24 Fevereiro 2021
"Bíblia e ecologia. Um itinerário em sete etapas na obra-prima da criação: silêncio, luz, água, montanhas, vegetação, animais e alimento. Um imenso bem em perigo, como denunciou o Papa Francisco, "Deus escreveu um livro maravilhoso cujas letras são a multidão de criaturas presentes no universo", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 22-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bíblia e ecologia. Um itinerário em sete etapas na obra-prima da criação: silêncio, luz, água, montanhas, vegetação, animais e alimento. Um imenso bem em perigo, como denunciou o Papa Francisco, "Deus escreveu um livro maravilhoso cujas letras são a multidão de criaturas presentes no universo". Assim São João Paulo II, na catequese de 30 de janeiro de 2002, apresentava uma imagem implícita na própria Bíblia que lia na criação uma espécie de revelação cósmica a ser colocada ao lado da Sagrada Escritura, como se canta no Salmo 19 que teremos oportunidade de comentar. A declaração do Papa Wojtyla é retomada pelo Papa Francisco na 'Laudato si' (n. 85), onde é comentada através das palavras apaixonadas de uma Carta pastoral dos bispos do Canadá (4 de outubro de 2003): “Desde os panoramas mais amplos às formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto e reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino"[...]
Em caminho para o cuidado da casa comum
Uma espécie de alarme destinado a romper a indiferença eclesial, mas também a indiferença sócio-política global foi certamente a encíclica do Papa Francisco, que foi seguida por uma constelação de documentos, tanto em nível de Igrejas locais como também em âmbito do Vaticano, como, por exemplo, o texto elaborado e publicado em junho de 2020 pela "Mesa Interdicasterial da Santa Sé sobre Ecologia Integral" com o título Em caminho para o cuidado da casa comum. O horizonte temático que a questão do cuidado desta casa comum da humanidade que é a criação é imensa e a Laudato si' com seus capítulos é um catálogo extraordinariamente eficaz, porque não se contenta com afirmações de princípio, ainda que necessárias, a partir do "Evangelho da criação", mas traça um vasto projeto de linhas de ação. [...].
A abordagem que adotamos nesse livro não ignorará algumas das questões levantadas, mas as inserirá dentro de um quadro especial, aquele da Revelação bíblica. Ela é, no entanto, para o fiel, “lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho” (Sl 119,105) da vida pessoal, eclesial e comunitária, mas também para o não crente “o grande código” de referência da cultura ocidental. [...]
O mapa do nosso itinerário certamente terá como texto de referência principal as duas primeiras histórias do Gênesis sobre a criação, aquela usualmente atribuída à Tradição Sacerdotal do século VI a.C. (Gn 1,1-2,4a) , a outra no passado atribuída à Tradição Jahwista (século X a.C.), atualmente objeto de diferentes colocações segundo outras coordenadas históricas e literárias (Gn 2,4b-3,24). Obviamente, se esta é a fonte fundamental, o rio de nossa análise se ramificará no vasto território das Sagradas Escrituras hebraicas e cristãs.
O primeiro capítulo, portanto, só pode se abrir sobre o horizonte da criação que rompe o silêncio do nada por meio da palavra criadora divina. No ápice do ato criativo, o ha-'adam, o Homem, entra em cena com sua missão de "cultivar e preservar" a terra, mas também de "dominá-la e subjugá-la", expressões que merecerão uma exegese cuidadosa para evitar prevaricação. Muitos outros corolários importantes florescem: da sustentabilidade ao diálogo entre ciência e fé, especialmente com a dialética evolução-criação, da estética da criação ao seu destino escatológico.
O segundo capítulo é iluminado pela criatura primordial, a luz, um arquétipo não só natural e universal, mas também teológico, expresso com a asserção "Deus é luz" e com a possibilidade - por sua própria qualidade - de ilustrar a imanência e a transcendência. O olhar se estenderá então às estrelas semelhantes às sentinelas celestes, ao sol que pode ser "detido" no episódio de Josué, ao fogo, mas também às categorias espirituais do esplendor do Natal e de Cristo, "luz do mundo".
O terceiro capítulo introduz a outra realidade primitiva, a água, cujo fluir natural e simbólico impregna muitas páginas bíblicas, tornando-se um sinal de vida física, mas também espiritual, saciando a sede e regenerando o espírito no batismo.
É possível recompor um verdadeiro aquário bíblico feito de nascentes e riachos, rios e poços, piscinas e cisternas, nuvens e chuvas, ondas e tempestades, neve e orvalho. Mas, se é verdade que existe uma hidrografia bíblica marinha e fluvial que tem como eixo o Jordão, é igualmente verdade que se delineia uma face escura de água. É o mistério que se esconde no mar, visto como emblema do caos e do nada: no dilúvio tem sua manifestação devastadora, produzindo uma espécie de des-criação.
No quarto capítulo surgem as montanhas, que assumem diferentes perfis na estrutura geográfica e histórica. São, na verdade, muitas vezes picos sagrados e até místicos, literários, mas também "alturas", sinais de idolatria. A orografia bíblica permite delinear em certo sentido uma sequência da própria história da salvação. É o que proporemos através da subida a nove "montanhas sagradas", cinco para o Antigo Testamento (Moriá, Sinai, Nebo, Sião e Carmelo) e quatro para o Novo (Bem-aventuranças, Transfiguração, Gólgota, Oliveiras).
O quinto capítulo contemplará uma paisagem verdejante, a da vegetação. A botânica bíblica é fenomenal e simbólica ao mesmo tempo e se abre com o misterioso e fascinante Jardim do Éden, onde surgem árvores que não podem ser classificadas em nível científico, como as "da vida" e "do conhecimento do bem e do mal". O jardim é um lugar da culpa, mas também sede de amor no Cântico dos Cânticos, e se transfigura no paraíso escatológico.
Sem ignorar o deserto, quisemos cultivar, por um lado, um herbário bíblico ilustrado com os temas mais famosos, da oliveira, da figueira, da videira, da amoreira, das palmeiras, plantas típicas da ecologia sagrada; por outro lado, vamos passar um "alfabeto verde" de A de "acácia" ao Z. Mas para dominar na final estarão as parábolas de Jesus com o horizonte agrícola no qual miram seus olhos, enquanto tentaremos nos embrenhar no âmbito problemático da homeopatia, aparentemente praticada também pelo antigo Israel.
O sexto capítulo, por outro lado, será povoado por animais com seu vínculo com os humanos e com atenção a um indubitável animalismo "bíblico". Desta forma, desfilará um estupendo bestiário que nos permitirá elaborar um "alfabeto zoológico". O admirável bestiário de Jó entrará em cena (c. 38-42), mas também teremos que traçar retratos específicos de alguns animais com forte carga simbólica, como o cordeiro, a serpente, o burro, o cavalo, a pomba, o peixe e até mesmo o camelo e o escorpião. Cientes, porém, de que a etologia é muitas vezes adotada na ética (as fábulas ensinam), tornando os animais mestres dos homens, traremos ao palco a impressionante corrida dos quatro cavalos e os respectivos cavaleiros do Apocalipse (6,1-8).
O sétimo capítulo prepara uma mesa com alimentos que, em um sentido não materialista, mas simbólico, define a humanidade com suas várias experiências pessoais e comunitárias. O pão e o vinho são os componentes radicais da mesa bíblica, sobretudo pela sua relevância eucarística, a que se associa o tema da caridade fraterna e da hospitalidade. No entanto, o antípoda do jejum, bem como a virtude da temperança, não podem ser ignorados por causa de sua proeminência. Também nesse caso será elaborada uma espécie de cardápio bíblico, na prática um léxico do alimento. No entanto, a polêmica questão da dieta apenas vegetariana não será ignorada.
Com esse septenário poder-se-ia concluir a trajetória exegético-teológica de nosso texto, fechando o mapa. No entanto, consideramos precioso para o leitor abrir um novo corte orante e meditativo ou contemplativo. O próprio Papa Francisco no final de sua encíclica anexa uma "oração pela nossa terra" e nos últimos números do documento convoca, além da liturgia, também um místico e poeta como São João da Cruz. Porque, se é verdade - como confessava o grande Blaise Pascal nos seus Pensamentos (n. 206) - que “o silêncio eterno destes espaços infinitos me apavora”, é igualmente necessário reconhecer que esse mesmo silêncio não pode ser mera ausência, como se fosse "preto" e vazio, mas pode ser "branco", isto é, síntese de todas as palavras fundamentais e supremas, como acontece com as cores.
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Viagem na Criação, bela e ameaçada. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU