Para o judeu italiano a literatura foi a forma de conviver com o destino de sobrevivente de Auschwitz. A visão precisa de cientista torna preciosos e únicos seus relatos sobre o horror indescritível.
A reportagem é de Nadine Wojcik, publicada por Deutsche Welle, 31-07-2019.
Primo Levi sobreviveu à estada no campo de concentração de Auschwitz só graças ao acaso e à sorte. Ele viu outros seres humanos sendo degradados, humilhados, destruídos e aniquilados, e escreveu suas vivências em 1947, logo após retornar ao seu país natal, a Itália. Era um dos primeiros testemunhos literários dos abismos de desumanidade do Holocausto.
No entanto, seu pesadelo de detento de campo de concentração tornou-se realidade: ninguém acreditava nele, nem queria ler sua história. Por muito tempo, Levi não encontrou uma editora. A primeira tiragem de seu relato autobiográfico foi de apenas 1.400 exemplares.
Hoje, É isto um homem? é uma das grandes obras da literatura mundial. Após o lançamento pela conceituada editora italiana Einaudi, em 1958, a tradução para o alemão chegou três anos mais tarde. Foi necessário, portanto, uma década e meia até o mundo da literatura reconhecer o valor extraordinário das palavras desse sobrevivente.
Levi nasceu em 31 de julho 1919 e cresceu em Turim, numa família judaica liberal e culta. Sua paixão pela literatura era grande: antes mesmo de entrar para a escola, já sabia ler. Químico formado, combinava, na elaboração de suas vivências, o olhar do cientista e o do literato.
"Autor à revelia" para livrar-se do "fardo de lembranças pavorosas", ele observou e descreveu em É isto um homem? o que atravessara em seus 11 meses em Auschwitz: frio, fome, privação de sono e higiene, trabalho escravo, sofrimento físico extremo. O tom narrativo é frio, sem comentários, sem jamais perder o controle.
O autor não acrescenta nenhuma poesia, renuncia a manifestações emocionais, colocando-se, em vez disso, no papel de pesquisador, que ele bem conhecia. Sua descrição não visa expressar o próprio horror – isso cabe ao leitor. Essa objetividade seca o distingue de outros escritos autobiográficos sobre o Holocausto, tornando-o um escritor admirado.
Logo depois de Primo Levi começar o estudo de química na Universidade de Turim, o governo fascista promulgou a lei racial proibindo os cidadãos judeus de estudarem em faculdades públicas. Apesar de tudo, formou-se em 1941, com mérito – embora seu diploma trouxesse a ressalva "de raça judaica".
Em 1943 se juntou à resistência, lutou ao lado dela no noroeste da Itália, mas foi preso pela milícia fascista poucas semanas mais tarde. "Nós congelávamos e passávamos fome, éramos os partigiani mais indefesos de todo o Piemonte, e provavelmente os mais ingênuos, também." Temendo ser fuzilado como combatente, revelou sua origem judaica, sendo deportado para Auschwitz em fevereiro de 1944.
O trem transportava 650 homens, mulheres e crianças. Apenas 120 foram internados no campo, os demais, imediatamente executados nas câmaras de gás. Ao fim da guerra, Levi seria um de apenas cinco sobreviventes desse transporte.
Os nazistas recrutaram o químico de 25 anos para trabalhos forçados em uma unidade da empresa química IG Farben que funcionava no campo. Graças a esse acaso, ele sobreviveu o duro inverno nos galpões da fábrica. Quando contraiu escarlatina, porém, foi transferido para a "ala dos doentes", onde ficou abandonado à própria sorte.
Primo Levi sobreviveu também graças à doença, pois, pouco antes da libertação de Auschwitz foi deixado para trás, não tendo que participar das "marchas da morte". "O detento típico morria no decorrer de poucas semanas ou meses, de exaustão ou moléstias causadas pela desnutrição e carência de vitaminas", escreveria numa carta, na década de 70. "Cada um de nós, sobreviventes, é um favorecido pela sorte."
Após a libertação do campo de extermínio, passaram-se quase nove meses até ele conseguir retornar a Turim, com a ajuda do Exército Vermelho. Antes, uma odisseia dos libertadores o enviou até Minsk, então capital da República Soviética da Bielorrússia. Essa visão de uma Europa destruída está descrita em A trégua, de 1963. O romance autobiográfico, filmado por Francesco Rosi em 1997, é em parte uma leitura leve, embora termine com pesadelos no campo de concentração.
De volta a Turim, Primo Levi trabalhou como químico, fez nome na técnica de isolamento de cerâmica e tornou-se diretor executivo de sua empresa, continuando a atuar como consultor no setor, mesmo após a aposentadoria. Enquanto isso, perseguia sua segunda profissão, a literatura, experimentando com sucesso em diversos gêneros, de contos e romances à poesia, em parte sob pseudônimo.
Ao fim da vida, voltou a dedicar-se às traumáticas lembranças: "Minha verdadeira universidade foi Auschwitz", dizia. Em 1975, lançou Il sistema periodico (A tabela periódica), em que cada uma das 21 narrativas autobiográficas é dedicada a um elemento químico cujas características são parte da história. Numa votação do público, o Imperial College London escolheu a antologia de contos como "melhor livro de ciência popular de todos os tempos".
Em 1986, meio ano antes da morte de Levi, foi publicado I sommersi e i salvati (Os afogados e os salvos), em que ele retorna a sua definidora experiência em Auschwitz, 40 anos mais tarde, resumindo os temas de sua vida de sobrevivente. De forma pungente, ele reflete sobre o ato de recordar "o maior crime da história da humanidade".
Como em seus escritos anteriores, revela-se o quanto lhe pesa a "vergonha" de ter sobrevivido por mero acaso e sorte. "Não somos nós, os sobreviventes, as verdadeiras testemunhas. Essa é uma constatação incômoda de que me conscientizei lentamente, ao ler as lembranças de outros e reler as minhas próprias, passados anos."
"Nós, sobreviventes, somos uma minoria não apenas insignificantemente pequena, mas também anômala; somos aqueles que, por faltar com o dever, por destreza ou sorte, não tocamos o ponto mais profundo do abismo. Quem o tocou, não pôde mais voltar para contar, ou ficou mudo."
I sommersi e i salvati termina com uma série de cartas que ele recebeu dos leitores alemães de seu primeiro relato sobre Auschwitz, nos anos 60. Elas documentam o recalcado e fraturado sentimento de culpa das testemunhas da época.
E assim o pesadelo de Primo Levi acabou não se tornando realidade: até sua morte, em 1987, aos 67 anos, o italiano manteve a fama de admoestador respeitado e incansável, lutando de forma engajada contra o fascismo e o nacional-socialismo, participando regularmente de conversas com escolares e escrevendo artigos memoriais para jornais.
Seus relatos contribuíram também para as investigações contra o comandante de Auschwitz, Rudolf Höss; o médico do campo, Josef Mengele; e o arquiteto da "solução final", Adolf Eichmann.