmann em Jerusalém, a semana em que Eichmann é submetido a uma lista interminável de acusações.

Pelos vídeos disponibilizados, percebe-se perfeitamente o tédio deste homem ao ouvir o que já tinha ouvido durante os interrogatórios que preparam o processo. Hannah Arendt abandonou o julgamento e continuou a acompanhá-lo por meio de cartas e relatos de seus amigos jornalistas. Em seu livro, ela mostra que não conhece Eichmann a fundo. Ela mostra que não conhece bem que papel - autônomo - desempenhasse na organização do transporte de judeus para os campos de extermínio. Ela, portanto, o considerou uma pequena parte de uma engrenagem muito maior, sem compreensão das consequências: um homem comum, capaz, de fato, de um mal banal.

Arendt não sabia que, por exemplo, Eichmann havia ido, por iniciativa própria, à Hungria para organizar a deportação da última comunidade judaica, a mais importante que havia ficado na Europa.

Ela não sabia que Eichmann havia sido plenamente partícipe nas teorias, nas ideias das SS que visavam o extermínio total dos judeus. Eichmann conhecia perfeitamente as consequências de suas ações. Sobre isso, como se sabe, nasceu uma incompreensão muito forte entre Arendt e Jonas, colegas de curso nas aulas de Heidegger. Jonas escreve para ela e avisa afirmando que aquele mal não era absolutamente banal, mas sim radical.

No sentido filosófico que Arendt pretendia conferir ao termo "banal", isso talvez seja compreensível, mas não do ponto de vista histórico. Ainda menos justificado é o uso acrítico e verdadeiramente banal do conceito que é feito na Itália.

 

Como a política contemporânea usa a memória de Auschwitz?

Mottinelli - É dedicado a isso um capítulo específico que quisemos incluir no livro. Ainda não foi dito o suficiente sobre como os países mais envolvidos no caso elaboraram isso ao longo do tempo. Isso obviamente tem muito a ver com nosso presente político. Pareceu-nos particularmente relevante notar que os três países que menos se confrontaram com a história de Auschwitz, reconhecendo apenas em parte as suas responsabilidades – ou seja, França, Áustria e Itália - são também aqueles que hoje veem a presença de partidos e grupos neonazistas e neofascistas. Obviamente, há correlação.

Em sua primeira exposição nacional hospedada nos pavilhões dos museus de Aushwitz, por exemplo, a Áustria se apresentou como a primeira vítima do nazismo por ter sofrido anexação. Claro, a história ensina que a Áustria foi amplamente envolvida e cúmplice do extermínio. Agora a exposição está passando por uma reformulação.

A França - outro exemplo - reivindica a luta da resistência pela libertação com grande ênfase. Em vez disso, a história diz que a França, pelo menos metade dela, tinha simpatias nazistas, enquanto o resto era zeloso executor das diretivas dos ocupantes. As deportações dos judeus parisienses - sabemos - foram realizadas pelos gendarmes franceses. Na Itália, foi a milícia fascista que colaborou com os alemães, não a polícia italiana, pelo menos depois de 1943. Mas mesmo aqui entre nós as responsabilidades não foram totalmente apuradas, nem um juízo claro e definitivo foi dado, deixando espaço para ambiguidades que ainda poluem o debate cultural e político.

A Alemanha, por outro lado, é o país que mais elaborou seu passado. Sobretudo porque a geração de filhos e netos, a partir do final da década de 1960, exigiu saber o que seus pais, tios e avós haviam feito.

E assim, hoje, se um político na Alemanha solta uma frase infeliz sobre Hitler e o nazismo, ele é fortemente estigmatizado. Na Itália, porém, se um político se permite uma fala imprópria sobre Mussolini, acaba na primeira página dos jornais por um dia e no dia seguinte se esquece tudo. Parece-me muito significativo.

Em Israel, porém, o Holocausto foi muitas vezes instrumentalizado. Foi Ben Gurion quem conduziu o julgamento de Eichmann em função do reconhecimento internacional do novo estado. Até aquele momento, quase não se falava de Holocausto, embora obviamente o estado de Israel fosse habitado em grande parte pelos sobreviventes, que não tinham voz porque eram considerados perdedores passivos, enquanto o novo estado precisava de heróis em que se espelhar.

As únicas verdadeiras vítimas reconhecidas foram por muito tempo aquelas que morreram com armas em punho no gueto de Varsóvia. E ainda hoje há uma tendência de colorir como antissemitismo qualquer crítica, ainda que legítima, às escolhas do estado israelense.

Claramente, são apenas acenos que nos permitem dizer que a história de Auschwitz não acabou em 27 de janeiro de 1945. Estamos longe de uma elaboração autêntica e compartilhada da memória de Auschwitz, 80 anos depois.

 

Celebrar

O dia de celebração de 27 de janeiro é útil?

Sessi - O Dia da Memória é útil. Mas minha impressão é que na Itália há muita confusão em torno deste dia. A questão do extermínio dos judeus está estritamente ligada ao nazismo alemão e à aliança com o fascismo italiano: isto constitui um unicum da história. Portanto, este dia não pode ser carregado com outras questões.

Elas devem ser tratadas de maneira distinta. O dia 27 de janeiro é a data da liberação do campo de Auschwitz. O risco é elaborar e celebrar uma memória que ignore as passagens históricas que levaram a Auschwitz, anulando a especificidade desse unicum.

Além disso vejo, com alguma preocupação, a proliferação comercial de livros que muitas vezes constituem um falso histórico, um alvo fácil de um negacionismo muito preparado que ainda existe hoje. A comercialização do extermínio dos judeus da Europa é bastante negativa e tem efeitos totalmente contraproducentes. A história de Auschwitz deve ser estudada muito seriamente e comparada com o que está acontecendo hoje, em todos os âmbitos de estudo incluindo, obviamente, os eclesiais.

 

Mottinelli - Pelo que eu conheço do âmbito eclesial, Auschwitz e o Dia da Memória dizem respeito hoje, mais do que qualquer outra coisa, ao plano emocional, os bons sentimentos, a edificação, a piedade. Mas isso é insuficiente para mim. Aliás, querer dobrar a história de Auschwitz, ainda que com fins nobres, a algum horizonte de valores, trai a história histórica de Auschwitz e impede o confronto com a sua realidade e com tudo o que dela poderíamos extrair em termos de uma maior consciência.

Este dia deveria, portanto, servir também à Igreja para um repensamento muito mais profundo.

 

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