12 Dezembro 2019
"A massificação do desemprego estrutural e a ampliação dos 'famélicos da terra' tornam a instabilidade social uma ameaça permanente. Como a 'prosperidade capitalista' nunca foi e nem será para todos, as políticas de morte passam a ser a forma de conter a crise social e garantir a manutenção da ordem. A normalização de políticas orientadas para a eliminação física de setores da população passa pela desumanização do 'outro'", escreve Erick Kayser, doutorando em História na UFRGS.
O neoliberalismo é comumente associado a um conjunto de políticas econômicas como a defesa de um Estado mínimo, a austeridade fiscal nas contas públicas, defesa intransigente da propriedade privada e do livre mercado etc, mas o neoliberalismo é muito mais do que isso. Atualmente ostentado uma condição política hegemônica no mundo, sua abrangência o associa a um conjunto de transformações sociais de profundo impacto nas sociedades contemporâneas. A escalada de mercantilização de diferentes dimensões da vida social, por exemplo, é indissociável desta condição hegemônica de uma racionalidade neoliberal. Contudo, o neoliberalismo possui uma face oculta e publicamente negada por seus ideólogos propagandistas, que é sua a vinculação ao autoritarismo e a políticas de morte.
Para alguém menos familiarizado com a história das ideias neoliberais, pode parecer um tanto exagerado apontar para uma incompatibilidade entre a doutrina neoliberal e a democracia e, principalmente, sua associação a políticas deliberadamente promotoras de mortes. Sinteticamente se buscará expor aqui como esta não é uma associação fortuita ou contingente, mas sim uma condição ontológica que estrutura a própria “razão” neoliberal. Neoliberalismo e necropolítica não são a mesma coisa, eventualmente um poderia ocorrer sem amparar-se no outro, mas a recorrência com que nas últimas décadas ambos se encontraram interligados, nos leva a apontar para uma vinculação orgânica e talvez indissociável. O autoritarismo político surge como princípio que articularia neoliberalismo com as necropolíticas. Vejamos primeiro a incompatibilidade entre neoliberalismo e democracia.
Ainda que em sua retórica os neoliberais afirmem defender os preceitos democráticos históricos do liberalismo clássico, em termos práticos, invariavelmente as políticas neoliberais se estabeleceram através de expedientes antidemocráticos. Não é um “acaso” que a primeira experiência de governo neoliberal no mundo tenha sido na década de 1970 no Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet. Promotora de inúmeros crimes contra a humanidade, o banho de sangue de Pinochet foi vendido ao mundo por vezes como inexistente ou então como um “mal menor” frente as conquistas do chamado “milagre chileno”. Mesmo que tal milagre econômico jamais tenha efetivamente existido e que, pelo contrário, promoveu resultados sociais perversos ao povo do Chile, estas políticas se mostraram uma eficiente peça de propaganda para exportar o “modelo chileno” para outros países. Na década de 1980, com a chegada de Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra, ocorreu um processo de rápida expansão de governos neoliberais no Ocidente e periferia ocidentalizada, tendo a consolidação global da hegemonia neoliberal facilitada na década de 1990 com o fim do bloco soviético.
Mesmo com pífios resultados econômicos para as populações atingidas por suas políticas, este não tem sido um obstáculo para a continuidade e expansão do neoliberalismo. Ao contrário, as crises e variados reveses têm sido habilmente utilizados para fortalecer o próprio neoliberalismo. As constantes crises não tem servido para revelar a falência das políticas neoliberais, mas, aplicando o que a escritora canadense Naomi Klein definiu como Doutrina de Choque, onde as crises são gestadas e administradas como meio para um aprofundamento das politicas que levaram a sua própria ocorrência. A lógica que tem imperado é de que “não foram aplicadas politicas verdadeiramente neoliberais”, tendo portanto que elevar ainda mais o “remédio amargo” da austeridade para uma prometida prosperidade futura. Caso o povo não concorde com este “diagnóstico”, o que invariavelmente ocorre face o caráter excludente destas medidas, são criadas condições institucionais para a eliminação da vontade popular nos rumos da economia do país. Assim, efetivou-se uma autonomização dos governos da condução da economia, através de mecanismos como a autonomia dos Bancos Centrais, criação de agências reguladoras transnacionais que interferem nas políticas locais, entre outras, conduzidas de forma “técnica”, imunes ao sufrágio popular. Assim, mesmo que nem sempre as políticas neoliberais tenham sido impostas por ditaduras, em contextos de normalidade democrática, governos neoliberais eleitos resultaram em algum nível de restrição democrática.
Como uma ideologia a serviço do status quo o neoliberalismo soube conviver e assimilar a uma gama de políticas e estruturas de desigualdades (racismo, machismo, xenofobia, etc) que não necessariamente lhe seriam inatas. Desta forma que veremos, por exemplo, variadas manifestações do conservadorismo político, por vezes rivais entre si, igualmente estarem perfiladas na defesa da ordem econômica neoliberal. As diferenciações internas entre as forças políticas que sustentam o neoliberalismo, são subsumidas frente a defesa comum do Capital e, principalmente, no prolongamento da hegemonia neoliberal. Em última instância, a economia efetivamente é o que determina a convergência de interesses entre os diferentes grupos assimilados ou propulsores do neoliberalismo e levam adiante a implementação de políticas que aprofundam contradições sociais incontornáveis.
O resultado de quase meio século de políticas neoliberais é o aprofundamento das desigualdades sociais a níveis dramáticos, onde o século XXI registra uma estratificação de classe que retrocede a níveis similares aos registrados no século XIX. Não se trata propriamente de uma volta ao passado, em alguns aspectos, guarda um ineditismo perverso, por exemplo, jamais na história do capitalismo os ricos foram tão ricos e a distância que os separa das camadas empobrecidas tão elevada. O neoliberalismo, como “cimento ideológico” estabelece a estrutura discursiva que edifica estas desigualdades. Dentro de uma perspectiva onde toda e qualquer dimensão da vida social deve, de alguma forma, estar subsumida e incorporada a lógica do capital, tudo aquilo que se mostrar imune ou representar algum obstáculo a mercantilização plena da vida, deverá ser eliminado. Para a mercantilização da vida, paradoxalmente, a própria vida deve ser eliminada, principalmente a dos “indesejáveis”, daqueles cuja condição existencial encontra-se precarizada ao ponto de serem descartáveis.
A questão que se impõe neste ponto é que na atual fase do capitalismo, reconfigura-se a noção de sujeitos, como argumenta Wendy Brown, entraria em cena a figura contemporânea do homo oeconomicus. Para os neoliberais, os seres humanos seriam apenas e em todos os lugares homo oeconomicus que toma forma como capital humano de valor, onde todas as ações cotidianas são orientadas por este princípio. Devendo todos serem empreendedores de si, aqueles que escapam ou não se enquadram nessa lógica, imediatamente tornam-se dispensáveis. A exclusão econômica é a mais evidente das formas com que ocorre esta secção entre pessoas uteis e adequadas ao sistema, daqueles indesejáveis, excluídos do mercado de trabalho por não serem merecedoras do “direito” de serem exploradas.
A massificação do desemprego estrutural e a ampliação dos “famélicos da terra” tornam a instabilidade social uma ameaça permanente. Como a “prosperidade capitalista” nunca foi e nem será para todos, as políticas de morte passam a ser a forma de conter a crise social e garantir a manutenção da ordem. A normalização de políticas orientadas para a eliminação física de setores da população passa pela desumanização do “outro”. Cria-se uma distinção entre as “vidas vivíveis” daquelas que não o são, como aponta a filósofa estadunidense Judith Butler, ser portador de uma vida passível de luto, ser reconhecido como uma pessoa, um cidadão, não é para todos. Será desta divisão entre vidas passíveis de luto daquelas cuja condição de humanidade é negada que se impõe um discurso que modela e oprime minorias — mulheres, muçulmanos, gays, imigrantes, refugiados e prisioneiros de guerra. Assim, a violência ocupa um lugar incontornável na estruturação do poder político contemporâneo.
Esta relação entre poder e violência, entre vida e morte, nos traz a necropolítica, conceito do intelectual camaronês Achille Mbembe. Em termos teóricos, a necropolítica demarca uma alteração na forma com que são exercidas as noções de soberania e poder, que passam a ser estruturadas a partir do princípio de quem pode viver e quem pode morrer. Mbembe exemplifica com as políticas de Bush pós-11 de setembro e particularmente com o contexto africano, com os casos de ditaduras que emergiram após guerras civis e implantaram políticas de extermínio étnico. Atualmente, podemos enquadrar governos como de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, a Arábia Saudita com sua monarquia absoluta teocrática da família Saud, Netanyahu em Israel e, certamente, Bolsonaro no Brasil, como orientados a partir do princípio de necropoder.
Estas noções de “necropolítica” e “necropoder” nos ajudam a compreender, como aponta Mbembe, “as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar 'mundos de morte', formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de 'mortos-vivos'.”
As políticas de morte, em termos econômicos, vão além de sustentarem a indústria bélica, mas respondem a uma forma de controle social total, que busca contornar as contradições e fissuras sociais inerentes a crise de acumulação do capital. Como temos buscado demonstrar aqui, a necropolítica está diretamente associada ao neoliberalismo e aponta para uma nova forma de autoritarismo, como argumenta Mbembe no artigo A era do humanismo está terminando: “Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.”
Este é um quadro geral que, ainda que possua importantes diferenciações regionais, impõe-se em todas as latitudes do planeta. Cabe observar alguns sinais de evolução interna deste necropoder neoliberal, onde a América Latina ocupa um lugar especial, servindo de “laboratório” para novas formas de sua estruturação. Surge com lugar de destaque o Brasil governado por Bolsonaro, onde seu apelo a políticas de morte, associado a um neoliberalismo radical, poderá evoluir para um tipo de “Estado Miliciano”, onde um conjunto expressivo de agentes do aparato de segurança do Estado passam a atuar de forma semicoordenada para o butim e o controle político exercido através das armas.
O desmantelamento do Estado, eliminando o arcabouço de proteção social e de bloqueio a qualquer perspectiva de desenvolvimento econômico (com óbvias consequência de pauperização do povo), associado a um aparelhamento político jamais visto no país (englobando o próprio judiciário através do lavajatismo), poderão erodir por completo o aparato estatal em termos de impessoalidade e republicanismo, passando a imperar um violento poder discricionário. Pior que isso, a apropriação privada do espaço público para fins de locupletação e a expansão da associação entre crime organizado e agentes de segurança pública, sugerem a nacionalização do modus operandi das milícias cariocas, facilitada ou estimulada pelo próprio governo federal. A seguir o bolsonarismo sem freios em sua marcha para a construção de um Estado Miliciano, poderemos testemunhar uma grotesca e inédita necropolítica neoliberal, onde a morte mais do que banalizada, passe a ser celebrada.
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Neoliberalismo e necropolítica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU