11 Setembro 2024
As grandes potências não estão levando a sério as demandas do Sul Global. Washington, Pequim e Moscou podem ter muitas diferenças, mas compartilham um acordo: enxergar os países do mundo não desenvolvido como parte de um campo de batalha onde travam suas disputas hegemônicas.
O artigo é de Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global do Instituto Quincy e membro não residente do Conselho de Risco Estratégico, Washington, DC, publicado por Nueva Sociedad, 10-09-2024.
A expressão "Sul Global" é evocativa, mas também gera uma gama de reações. Para alguns, representa um projeto emergente por parte das nações mais pobres e anteriormente colonizadas que exigem justiça global, solidariedade e equidade. Outros são mais céticos quanto ao potencial de ação coletiva, destacando a grande diversidade e os diferentes interesses dentro do mundo "em desenvolvimento". Para outros, é um constructo problemático centrado no Estado, que desconsidera a solidariedade nacional das minorias raciais em todos os lugares, inclusive no mundo rico.
Eu considero, entretanto, que o Sul Global é um constructo relevante e útil. Mas não exatamente da forma como muitos de seus críticos — e defensores — o descrevem. Buscar um grande projeto de solidariedade ou um líder único é tentar responder às perguntas erradas. O Sul Global de hoje é melhor descrito não como uma coletividade organizada, mas como uma estrutura analítica baseada, acima de tudo, na geopolítica.
Isso não significa negar que estruturas alternativas revelem verdades importantes. A longa sombra do colonialismo explica muitas das falhas e conflitos atuais. A marginalização econômica e a crise da dívida são realidades dolorosas em grande parte do mundo "em desenvolvimento", que já se encontra abalado pelos abusos da era neoliberal e pelas consequências da covid-19. A grande diversidade entre esses Estados também é algo que não pode ser subestimado em nenhuma análise.
Mas mais pertinente e útil é entender o Sul Global como um "fato geopolítico". A lógica geopolítica revela uma vasta faixa de Estados na América Latina, África, sul da Ásia, sudeste asiático e nas ilhas do Pacífico que se encontram fora do núcleo do sistema das grandes potências, composto pelas três grandes — Estados Unidos, China e Rússia — e seus principais aliados. Os Estados que estão no centro do sistema das grandes potências (especialmente aqueles sob um guarda-chuva nuclear) desfrutam de uma elevada sensação de segurança, status e oportunidades econômicas. Mas o Sul Global precisa se virar em um sistema internacional que não domina e que é governado por regras que, em sua maioria, não criou.
Uma vez que entendemos o Sul Global como um "fato geopolítico", abre-se a porta para entender melhor o que esses Estados desejam. Claro, cada Estado tem necessidades específicas, ajustadas às suas condições locais. Mas podem ser identificados dois interesses predominantes.
O primeiro é a urgência de "alcançar" o núcleo. Os Estados do Sul Global querem ascender no sistema internacional. Isso significa não apenas uma ascensão econômica, mas também uma elevação de status. Mesmo nos Estados de renda média, que tiveram melhores resultados do que outros, há uma clara sensação de querer mais. Isso inclui ajudar a definir as regras da ordem mundial em evolução, proteger-se contra sanções econômicas futuras e salvaguardar sua soberania. Este último aspecto se acentua devido aos projetos incompletos de criação de nações e Estados que caracterizam os Estados pós-coloniais.
O segundo aspecto é que praticamente todos os Estados do Sul Global estão fundamentalmente não alinhados na "competição entre grandes potências". Em primeiro lugar, desempenharam um papel modesto no desencadeamento dessa competição, e a maioria está decidida a não escolher um lado e não ser arrastada por ela. Embora isso não exclua alinhamentos estratégicos, esses geralmente têm um alcance limitado e é muito improvável que se convertam em alianças formais. A cobertura costuma ser a resposta mais comum em nossa era de unipolaridade declinante.
Essa compreensão do Sul Global, mais realista e baseada em interesses nacionais, significa que as visões idealistas estão mortas? Não completamente. Os grandes esforços coletivos para criar um novo mundo de paz e igualdade talvez sejam coisa do passado. Mas continuam a existir esforços de coordenação em menor escala para alcançar resultados práticos em alguns âmbitos.
Tomemos como exemplo os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Embora frequentemente descrito como uma agrupação do Sul Global, na verdade é uma coalizão do que eu chamei de "Leste Global" (China e Rússia) e do Sul Global. Os dois componentes dos BRICS têm interesses diferentes. O Sul Global vê valor na coalizão devido aos numerosos fracassos da ordem liderada pelos Estados Unidos. Outro exemplo são os esforços coletivos sobre a mudança climática realizados nas COPs do G-77, assim como a ampla participação do Sul Global nas ações jurídicas internacionais em relação a Gaza. Um mundo centrado nos interesses nacionais sempre terá algum espaço, embora limitado, para os esforços coletivos.
A maioria dos Estados do Sul Global não está interessada em uma mudança radical da ordem existente. Tampouco veem Washington como um adversário. Na verdade, prefeririam manter excelentes relações com os Estados Unidos, embora em um mundo sem primazia americana. Seu crescente afastamento da ordem liderada pelos EUA deve-se a restrições sistêmicas que limitam sua ascensão e às transgressões e padrões duplos das políticas de Washington.
Um exemplo concreto dessas limitações é o regime de sanções internacionais. Esse regime se expandiu a tal ponto que mais de um quarto dos países e quase um terço da economia mundial são atualmente alvo dessas sanções.
Delas, as sanções secundárias, que se tornaram uma ferramenta preferida de Washington na "competição entre grandes potências", são as que despertam maiores preocupações. Embora os Estados Unidos afirmem repetidamente que essas sanções — que a maioria dos juristas internacionais considera ilegais — não são direcionadas ao Sul Global, esses Estados não veem assim. O regime de sanções secundárias, por sua vez, é possibilitado pela hegemonia global do dólar americano, o que faz da desdolarização um importante interesse comum em grande parte do Sul Global.
No entanto, é mais fácil falar de desdolarização do que colocá-la em prática. Os BRICS fizeram disso um foco importante de sua retórica. Mas para que haja progresso, seria necessário que os bancos centrais dos Estados membros abrissem mão de certo grau de soberania: uma tarefa árdua. Além disso, como a China é, de longe, a maior potência comercial dos BRICS, a Índia se preocupa com o domínio de Pequim em qualquer acordo monetário alternativo impulsionado pelos BRICS.
Também estão sendo feitos esforços para alcançar a desdolarização além dos BRICS, com resultados mistos. Graças ao fator impulsionador das amplas sanções ocidentais contra a Rússia após sua invasão ilegal da Ucrânia, Moscou se inclinou marcadamente em direção a Pequim. O resultado é que o yuan substituiu o dólar como moeda dominante no comércio bilateral. As exportações indianas para a Rússia estão em alta, graças ao comércio bilateral que cada vez mais utiliza as rupias.
O Sudeste Asiático e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) também estão pressionando para aumentar o uso de moedas locais nas transações regionais. Em 2023, cinco países da ASEAN, incluindo Indonésia e Cingapura, assinaram um acordo para estabelecer um sistema regional de pagamentos transfronteiriços no qual os consumidores realizarão esses pagamentos utilizando um código QR, evitando o mercado de câmbio.
A Indonésia também assinou acordos com a China, Índia, Japão e Coreia do Sul para negociar em moedas locais.
As grandes potências estão levando a sério as demandas e estratégias do Sul Global? Infelizmente, não o suficiente. Em Pequim, Moscou e Washington, há uma tendência de ver o "resto" predominantemente como campos de batalha na competição entre as grandes potências ou simplesmente como vítimas. O Sul Global, no entanto, é mais aspiracional do que qualquer outra coisa. Não busca um salvador nem pretende assumir esse papel, mas deseja que aqueles que bloqueiam sua ascensão saiam do caminho.
As grandes potências também resistiram a reformar o sistema internacional para se alinhar melhor com a maior autonomia e poder do Sul Global. Pequim é provavelmente o maior obstáculo à tão necessária reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os percentuais de votos no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial continuam fortemente enviesados a favor dos Estados ocidentais ricos. Washington tem falado pouco sobre o financiamento internacional de políticas climáticas. E não parece haver disposição em Washington, Moscou e Pequim para retroceder na marcha constante em direção a uma competição militarizada entre grandes potências. Essas potências são incapazes de ver as novas realidades do vasto centro, em grande parte porque o Sul Global continua sendo um enigma que estão condicionadas a não entender.
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O que quer o Sul Global? Artigo de Sarang Shidore - Instituto Humanitas Unisinos - IHU