23 Novembro 2024
Há anos, Ilan Pappé é uma referência internacional no estudo da história do colonialismo israelense. O seu livro A Limpeza Étnica da Palestina, publicado em 2006, causou grande agitação em seu país. Nele identifica as operações de expulsão e limpeza étnica contra a população palestina promovidas por bandos armados sionistas nos anos anteriores a 1948, ano da proclamação da independência do Estado israelense.
Apoiador de um Estado único para palestinos e judeus como a “única via democrática e de igualdade”, há anos defende a campanha de boicote, desinvestimento e sanções para pressionar Israel frente à ocupação ilegal e o apartheid. “A Europa tem de impor sanções a Israel já”, aponta.
Em 2007, deixou o seu país e fixou residência no Reino Unido – onde é professor universitário –, após o reitor da Universidade de Haifa, onde lecionava, ter pedido a sua demissão por causa de seus posicionamentos críticos. Pappé disse, então, que era cada vez mais difícil viver em seu país.
Acaba de publicar um novo livro em inglês, no qual expõe o poder “dos lobbies sionistas nos dois lados do Atlântico”.
A entrevista é de Olga Rodríguez, publicada por El Diario, 16-11-2024. A tradução é do Cepat.
Em plena campanha militar contra Gaza, Israel continua contando com o apoio dos Estados Unidos e de outros aliados. O que isto significa, não só para a Palestina, mas também para as dinâmicas da ordem mundial?
Enfrentamos uma crise de confiança no direito internacional. Se um genocídio – que podemos ver nos nossos próprios celulares, quase diariamente – não provoca qualquer mudança drástica nas políticas dos governos, isto significa que o que pensávamos que eram direitos civis humanos sagrados só são assim considerados quando um país não-ocidental os viola.
Esta é a importância internacional do que está acontecendo em Gaza, que demonstra a hipocrisia e o duplo critério da comunidade internacional, especialmente da ocidental. É muito fácil comparar a reação ocidental diante da Ucrânia e da Palestina para ver claramente como os palestinos são desumanizados pelos meios de comunicação e o sistema político ocidental. Todo o Sul Global está observando e confirma o que já suspeitava.
Diante deste duplo critério, que enfraquece ainda mais o direito internacional e modifica as dinâmicas das relações globais, o que pode ser feito?
O que fazer é uma boa pergunta. O mundo precisa entender que não são apenas os palestinos: o futuro de todos nós está em jogo. O genocídio na Palestina, a crise climática, a pobreza e o racismo têm as mesmas causas, fazem parte de uma forma de fazer política.
É necessário conectar as lutas que temos em nossos próprios países com as lutas na Palestina, porque estão relacionadas, estão ligadas. Essa é uma das razões pelas quais tantas pessoas estão atuando nesta questão, pela qual em Londres houve um milhão de manifestantes pela Palestina. Há muitas pessoas que nunca tinham participado dessas formas de protesto, e isso acontece porque detectam esta conexão.
Hoje, em linhas gerais, a forma como a política é exercida trata as pessoas como uma mera base eleitoral, não como um grupo com problemas que devem ser resolvidos. É necessário mudar essa essência, e isto inclui modificar as políticas dos nossos governos diante da Palestina e outros temas que atravessam o nosso presente.
Para a questão palestina em Israel, você sempre defendeu a solução de um só Estado democrático e com igualdade para todas as pessoas. Considera que esta alternativa ainda é possível?
Hoje em dia, nada é possível. No próximo ano, ou nos próximos dois anos, será muito difícil ver qualquer força em favor do bem mudando a terrível realidade que estamos vivendo. A longo prazo, sim. Não só é possível, como acredito que seja a única solução.
Atualmente, já temos um único Estado, chama-se Israel e controla toda a Palestina histórica. Não há um metro quadrado da Palestina que não esteja sob o domínio de Israel, que é um estado de apartheid que comete genocídio e limpeza étnica. A única alternativa a isto é um Estado democrático para todos, libertado e descolonizado, que permita o retorno dos refugiados.
Não estamos diante de um conflito convencional entre dois Estados, mas diante de um projeto colonial mais parecido com a África do Sul do apartheid do que qualquer outra coisa. Sei que é difícil para muita gente na Europa entender que o colonialismo continua operando no século XXI, mas é assim.
O uso das palavras é importante.
Absolutamente.
Como você percebe que as palavras são usadas nos meios de comunicação europeus no que diz respeito à questão palestina?
Os meios de comunicação mainstream usam uma linguagem que não diz às pessoas o que está acontecendo. Quando falam sobre “a guerra em Gaza”, não estão dizendo aos cidadãos que há um genocídio em curso. Quando chamam as ações israelenses na Cisjordânia de “operações de autodefesa”, não contam que estas ações são operações de classificação étnica, que constituem um crime de guerra e contra a humanidade.
Quando se classifica Israel como “a única democracia do Oriente Médio”, não se permite que as pessoas questionem se um Estado que submete milhões de pessoas à ocupação e nega plenos direitos aos seus cidadãos árabes é realmente uma democracia. Um Estado que faz isto não é democrático. E a linguagem ajuda a acobertar essa realidade. Quanto mais as palavras forem ajustadas à realidade, mais as pessoas terão a capacidade de pressionar os seus governos a agir contra Israel e deter o genocídio.
Como você explicaria a um europeu o que significa a maioria dos grandes protestos contra Netanyahu, conforme vemos nas ruas de Israel?
A maioria dos protestos contra Netanyahu é de ordem interna, não pede o fim da ocupação e do genocídio. São manifestantes que querem manter o Estado de apartheid israelense, mas torná-lo mais liberal e democrático para os judeus. Entendo que é difícil de entender aqui na Europa, mas é assim.
Há dois temas que preocupam a maioria dos manifestantes. Um, os reféns, é claro. Perceberam o que alguns de nós alertávamos há tempo: o Governo israelense não tem qualquer interesse na libertação dos sequestrados. É assim que estão operando. Outro, Netanyahu, por razões boas e lógicas. No entanto, os líderes de que gostam não vão mudar a política israelense nos territórios palestinos ou no Líbano.
Ou seja, salvo os protestos minoritários, são manifestações no contexto de um conflito interno dentro da ideologia sionista. Portanto, o problema de fundo não está sendo exposto: hoje em dia, o sionismo é um obstáculo para a liberdade e a paz real para todos.
E qual é esse conflito dentro do sionismo?
Ocorre entre os judeus seculares e os religiosos. Os mais religiosos não querem só derrotar os palestinos. Querem criar um Estado judeu de acordo com a lei judaica. Ou seja, uma teocracia. Os judeus seculares querem manter o Estado judeu como um Estado liberal e democrático para os judeus. Mas liberal, secular e ocidentalizado.
Nenhum desses dois modelos funciona. Este é o principal problema do sionismo desde o início. E não tem nada a ver com os palestinos. O grande problema do sionismo é que é uma solução europeia para um problema europeu à custa dos palestinos.
Em seu novo livro – ‘Lobbying for Zionism on Both Sides of the Atlantic’ –, comenta sobre o papel dos grupos pró-Israel no mundo, entre os quais também existem grupos de poder não-judeus. Qual é o seu papel?
Na Europa, existem grupos desse tipo na direita, até mesmo na esquerda. Nas eleições estadunidenses, também vimos alguns grupos de pressão pró-Israel com um papel muito ativo. O lobby pró-Israel é o maior e mais antigo, tem 100 anos e acumula muito poder através de uma coligação internacional que eu chamo de Israel Global.
No mundo, existe uma forte coalizão pró-Israel que vincula o messianismo - evangélico, cristão ou judeu – com magnatas financeiros e o complexo industrial militar, conservadores e neoconservadores, partidos de direita, fascistas e populistas, estes últimos unidos a Israel por sua islamofobia.
Será necessário observar o que vai acontecer, porque agora não é uma boa ideia investir em Israel, está passando por uma crise econômica muito profunda e isto pode ter consequências.
Em seu livro, relata como esses grupos de pressão atuam.
O lobby pró-Israel é muito poderoso e utiliza métodos de uma máfia. Por isso, é poderoso. Pode arruinar uma carreira política, jornalística ou artística, caso considerem que está colocando em perigo a imagem do Estado de Israel ou a do próprio lobby.
Nesses últimos meses, estão sendo feitas acusações de antissemitismo contra setores que defendem os direitos palestinos, incluindo vozes judaicas.
A instrumentalização do antissemitismo para silenciar críticas contra Israel é uma ferramenta muito poderosa, porque ninguém quer ser acusado de ser antissemita ou de ser um judeu que odeia a si mesmo, e é disto que acusam os judeus críticos a Israel. Funciona para intimidar as pessoas, para que pensem duas vezes antes de criticar as ações israelenses.
No entanto, a longo prazo, não funciona. Primeiro, porque esta acusação distorcida, utilizada desta forma, provoca o aumento do antissemitismo. E, o mais importante, porque esta estratégia apresenta o antissemitismo como algo muito diferente e muito pior do que qualquer outro racismo. Isto é apoiado na Europa, principalmente pela Alemanha.
Essa tese não vai funcionar. As pessoas que são vítimas de racismo e discriminação sabem que o são por causa de sua cor, sua identidade, seu gênero etc. Não aceitarão a tese de que uma forma de racismo é pior do que outra. Todas são graves. Por isso, não é sustentável no tempo. Muitas pessoas que são contra o colonialismo e o racismo não aceitarão ser acusadas de racistas.
A relatora das Nações Unidas para a liberdade de expressão, Irene Khan, alertou que “a crise de Gaza já é uma crise para a liberdade de expressão e protesto”, com graves capítulos de repressão e cancelamento contra as manifestações a favor dos direitos palestinos.
Isto recorda o que aconteceu após os ataques do 11-S, em 2001, quando todos os tipos de agências usaram esses ataques contra as Torres Gêmeas de Nova York para justificar cortes nas liberdades dos cidadãos, sob a desculpa da guerra contra o terror. Algo semelhante está acontecendo agora. Israel exige que qualquer crítica ao Estado israelense seja apontada como apoio ao terrorismo e isto é uma boa desculpa para os serviços secretos, a polícia e os políticos que o empregam contra a liberdade de expressão.
Retorno à pergunta que você me fez no início: O que podemos fazer? Quando lutamos pelo nosso direito de falar livremente sobre a Palestina, estamos lutando pelo nosso direito de falar livremente sobre outras coisas também. As duas questões não devem ser separadas, porque estão interligadas. O mundo precisa entender que isto não diz respeito apenas aos palestinos.
Estamos diante de muitos governos que têm medo da liberdade de expressão, porque ela não lhes facilita as coisas, porque não gostam das demandas legítimas das pessoas. Então, estão usando esse contexto para se inclinarem a certo autoritarismo.
Você nasceu, cresceu e viveu em Israel até 2007. Que mudanças foi percebendo ao longo das décadas e como vive e sente a situação atual?
Israel foi dando passos rumo a um maior fanatismo e racismo, também com conotações para uma espécie de teocracia, que é o que o sionismo mais religioso busca. Essa é a principal mudança que vi nos últimos 50 ou 60 anos. No entanto, como historiador, também entendo que o problema não é como se tornou um país mais racista, porque há algo de ruim na própria ideia de impor um Estado judeu na Palestina, contra a vontade dos palestinos, contra a vontade do mundo árabe.
O que mudou é que os israelenses já não aparentam democracia e universalismo. Agora, fica mais evidente que se você apoia o sionismo em Israel, não está apoiando a democracia. A ideia de “sim, somos colonizadores, mas também somos socialistas ou democratas” cai por seu próprio peso. Ocupar ilegalmente, aplicar o apartheid, negar direitos e igualdade em função da religião ou da etnia não é democrático, nem socialista.
Eu penso nos meus próprios filhos, não em mim. Sempre digo que é corajoso lutar por um Israel diferente na Palestina, mas se você não quer lutar por isso, deveria sair. Eu pretendo voltar cada vez mais, porque acredito que devemos lutar por um Estado democrático para todos.
Que futuro você vê em Gaza?
Depende do que o mundo fizer. Israel sabe o que quer fazer: quer expulsar mais pessoas do norte de Gaza para o sul, transferir a população israelense para a Faixa, anexar o norte e inclusive o resto. Espera que seja algo tão imparável que muitos palestinos fujam para o Egito, como alguns já fizeram. Este é o plano israelense.
Não estão pensando na reconstrução. No entanto, não acredito que alcancem o seu objetivo, porque o Hamas continuará existindo e lutando contra eles. Agora, depende também do que o mundo inteiro fizer. Será permitido que as coisas sigam assim? Esta política criminosa que implica um genocídio em si continuará sendo facilitada?
A curto prazo, não haverá mudanças. Mas a longo prazo, sim, poderão ocorrer processos que podem beneficiar a Palestina.
Qual está sendo o papel da Europa? O que pode fazer que não está fazendo?
Deve impor sanções a Israel já, amanhã mesmo. Assim, claramente. Se almeja ter um papel na história, deve agir.
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“O genocídio na Palestina, a crise climática, a pobreza e o racismo têm as mesmas causas”. Entrevista com Ilan Pappé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU