Jordão: rio da vida. Artigo de Roberto Mela

Reprodução da obra de Giotto, o batismo de Jesus | Fonte: Wikimedia Commons

15 Novembro 2023

"O Jordão é um rio irrelevante, mas flui através dos séculos cristãos, banhando as antigas páginas cristãs e até a arte cristã. Depois de um percurso tortuoso de 251 quilômetros, desde o norte da Galileia afunda no Mar Morto, onde evapora toneladas de água. Não é navegável e é intensamente explorado para a irrigação agrícola. O seu percurso profundo marca a fronteira entre a Jordânia e Israel, muitas vezes em tensão entre si."

O artigo é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 10-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

O enciclopédico exegeta Gianfranco Ravasi publica a segunda edição de seu livro de sucesso sobre o Rio Jordão (11993, Edições Paulinas).

Na pág. 8 o autor apresenta um mapa das cidades e os sítios históricos mencionados no livro em referência ao rio.

François-René de Chateaubriand, escritor francês, evoca e canta sobre o Jordão no diário Itinerário de Paris a Jerusalém como ponto de chegada em sua jornada espiritual. “Deste rio que se ramifica em ambos os Testamentos, que irriga a terra desolada da história, que nasce do céu de Hérmon e fecunda também o inferno do Mar Morto, deste rio que purificou pecadores, banhou doentes e batizou o Filho de Deus queremos agora traçar a biografia – escreve Ravasi. Porque o Jordão é quase uma pessoa, uma criatura viva com uma história própria, com um rosto mutável, com um nascimento e uma morte e uma existência tortuosa” (p. 10).

No arco do triunfo de Roma ele é representado como um homem idoso, deitado numa maca, apoiado numa urna e amparado por três soldados. “O mosaico do disco central da cúpula de San Giovanni in Fonte em Ravenna (século V) pode resumir uma cena retratada dezenas e dezenas de vezes na arte cristã: enquanto Jesus é batizado, o Jordão se personaliza, erguendo-se ao lado, como um espectador maravilhado, em forma humana" (ibid.). Enquanto se espera atravessá-lo no batismo de morte (cf. Mc 10,35-40), cantamo-lo como esperavam os negros da América, elevando o “espiritual” You gotta cross the river: “Você deve cruzar o Jordão quando morrer. Disseram-me que o rio é estreito e profundo. Além da margem está o Senhor que espera e diz: ‘O tempo já passou’. Ah, o Jordão, o rio Jordão!” (p. 11).

GIANFRANCO RAVASI, Il fiume della vita. Il Giordano fra i due Testamenti (La Bibbia e le parole)
Edizioni Terra Santa, Milão 2023, pp. 256, € 18,00, ISBN 9791254711682.

Um rio que banha a Bíblia

Na primeira parte de sua obra, Ravasi descreve o Jordão como um rio que banha toda a Bíblia (pp. 17-92). Depois de ter mencionado o enigma do nome (pp. 17-20), escreve sobre um rio que corre nos dois Testamentos (pp. 21-66) e flui nos séculos cristãos (pp. 67-92).

O Jordão é mencionado 188 vezes no Antigo Testamento (mais nove vezes nos livros deuterocanônicos) e 15 vezes no Novo Testamento (somente nos Evangelhos).

O Jordão é um rio que corre nos dois Testamentos. É mencionado em textos egípcios antiquíssimos de 1900 a.C. e na estela de Ramsés II do século XIII. a.C. Abraão o atravessa na sua viagem desde a Mesopotâmia, Israel passa por ele no seu êxodo da escravidão no Egito para a liberdade da terra prometida. O profeta Elias divide-o em dois e seca-o quando transmite a sua função ao discípulo Eliseu. Duas tribos e meia vivem “além do Jordão”, expressão que muitas vezes retorna como indicação de fronteira, mas também de algo que deve ser deixado para trás, abandonado. Guerras e batalhas se sucederam até os Macabeus. A cena do batismo de Jesus no Jordão, ao lado dos pecadores, é muito famosa. É uma cena de revelação, que o mostra como Filho de Deus e Messias enviado para libertar a humanidade do pecado. O Jordão torna-se a fronteira do caminho rumo à terra e à cidade da esperança última.

O enigma do nome

O nome "Jordão" é um enigma. De acordo com Fílon, significa "descida" (da raiz hebraica yrd), que se refere ao fluxo de água. Antigamente era considerado em sua tortuosa descida até à fossa do Mar Morto, uma corrente que afunda em seu ventre estéril. Os cristãos aplicaram o sentido de “descida” à Encarnação do Verbo. Flávio Josefo divide a palavra em duas e dá j e'o r, “rio” e dan, a localidade de onde se origina uma das três nascentes que geram o rio interpreta-o como "o rio de Dã". O Talmude integra as explicações, falando do “rio que desce de Dã”.

Mencionado em textos egípcios antigos, o Jordão é conhecido no mundo grego. Existem vários “Jordãos”. Homero fala de "Iardão", um rio que corre em Elis e outro que corre em Creta. Na antiga língua iraniana existe a palavra jardanus que significa “rio anual”, ou seja, com água perene. Em bielorrusso, o rio Ródano é chamado Jerdan, justamente como o Jordão.

Ravasi conclui: “Talvez devamos reconhecer que o nome do rio mais hebraico e bíblico não é nem hebraico nem bíblico. É provavelmente um nome comum de origem mediterrânica antiga, destinado a indicar genericamente um curso de água, mas cujo verdadeiro sentido nos é desconhecido. O Jordão – que hoje os árabes chamam el-Urdunn (Jordão), mas também esh-Sheri'ah el-Kebirah, “o grande bebedouro” dos rebanhos, da terra e dos homens – é quase um rio universal também no nome” (p. 19).

O escritor Luigi Santucci escreve que “o Jordão é, sim, o rio da Palestina; mas é também um rio absoluto, por assim dizer, desarticulado da geografia. Flui no mapa supraterrestre da salvação. Como o Lete e Eunoè do Purgatório de Dante, designadas para nos dar o esquecimento e a memória. Pouco importará, então, se Cristo foi batizado nessa curva ou noutra. No seu aspecto metafísico o Jordão é, portanto, onipresente em todos os lugares, todas as suas gotas ou pedras ou alfeneiros são equivalentes: como é o caso da partícula sagrada, que em cada fragmento contém a totalidade de Cristo. Rio, dizia, metafísico. Arquétipo e símbolo. Mas, ao mesmo tempo, pareceu-me verdadeiro o oposto. Ou seja, captei uma ambivalência maravilhosa do Jordão, que faz reaparecer a sua “geograficidade”, seu direito de habitar sua própria terra” (p. 20). “O Jordão e os rios mais famosos da terra têm em comum a água e talvez alguns valores simbólicos radicais de vida, de purificação e de fertilidade. Mas o Jordão é um rio único. E é à Bíblia que deve a sua singularidade” – nota Ravasi (ibid.).

O Jordão é um rio irrelevante, mas flui através dos séculos cristãos, banhando as antigas páginas cristãs e até a arte cristã. Depois de um percurso tortuoso de 251 quilômetros, desde o norte da Galileia afunda no Mar Morto, onde evapora toneladas de água. Não é navegável e é intensamente explorado para a irrigação agrícola. O seu percurso profundo marca a fronteira entre a Jordânia e Israel, muitas vezes em tensão entre si.

MAPA RIO JORDAO

Na Bíblia, o chefe do Estado-Maior sírio Naamã despreza-o, comparando-o aos rios Abana e Parpar de Damasco. Mas a sua importância não se encontra na hidrografia, mas na história sagrada. Nele ocorre o acontecimento extraordinário do encontro entre Deus e o homem, que marca a virada decisiva da história.

No apócrifo Vida de Adão, ele vai como peregrino penitente às suas margens. De pé sobre uma pedra, imerso nas águas, inicia um jejum de 40 dias e 40 noites invocando a misericórdia de Deus. O fracasso de Eva em seu jejum no Tigre torna o jejum de Adão infrutífero e traz ambos de volta ao julgamento divino. Jesus é o novo e perfeito Adão.

O Jordão no Antigo Testamento

O Jordão aparece pela primeira vez na divisão da terra entre Abraão e seu sobrinho . A densa vegetação que rodeia o rio faz dele uma serpente verdejante que desliza pelo solo árido e amarelento do deserto da Judeia. Jó pensa que em suas águas navega o monstruoso behemot. Jacó atravessa novamente o Jordão carregado de bens, depois de ter partido apenas com um cajado. O corpo de Jacó cruzará novamente para retornar do Egito.

O Jordão está às portas da terra prometida. Nas estepes de Moabe, perto do Jordão, os últimos discursos de Moisés são dirigidos ao povo de Israel. Ele vê o perigo de cair na idolatria e, com paixão, clama a Deus para poder atravessá-lo, mas não o conseguirá. Ele morrerá por ordem de YHWH, no Monte Nebo, no cume do Pisgah. Israel terá que amaldiçoar o Monte Ebal e abençoar o Monte Gerizim. Diante do Jordão, Israel escuta o código deuteronômico, que norteará a vida religiosa e social na terra de Canaã. O Templo começa a se esboçar com seu perfil luminoso.

Diante de Josué o Jordão se parte em dois, permitindo a passagem no seco, como no Mar dos Juncos na época do êxodo. Josué faz remover doze pedras, igual ao número de tribos de Israel, para erguer um círculo do outro lado do rio (Galgal significa "círculo de pedras"). A tradição cristã vê nisso a posição dos ressuscitados com Jesus.

O Jordão é o segundo ventre do qual nasce o povo de Israel e, no pensamento cristão, tornar-se-á imagem do batismo. No Sal 144 o rio torna-se ator personificado na história da salvação: “Que tens, Jordão, que voltaste para trás?”. Deslizamentos que bloquearam o Jordão aconteceram na história, mas dessa vez são um sinal do cumprimento da libertação do êxodo. As tribos de Ruben e Gade, com metade daquela de Manassés, permanecerão a leste do Jordão. Nos vaus do Jordão, o juiz Gideão obterá uma vitória inesperada, com apenas 300 homens. O juiz Jefté liberta os amonitas, mas sacrifica sua filha, a primeira pessoa que vem até ele após a vitória. 42.000 efraimitas foram mortos por Jefté no Jordão por terem pronunciado incorretamente o nome scibbolet, “espiga de trigo”.

No tempo de Saul, alguns israelitas encontraram refúgio além do Jordão, mas também se tornou amargo para Davi, porque foi atravessado por Urias, a quem ele mandará matar para ter sua bela esposa Bate-Seba. Davi cruza o Jordão para escapar de seu filho rebelde, Absalão. Mencionado no censo de Davi, o Jordão é lembrado apenas uma vez no reinado de Salomão como o local onde foram fundidos os utensílios para o templo.

O Jordão viu a subida de Elias ao céu no seu carro, depois de se refugiar no rio Querite "além do Jordão" e depois de ter transmitido o seu ministério ao seu discípulo Eliseu. O Jordão fica seco à medida que eles passam para o leste e para o oeste quando Eliseu retorna. O milagre do êxodo se renova. Por ordem de Eliseu, o chefe do Estado-Maior do exército sírio, Naamã, é curado de lepra no Jordão.

Nas guerras contra os arameus, o Jordão tornou-se um local de recuperação de um enorme saque, tornando-se uma fronteira do céu, um sinal de esperança. A luz messiânica será vislumbrada por Isaías reinar sobre todas as nações (cf. Is 8,22-23).

A elegia estupenda do Salmo 37 canta a nostalgia pungente do exilado que recorda os salgueiros do Jordão, comparados com os da Babilônia. A Jordânia testemunha momentos gloriosos da revolução dos Macabeus. Frequentemente, eles cruzam o rio a leste, até Gileade, para encontrar abrigo ou improvisar ações de desordem. Jónatas obteve uma grande vitória sobre o general Báquides (cf. 1Mac 9,43-49).

O Jordão também é cantado com um poema, a intensa lírica dos Salmos 42-43, erroneamente dividido em dois. Juntamente com o Sal 137, é a outra passagem onde o Jordão é mencionado como um horizonte geográfico preciso e diferente de Jerusalém. Quem ora procura água viva e só encontra terra seca.

O Sal 62, canto de um provável exilado levita na Galileia, ouve as cataratas das nascentes do Jordão como uma massa de água que cai sobre ele e o aniquila. Sem a sua comunidade, as águas são para ele símbolo de angústia interior, venenosas e fonte de morte. Mas a grandeza do Jordão – observa Ravasi – só pode ser descoberta lançando sobre nele a luz de Deus e a sua história de salvação. De águas mortíferas, o Jordão torna-se o emblema da água que sacia a sede de vida e o seu verdadeiro destino não é o Mar Morto, mas Sião e o templo do Senhor.

O Jordão no Novo Testamento

No Novo Testamento, o Jordão torna-se o lugar simbólico da salvação. O autor escreve: “Quase se torna uma parábola de salvação, é o rio que simboliza toda a existência cristã que brota do batismo, como dirá Santo Ambrósio numa das suas iluminadas intuições: ” Ubique enim nunc Christus, ubique Iordan est”, “onde quer que Cristo estiver agora, lá está o Jordão” (Sermo XXXVIII, 2)” (p. 50). O Jordão assume novamente os traços de uma pessoa, o rosto de Cristo.

O fio azul da presença do Jordão no NT começa com o aparecimento de João Batista e com o batismo de Jesus, já mencionado acima. Aparece numa enigmática “Betânia” além do Jordão, que alguns códigos chamam de “Betábara”. O Batista escolhe o curso inferior do rio para o seu rito de purificação. Ali acontece a revelação de Jesus como Filho de Deus e Messias. São mencionadas a profecia de Isaías, a oração de Jesus, o diálogo com o hesitante João Batista, a presença das multidões com os fariseus, os publicanos e os militares.

João 1 e 3 não descreve o batismo, mas o Batista indica Jesus como o Cordeiro, o Servo de Deus ('talya' tem ambos os significados). São títulos que se referem ao cordeiro pascal e ao misterioso servo de YHWH do profeta Isaías. Ao Jordão “com a mesma palavra apresentaria duas faces de Cristo, o cordeiro da plena libertação de Deus e o servo sofredor, consagrado à salvação do homem através da sua paixão, morte e glorificação” (p. 54). João Batista é o amigo do Noivo que se alegra com a voz do Noivo. A figura jurídica do “amigo do noivo” indica aquela personagem que, durante o noivado e as negociações do casamento, mantinha os contatos entre os futuros cônjuges. Ele era um curador que circulava livremente de casa em casa e, terminado o casamento, sua função cessava.

Fala-se que João batizava em Enom, "as fontes", identificadas por alguns com o oásis de Ain Far'ah, ao sul de Bet-She'an. O local do batismo é atualmente identificado muito mais ao sul. Os franciscanos situam-no a oeste do rio, pesquisas mais recentes imediatamente a leste.

Os Evangelhos de Mateus e Marcos citam o diálogo entre o hesitante Batista e Jesus, que pede que se cumpra toda a justiça, a vontade do Pai. O diálogo recebeu uma representação sagrada na França do século XVI. “Batizar você, que veio salvar a todos nós?”, se canta.

Após o diálogo, acontece uma “visão interpretativa”, em que a pomba simboliza o Espírito Santo que pousa sobre Jesus, consagrando-o para a sua missão profética definitiva. Representa também o Israel messiânico e perfeito, a comunidade eclesial fiel.

A voz divina declara, porém, que Jesus é o Filho de Deus, o Servo sofredor de YHWH, o rei-messias, o filho de Davi anunciado pelos profetas. Jesus é Cristo, Messias, Rei, Servo, Profeta, Filho de Deus.

Batismo e tentações

Nessa luz, o Jordão torna-se também o rio dos cristãos filhos adotivos de Deus, consagrados no batismo como reis, sacerdotes e profetas. Já por volta do ano 400, São Jerônimo havia encontrado muitos catecúmenos que se faziam batizar no Jordão. O peregrino de Piacenza, Antonino, recorda a presença de muitas “laure”, conventos também femininos. Em muitas Igrejas Orientais a água do batistério é chamada de “Jordão”.

Afastando-se do Jordão, Jesus foi conduzido ao deserto, que a tradição cristã identificou com Gebel Qarantal, a montanha da Tentação, de onde se pode desfrutar do panorama da planície de Jericó, do Jordão e da Transjordânia.

O Jordão é também o pano de fundo da primeira pregação de Jesus no lago Tiberíades, que sempre tem o Jordão como emissário. A luz messiânica da palavra de Jesus irradia-se por todo o território palestino, cumprindo a profecia de Is 8,23-9,1 (cf. Mt 4,13-16).

Jesus atravessou várias vezes o Jordão nas suas viagens pelos territórios da Transjordânia (Mt 19,1 e Mc 10,1). Também João, noutra ocasião, nos recorda que Jesus “voltou para o outro lado do Jordão, ao lugar onde João anteriormente havia batizado e ali parou... E naquele lugar muitos acreditaram nele” (10,40.42).

Não faltavam vaus para atravessar facilmente e o mapa de Madaba também mostra balsas que ligavam as duas margens no século VI.

Com a notícia da travessia de Jesus, o Jordão sai das páginas da Bíblia, mas continua a fluir nas águas da tradição cristã. A liturgia bizantina canta o fato de que no Jordão “o Cristo Sol se lava”. Essa mesma liturgia – escreve Ravasi – canta um belíssimo diálogo com o Jordão cristão nas matinas da Epifania: Jordão, o que você viu que o perturbou tanto? Vi o Invisível nu e foi percorrido por um arrepio. E o texto continua evocando as emoções e reações que a entrada de Cristo nas águas do Jordão gerou. De fato, como não tremer e ceder diante Dele? Os anjos tremeram ao vê-lo, o céu enlouqueceu, a terra tremeu, o mar virou para trás com todos os seres visíveis e invisíveis. Cristo apareceu no Jordão para santificar todas as águas!” (p. 65-66).

A seguir vamos citar apenas algumas breves indicações do restante do conteúdo do livro de Ravasi.

O Jordão nos séculos cristãos

O c. III da Primeira Parte é dedicado ao Jordão como rio que corre nos séculos cristãos (pp. 67-92), flui nas antigas páginas cristãs (pp. 67-76) e na arte cristã (pp. 77-92).

O Jordão nas antigas páginas cristãs

O Pseudo-Mateus recorda a adoração dos leões diante de Jesus, aos oito anos, numa caverna adjacente ao Jordão. Cirilo de Jerusalém em sua III Catequese mistagógica, uma solene homilia batismal, declarava: “O princípio do mundo é a água, o princípio dos evangelhos é o Jordão” (cit. na p. 69). Justino afirmou que, com o batismo de Cristo no Jordão, todas as águas foram consagradas e podem se tornar lavacro eficaz dos pecados do homem.

Mas é sobretudo com os grandes escritores cristãos que o Jordão se torna sinal luminoso da vida nova dada aos homens por Cristo.

Para Orígenes, mestre da alegoria, o Jordão é um dos símbolos batismais mais elevados. Tornando-se catecúmenos atravessa-se o Mar Vermelho, com o batismo atravessa-se o Jordão. Com Elias abre-se também outro horizonte alegórico, o da imortalidade: quem atravessou o Jordão batismal entra na terra prometida do céu e depois da morte é assunto a Deus.

Gregório de Nissa reúne em torno do Jordão elementos míticos de origem grega e motivos de inspiração gnóstica, reelaborando-os e purificando-os. Sua ideia fundamental é de tipo cósmico. Ele parte dos quatro rios do Éden, o Pisom, o Giom, o Tigre e o Eufrates, descritos em Gênesis 2.10-14. Saem do Éden, perdendo assim a sua santidade e o frescor: são, portanto, símbolo da vida carnal e pecadora que se afasta da fonte da graça para se dispersar nas terras desoladas do mundo e do vício. O Jordão, porém, vai contra a corrente, flui para o Éden, isto é, para a vida divina oferecida por Cristo imerso nas suas águas, regenerando a humanidade desolada, trazendo-a de volta do vício à vida santa. O Jordão, que não nasce num ponto topográfico da Palestina, mas em cada pia batismal porque brota do lado de Cristo crucificado, envolve na sua rede benéfica todas as terras do mundo, santifica todas as águas e reúne em seu ventre todos os homens foram regenerados no Espírito Santo para reconduzi-los a Deus na perene alegria paradisíaca.

A liturgia

Na liturgia também o Jordão banha com as suas águas todas as igrejas com a pia batismal e percorre todas as liturgias com os ritos batismais e sobretudo com a festa do Batismo do Senhor.

Em janeiro as igrejas ortodoxas e orientais celebram a festa da “Santa Teofania de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Trata-se daquela solenidade que nós chamamos de Epifania e que celebramos no dia 6 de janeiro. É superior ao próprio Natal e tem no centro uma grandiosa comemoração do batismo do Senhor no Jordão. Com uma oração composta por Sofrônio, patriarca de Jerusalém falecido em 638, invoca-se a “bênção do Jordão” sobre as águas da pia batismal.

Ravasi cita, além disso, alguns textos utilizados na grande “Vigília”, em que também há um diálogo entre os fiéis e o rio. “Nas águas do Jordão – professa-se – o Senhor, rei dos séculos, coberto de glória, cria o novo Adão das cinzas daquele que se deixou corromper e corta a cabeça dos dragões que ali tinham se aninhado” (p. 76). O mal é derrotado, a redenção é oferecida a todos.

A arte cristã

O Jordão também banhou a arte cristã. “Aos milhares de páginas de literatura cristã - observa o autor - podemos acompanhar os milhares de imagens que, em afrescos, sarcófagos, baixos-relevos, urnas, marfins, mosaicos, miniaturas, sinetes, telas, esculturas retrataram esse rio, muitas vezes apenas sonhados e nunca vistos fisicamente pelos respectivos pintores ou escultores. Um Jordão que não é só feito de águas límpidas, frescas e doces e margens tranquilas repletas de verde, mas um Jordão que se torna uma pessoa real, atenta ao grande acontecimento do batismo de Cristo ou, como fez Rafael nas Logge do Vaticano (1514-1518), espectador da passagem dos judeus” (pp. 77-78). O Jordão é quase sempre representado em relação ao evento do batismo de Jesus: massa estriada horizontal, múltiplos borrifos vaporosos ao redor de Cristo, cachoeira vertical de água do século V em diante.

A arte renascentista criará ambientes exuberantes, com gramados esmaltados, seguindo motivos “teológicos” (Perugino, Bellini, Tiepolo etc.). O Oriente introduz motivos anedóticos e narrativos e, na Capadócia, o rio torna-se um gnomo caricatural de forma cónica que rola em torno da sua urna e ao batismo de Jesus.

Ravasi descreve a cripta de Lucina nas catacumbas de São Calisto (século II) e os dois batistérios de Ravenna (San Giovanni in Fonte ou Batistério Neomiano e o dos "Arianos"). Em Roma existe um esplêndido mosaico de abside na igreja de Santos Cosme e Damião (526-530) e a abside de Santa Prassede (século IX) com um Cristo mais rígido e frio. No painel de marfim da sé de Maximiano em Ravena (século VI) o Jordão está com o busto curvado sobre a urna de onde brota a água que alimenta o rio em que Jesus banha os pés.

Numerosas as miniaturas dos “evangeliários” e dos “sacramentários”.

Em Pádua brilha a cena do batismo de Jesus pintada por Giotto entre 1303 e 1306. Em Castiglione Olona (VA), perto da antiga colegiada, ergue-se o batistério com afrescos de Masolino da Panicale em 1435. A tela de Piero della Francesca junta-se àquela pintada por Verrocchio e Leonardo em 1475.

“E por último – conclui Ravasi o seu percurso “artístico” – não poderíamos excluir Veneza, onde vamos escolher uma das 56 pinturas que Tintoretto preparou entre 1564 e 1587 para a Escola de São Roque. O batismo de Jesus é aqui percorrido por arrepios escuros e densa fosforescência, enquanto o Jordão é povoado de algas, vegetação fluvial, vastos horizontes” (p. 85).

Um rio que banha toda a Terra Santa

A Segunda Parte da obra (pp. 93-250) é dedicada à descrição da vida física do Jordão, em referência às diversas idades do homem.

O Jordão banha toda a Terra Santa. Ravasi começa por descrever o tortuoso curso do rio desde o seu nascimento nas encostas do Monte Hérmon, até às grutas do deus , até à sua morte no Mar Morto. Nas várias passagens é recordada a presença de sítios e lugares históricos do AT ou que testemunharam a atividade de Jesus, a vida das comunidades cristãs e a voz da tradição cristã. Não faltam ricas informações de caráter histórico, geográfico, literário e atual.

Iniciando a descrição da vida física do Jordão, Ravasi relembra a viagem para o norte, em direção às grutas do deus , local do nascimento. Seguimos em direção ao Golã, para o mundo dos Drusos.

Duas viagens: a juventude e seu crescimento

O autor fala de duas viagens.

Na primeira viagem ele primeiro descreve a juventude do Jordão, mencionando os seus primeiros “vassalos” – também citados na Bíblia –, o lago desaparecido de Hule e a sua nascente, terminando com a lembrança de uma maldição e oito bem-aventuranças.

Todas são pronunciadas no triângulo evangélico da parte setentrional do Lago Genesaré, incluindo Cafarnaum, Corazim e Betsaida. O tradicional local do Monte das Bem-Aventuranças oferece uma vista espetacular do lago e de suas margens, chegando até o planalto da atual Jordânia.

É então narrado o crescimento do Jordão. Depois do seco Lago Hule, o rio deságua no grande Lago Tiberíades, "sem se misturar". ““Não se surpreendam – observa Ravasi, citando a tradição judaica – o Jordão entra nas águas do Lago Tiberíades e não se mistura: é um milagre!”. Lemos essa anotação surpreendente em um comentário rabínico em cem capítulos sobre o livro de Gênesis (Bereshit Rabbà IV, 5), composto no século VI d.C. Essa tese fantasiosa é apoiada para afirmar a sagrada intocabilidade das águas do Jordão. Podemos, portanto, considerar o Lago Tiberíades como um grande salão onde o rio celebra suas núpcias com a Terra Santa” (p. 122).

São depois descritas as navegações de Jesus no lago, primeiro a viagem para a margem oriental, em direção a Cafarnaum, e depois na margem ocidental, em direção a Tiberíades.

A segunda viagem é descrita em dois tempos. Primeiro, considera-se o rio em relação a Israel. Ravasi menciona a seguir os sítios bíblicos que se encontram ao explorar o território tal como se apresenta hoje, juntamente com anotações geográficas, históricas e literárias. Citam-se páginas de autores que falam de uma viagem às portas do paraíso terrestre (Talmude, mencionando a planície ao redor de Bet Shean), passando não muito longe de Jericó - a cidade mais antiga do mundo – para depois ser "engolido por um lago apestado" (René de Chateaubriand), o Mar Morto.

O segundo tempo da segunda viagem leva em consideração o Jordão em sua relação com a Jordânia. Falando das escavações realizadas pelo Pontifício Instituto Bíblico em Teleilat Ghassul (5º-4º milênio a.C.), perto do Mar Morto, ele menciona a surpresa dos arqueólogos ao se depararem com um estranho cavalo-tigre de óculos.

O estudioso então relembra uma misteriosa luta noturna ao longo do Rio Azul, aquela travada por Jacó no Yaboque, um afluente de esquerdo do Jordão. Em seguida, menciona Pella, cidade refúgio dos primeiros cristãos, e descreve a experiência de uma noite numa tenda beduína, onde se adensam memórias sobre a figura do pastor, de Jesus pastor por excelência, bem inserido no fértil território de Gileade. Depois é descrito o Jarmuk, outro importante afluente do Jordão, e os eventos relacionados a ele.

A viagem termina em Gadara, uma única cidade sob duas bandeiras. Era “um centro que incluía duas componentes: uma fonte termal e uma esplêndida cidade, Gadara. O drama da guerra árabe-israelense fez com que, paradoxalmente, duas bandeiras tremulassem agora em ambos os lados: a da Jordânia sobre a cidade e a da Estrela de Davi sobre as fontes” (p. 204).

Ravasi descreve primeiro as “ruínas da cidade helenística que se debruça sobre a margem sul do Jarmuk com o atual nome árabe de Umm-Qays, a 364 metros acima do nível do mar, 572 do Lago Tiberíades, cuja costa meridional fica a apenas 6 km de distância pelo ar" (p. 204). Conclui então as suas notas com a descrição das suntuosas fontes termais, ainda frequentadas atualmente pelos israelenses às sextas e sábados.

O sepulcro da Jordânia

Cada vida tem a sua conclusão, mesmo a do nosso “personagem” Jordão. Seu sepulcro é o Mar Morto. Ravasi menciona 392 metros de profundidade abaixo do nível do mar em suas costas, enquanto o leito subterrâneo atinge menos 433 metros. Mede 70 km de comprimento e 17 de largura, num total de aproximadamente 800 km2, hoje em forte diminuição. “A Língua” agora divide o mar em dois, unindo as duas margens. A forte evaporação o obriga a uma agonia eterna.

O sepulcro recebeu oito nomes, em parte bíblicos: Mar Árabe, Mar Oriental, Mar Salgado (época greco-romana), Lago Asfaltite (Flávio Josefo), Lago Fedido (época árabe), Mar de Sodoma (Talmude), Lago de Ló (denominação árabe), Mar Morto (Tácito e Pausânias foram os primeiros a nomeá-lo assim).

Antes de afundar no Mar Morto, no lado jordaniano do rio existe o “Parque do Batismo de Jesus” criado pelo rei jordaniano.

Perto do Mar Morto, no lado ocidental, fica o sítio "monástico" de Qumran, onde, na primavera de 1947, foram encontrados numa gruta pergaminhos muito importantes com o texto bíblico praticamente idêntico ao contido no códice mais antigo conhecido até então, de 900 d.C. Outras grutas revelaram imensos tesouros de textos bíblicos e da tradição dos habitantes do local, selados antes da chegada dos romanos em 68 d.C.

Por ordem de YHWH, Moisés subiu ao Monte Nebo, de frente para o Jordão, do lado oriental. Dt 32,48-52; 34,1-7 recorda a sua obediência a Deus, até à morte, sem poder entrar na terra prometida.

Um pouco mais ao sul, ainda na margem jordana, fica a fortaleza de Machaerus, onde os arqueólogos encontraram o duplo triclínio (dos homens e das mulheres) mencionado no Evangelho. Ali foi decidido o destino trágico de João Baptista, a sua morte por decapitação (cf. Mc 6,17-29, que se refere às acusações de natureza ética que ele dirigiu a Herodes Antipas; Flávio Josefo afirma, no entanto, que a sua morte foi decidida por uma razão política, para eliminar uma possível fonte de insurreição).

Para a despedida do Jordão, Ravasi reúne um grande conjunto de testemunhos literários de diversas tradições, todos exaltando a natureza particular desse rio. Para encerrar, escolhe as palavras de Cesare Angelini, crítico, ensaísta, escritor, mas sobretudo sacerdote de Pavia, que morreu quase como um patriarca aos noventa anos em 1976.

São palavras claras e serenas que encerram o livro, uma descrição da vida de um rio, mas na realidade uma pequena enciclopédia, um verdadeiro guia bíblico e histórico da Terra Santa banhada pelo seu tortuoso caudal. 251 quilômetros ricos em história e de fé. O rio da vida.

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