06 Julho 2024
Haidar Eid é professor associado da Universidade Al-Aqsa, em Gaza, a única pública no enclave palestino. Ensinava literatura no campus da Cidade de Gaza, que foi bombardeado por Israel, assim como a sua casa, localizada a pouca distância da universidade. Na guerra que já deixou quase 38.000 mortos, perdeu colegas do Departamento de Literatura Inglesa e vários de seus estudantes. Em dezembro passado, conseguiu sair vivo da Faixa, junto com sua família, e agora está na África do Sul, de onde fala com El Diario.
“Temos nove universidades em Gaza e todas foram destruídas. “Israel destruiu mais de 70% das casas em Gaza, instituições, hospitais, escolas”, denuncia Eid, afirmando que o objetivo dos dirigentes israelenses é que “não haja qualquer possibilidade de uma vida normal em Gaza, durante um longo período, mesmo quando vier um cessar-fogo”. No entanto, mostra-se confiante em que os habitantes de Gaza vão “reabrir universidades, reconstruir escolas, hospitais, fábricas e todas as instituições”. E que ele próprio e todos os deslocados poderão retornar às suas casas, não só em Gaza, mas nos locais de onde os seus antepassados foram expulsos, em 1948, com a criação do Estado de Israel.
“A desesperança não é uma opção para nós. A desesperança é um luxo que não podemos nos permitir”, afirma. Eid publicou em espanhol o livro Descolonizando la mente palestina (Verso Libros), com a sua visão sobre a “única solução” possível para acabar com o “apartheid” imposto por Israel na Palestina.
A entrevista é de Francesca Cicardi, publicada por El Diario, 03-07-2024. A tradução é do Cepat.
Em seu livro, defende que o estabelecimento de um Estado palestino independente é impossível. Considera que esta possibilidade é ainda mais remota após oito meses de guerra em Gaza?
É impossível estabelecer um Estado palestino independente nas fronteiras de 1967, em Gaza e na Cisjordânia. E isto porque Israel teve sucesso no momento de aniquilar a solução de dois Estados. Israel tomou todas as medidas para tornar literalmente impossível o estabelecimento de um Estado palestino independente em 22% da Palestina histórica.
Primeiro, a maior parte das terras [palestinas] na Cisjordânia foram expropriadas e anexadas pelos israelenses. Além disso, Israel construiu um muro de apartheid para separar palestinos de palestinos e transformou Gaza em um campo de concentração. Onde é que os palestinos vão estabelecer o seu Estado independente?
Segundo, mesmo que conseguíssemos estabelecer um Estado palestino independente, o que aconteceria com o direito ao retorno dos refugiados palestinos? Para onde irão? De acordo com a lei internacional, temos o direito de retornar e ser compensados.
Terceiro, há 1,4 milhão de palestinos nativos, que vivem em Israel, que são tratados como cidadãos de terceira classe, com a aplicação de leis do apartheid, assim como acontecia com os negros na África do Sul [antes do fim do sistema de segregação racial].
Por tudo isso, considero que a independência é uma falácia e proponho uma solução alternativa, que é a de um único Estado democrático, entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. É necessário reformular a libertação dos palestinos para que inclua o marco conceitual da descolonização e, por isso, o título do meu livro é: Descolonizando a mente palestina.
Considera que o reconhecimento do Estado palestino, por parte da Espanha e outros países, é positivo ou contraproducente neste momento?
É um passo, mas a longo prazo não ajuda no processo de descolonização, que é um processo radical dirigido às principais estruturas coloniais sionistas de ocupação e apartheid. Um Estado palestino independente [estabelecido] em um pequeno pedaço de terra na Palestina não pode fazer isso.
Temos de levantar a questão da autodeterminação do povo palestino, o que não significa necessariamente um bantustão [área reservada à população negra durante o apartheid na África do Sul]. A autodeterminação significa: direito ao retorno dos refugiados palestinos; igualdade; fim do apartheid e do colonialismo de assentamentos na Palestina.
Por que o governo espanhol continua tendo relações diplomáticas com o apartheid israelense? Como o governo espanhol interpreta o direito do povo palestino à autodeterminação, garantido pelo direito internacional?
Entendo que o governo espanhol respeita o direito internacional, caso contrário, não teria decidido se unir ao [procedimento aberto após o processo contra Israel pelo] governo da África do Sul. O direito internacional exige que os Estados de apartheid sejam isolados, por isso queremos que o governo espanhol boicote Israel, que lhe imponha um embargo militar.
A Espanha deu passos importantes e nós agradecemos, mas não é o suficiente: tem de isolar Israel e cortar todas as relações, como fez – por exemplo – o governo da Colômbia e como fez a comunidade internacional com o Estado de apartheid sul-africano. O governo espanhol pode fazer parte de um movimento que coloque fim ao genocídio em Gaza, posicionando-se do lado certo da história.
Tanto a Espanha como a maior parte da comunidade internacional desempoeiraram a solução de dois Estados por causa do atual conflito em Gaza. Qual é a sua opinião a esse respeito?
A ideia de dois Estados é uma ideia sionista. É uma ideia que foi criada por um sionismo “suave” ou “prático”, que se traduz na bantustanização dos territórios ocupados em 1967 [por Israel]. A classe dirigente sionista conseguiu convencer a comunidade internacional e os dirigentes palestinos oficiais de que esta é a única solução.
A solução de dois Estados é uma solução racista por excelência, porque significa que os palestinos têm o direito de estabelecer o seu Estado independente, separados dos israelenses judeus. Ou seja, os palestinos muçulmanos e cristãos viveriam em 22% da Palestina histórica e os judeus em 78% do território.
O que existe nesse momento sobre o terreno é um único Estado. Pode a comunidade internacional dizer a nós, palestinos, onde vamos estabelecer o nosso Estado independente? É claro, não há resposta. A solução de dois Estados reforça o apartheid e o colonialismo na Palestina.
Você considera que a solução de um único Estado para palestinos e israelenses será possível algum dia?
Quando nos anos 1980 pedíamos a libertação de Nelson Mandela, o fim do apartheid na África do Sul e que o país fosse para todos os seus habitantes, algumas pessoas perguntavam: Isso é possível?
Com a campanha BDS (boicote, desinvestimento e sanções), com o embargo militar, com a mobilização em massa na África do Sul, com a pressão sobre o regime de apartheid branco... Em 1994, Nelson Mandela se tornou o primeiro presidente negro da África do Sul multirracial.
Embora este momento histórico seja muito sombrio e tantas pessoas – crianças e mulheres – estão sendo assassinadas em Gaza, acredito firmemente que este é o começo do fim do projeto sionista na Palestina. Contudo, o preço é extremamente alto e nós o estamos pagando.
Os próprios palestinos querem um só Estado, democrático e secular, compartilhado com os israelenses?
Os palestinos pedem que os seus direitos sejam aplicados, o direito à autodeterminação, e a solução de dois Estados contradiz a autodeterminação. A maioria dos palestinos apoia as reivindicações do movimento BDS, que é um movimento de direitos, não oferece uma solução política [para o conflito].
Precisamos de uma liderança que tenha uma visão muito clara e possa dizer aos palestinos: “Esta é a solução”. E que nos leve até o momento histórico em que o apartheid e o colonialismo na Palestina entrem em colapso. Por isso, eu sou um ativista do movimento BDS e da campanha a favor da solução de um só Estado, mas se alguém pode propor uma alternativa que garanta o nosso direito à autodeterminação, será bem-vindo.
O que os líderes e o povo palestino podem aprender com a experiência sul-africana e que erros devem evitar?
Os nossos líderes não aprenderam a lição do movimento anti-apartheid. O problema com todas as iniciativas de paz, incluída a de estabelecer um Estado independente, é que ignoram o fato de que Israel foi formado como um Estado colonial ocupante.
Na África do Sul, Nelson Mandela e todos os líderes entenderam que os negros sul-africanos não podiam coexistir com o racismo e o apartheid. Nossos líderes não entenderam a questão. Nós, palestinos, como população nativa, podemos oferecer aos colonos a cidadania em igualdade de condições, como aconteceu com os brancos na África do Sul.
Na Palestina, temos de levantar a questão da igualdade, do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Na África do Sul, nunca renunciaram a igualdade [entre negros e brancos]. Nelson Mandela passou 27 anos na prisão e nunca comprometeu o fim do apartheid, a igualdade.
Nossa liderança falhou no momento de aprender essa lição histórica, por isso precisamos de uma nova liderança com uma visão política que lute pela igualdade, a liberdade e a justiça. Estou falando de uma liderança que represente todos os palestinos: os palestinos nos territórios ocupados, os palestinos-israelenses e os refugiados, um total de 14 milhões.
Israel atua como uma potência colonial em Gaza e na Cisjordânia e os líderes palestinos administram apenas os habitantes de Gaza e da Cisjordânia como se fossem todo o povo palestino, mas o povo palestino também é composto pelos palestinos de 1948 e entre 5 e 6 milhões de palestinos na diáspora. Os líderes palestinos ignoram as desigualdades e as injustiças que Israel infligiu aos palestinos, nos últimos cem anos.
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“Israel foi formado como um Estado colonial ocupante”. Entrevista com Haidar Eid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU