18 Setembro 2024
Poucas pessoas no mundo sabem tanto como ele sobre a história do século XX e poucas pensaram tanto sobre a guerra. Richard Overy é um importante historiador britânico que publicou muita coisa sobre a história da Segunda Guerra Mundial e a Alemanha nazista. Em 2007, foi editor de A História Completa do Mundo, pelo The Times, e foi responsável pela escolha das 50 datas-chave da história mundial.
Professor de História na Universidade de Exeter, escreveu e editou mais de 30 livros, incluindo Why the Allies Won (1995); Russia’s War: Blood upon the Snow (1997); The Dictators: Hitler’s Germany and Stalin’s Russia (2004) e A History of War in 100 Battles (2014).
Seu trabalho foi aplaudido por ser ao mesmo tempo academicamente rigoroso e atraente para um público amplo: “Original e importante” (New York Review of Books) e “de vanguarda” (Times Literary Supplement).
Seu último livro, Why war? (2024), é singular, no sentido de que não se concentra em um acontecimento específico, sendo uma reflexão mais profunda sobre a origem da guerra. Publicado em inglês neste ano, suscitou muita atenção e debates.
“Se as pessoas estudassem mais, compreenderiam todas as dimensões e consequências de escolher a guerra como uma opção e poderiam ser menos violentas. Contudo, as pessoas não agem assim. As pessoas que hoje comandam as guerras não estão interessadas em história; estão interessadas na vitória”, diz Overy de seu escritório em Exeter, via Zoom.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 31-08-2024. A tradução é do Cepat.
A minha primeira pergunta é como o título de seu último livro: Por que a guerra persiste no século XXI?
Em meu livro, tento rastrear as raízes da beligerância humana que remontam à pré-história, que os cientistas usam para mostrar por que os humanos se tornaram violentos. Aconteceu há muito tempo, mas é um padrão que foi incorporado, penso eu, na experiência humana, e simplesmente escalou das pequenas guerras tribais de milhares de anos atrás às grandes guerras de hoje. Mas o princípio, a ideia de que de alguma forma a sua própria segurança, a sua própria oportunidade, o que quer que você queira, ao final, pode ser melhor alcançado através da violência, é algo que permeia toda a história da humanidade.
Até as guerras de hoje, na Ucrânia e em Gaza?
Os casos da Ucrânia e de Gaza se encaixam muito bem neste padrão. São “guerras de oportunidade” clássicas, feitas (supostamente) para tornar a Rússia e Israel mais seguros, mas, ao contrário, o efeito da guerra tem sido levar todos a se sentirem mais inseguros. No entanto, este é um padrão típico.
Na guerra da Ucrânia, (a Rússia) se preocupa com a fronteira, com as ameaças que enfrenta etc., não estão seguros sobre como vão responder à OTAN, então, ao final, pensam que a guerra pode ser a melhor opção. Uma guerra rápida e curta. No entanto, agora, Putin tem uma guerra longa e complicada.
A mesma coisa acontece no caso de Netanyahu e de Israel. (A ideia) de que “temos que tornar Israel realmente seguro, enfrentando sempre estas ameaças, portanto, supostamente com uma guerra curta e dura em Gaza eliminamos o Hamas”. (Mas) não é o que fizeram. Quase um ano se passou, com um nível extraordinário de violência e nenhuma solução à vista.
É muito tentador dizer que todas as guerras são jogos de soma zero, mas é claro que não são. Em muitos casos, as pessoas ganham muito, mas estes dois casos são um exemplo clássico de pensar que a única forma de estar seguro é lutar, mas lutar na verdade o torna mais inseguro.
Em sua opinião, como humanos, estamos determinados a ser essas criaturas violentas que decidem lutar entre si, mesmo neste século em que há mais informação e conhecimento disponíveis?
Seria possível pensar que chegamos ao ponto em que se diz: não mais guerra. Que sabemos o suficiente sobre a história passada, ou mesmo sobre a história do século XX, para dizer não mais guerras. Contudo, isto não acontece. Na maior parte do tempo, não estamos em guerra, a maioria das pessoas não está lutando, os seres humanos não são perpetuamente beligerantes.
É simplesmente com o tempo, quando enfrentam um determinado momento de crise, medo, insegurança ou seja lá o que for, ou ambição, que recorrem à guerra como um de seus instrumentos. E, claro, não é apenas um de seus instrumentos, é o instrumento mais mortal e destrutivo. No entanto, é ainda algo que as pessoas vão buscar no século XXI.
Falamos de Israel e da Rússia, mas deveríamos pensar na violência em Myanmar, na África, na Síria. Este tem sido um século quase tão violento quanto o século passado. O século XX, é claro, foi o século de duas guerras mundiais e deveria ter ensinado uma grande lição à humanidade. Não entanto, não é assim. Agora, estamos falando da Terceira Guerra Mundial...
Você dizia que as guerras, hoje, não são sobre ganhos, mas sobre vitória. O que realmente está em jogo aqui?
Como eu disse, penso que no caso dessas duas grandes guerras atuais, na Ucrânia e no Oriente Médio, isto se tornou uma questão de segurança: “Como podemos garantir a nossa segurança? Só a conseguiremos derrotando a Ucrânia. Só poderemos tê-la eliminando o Hamas”. É isto que quero dizer com vitória. Para eles, é algo pensado como tudo ou nada. Portanto, em nenhum dos casos estão dispostos a fazer concessões.
E podemos retroceder na história dos últimos dois ou três séculos e vermos que há muitos pontos em que o sensato era alcançar um compromisso, um acordo: 1915, na Primeira Guerra Mundial. Por que não se sentaram à mesa e disseram: isso é um absurdo, simplesmente, estamos nos matando? Vamos alcançar algum tipo de compromisso? No entanto, não agiram assim. Quanto mais você se compromete com a guerra e com a ideia de vitória, mais a enxerga como um tudo ou nada, sendo mais difícil sair de um conflito. E veremos isto novamente no século XXI. Receio que estas não serão as únicas guerras neste século.
Existe alguma relação entre gênero e guerra? Eva Illouz afirmou que as mulheres alcançaram o poder em diferentes campos, mas não no âmbito do controle das armas. Isto influencia na continuidade da guerra?
Sim, absolutamente. Há muitos debates sobre isto na história. Os antropólogos exploram particularmente a divisão de gênero, como surgiu muito cedo e quais foram as suas consequências. Agora, há alguns historiadores que dizem: não, não está certo, podemos ver muitos exemplos de mulheres lutando. Mas, na realidade, são um punhado de mulheres aqui e outro ali.
Agora, temos mulheres nas forças armadas do Ocidente, é verdade, mas o que você destaca está absolutamente correto: esta é uma atividade particularmente sexista. Sair com seus tanques, com seus drones, com seus aviões etc., é algo muito masculino, em um mundo muito masculino. Penso que não seria exagero dizer que é um padrão no comportamento humano. Ele pode ser visto provavelmente em dezenas de milhares de anos, e ainda não saímos dele.
Sim, seria muito melhor se a Rússia agora fosse governada por uma mulher ou se Golda Meir fosse novamente primeira-ministra de Israel. Quando você olha para essas duas guerras, consegue ver como são essencialmente masculinas. Putin está cercado por estes generais durões e assim por diante. É isto que os homens acreditam que fazem ou acreditam que deveriam fazer. E sim, só me resta desejar que houvesse mais mulheres em posições de destaque nos governos.
Como enxerga o fim da guerra na Ucrânia?
É um conflito tipicamente insolúvel. Se a Rússia tivesse vencido rapidamente, todos teríamos lamentado, mas tudo teria terminado. Teria conseguido o território que queria, derrubaria Zelensky e conseguiria o que queria. Não conseguiu. O problema é que para Zelensky conseguir mais, precisa de uma contribuição maior da OTAN, e quanto mais a OTAN se envolve, mais a situação se torna perigosa, pois Putin pensa que a Rússia enfrenta uma crise existencial e que talvez tenha de recorrer a armas nucleares. Então, isso não vai acontecer.
Penso que, ao final, Zelensky terá de fazer concessões. No momento, a intervenção ucraniana na Rússia é bastante interessante do ponto de vista estratégico. Isto é o que eu realmente esperava que fizessem ao longo deste ano, e pode ser um ponto de negociação com Putin, mas pode acontecer totalmente o contrário, que se torne cada vez mais difícil chegar a algum tipo de acordo.
Em última instância, penso que a Ucrânia terá de abandonar as áreas do sul que foram tomadas pela Rússia e poderá ter de abandonar qualquer ideia de se unir à OTAN e à União Europeia. Precisa encontrar uma solução que mantenha Putin satisfeito, sem envolver o Ocidente em um conflito maior. É um conflito particularmente complicado, sem um final imaginável neste momento.
Apesar dos enormes custos para cada lado…
Sim, um custo elevado para ambas as partes. O mais sensato realmente seria se sentar à mesa e dizer: olha, precisamos chegar a algum tipo de acordo. Não conseguiremos recuperar isto, mas vocês também não obterão mais nada. E com os russos dizendo sim, tudo bem, vamos deixá-los em paz, se ficarmos com apenas isto. Esperamos que isto aconteça este ano, mas é difícil prever se acontecerá... Penso que se Zelensky insistir em que a condição para chegar a um acordo é que Putin lhe permita se unir à União Europeia e à OTAN, Putin dirá não e a guerra continuará.
Sendo um dos maiores especialistas sobre a Segunda Guerra Mundial, como foi para você ver novamente uma guerra em seu continente?
Estou profundamente deprimido com isso. Vejo as notícias todos os dias, acompanho a guerra. E penso nos historiadores daqui a 100 anos, quando olharão para trás e escreverão a história, tal como eu escrevo a história do século XX. Penso que ficarão perplexos ao tentar explicar o que aconteceu. Olharão para isto, assim como quando nos lembramos da Primeira e a Segunda Guerra, e vão se perguntar: como foi possível que isso tenha acontecido? Estou muito decepcionado com isso. Penso que os europeus viveram em uma espécie de bolha, durante os últimos 70 anos, após a Segunda Guerra Mundial.
Por quê?
Estamos seguros, somos cada vez mais ricos. Temos algum peso, não muito peso, mas algum peso no mundo. No entanto, a violência sempre existiu ao nosso redor, no mundo todo, durante os últimos 70 anos. Fechamos um pouco os olhos. Mesmo agora fechamos os olhos diante dos conflitos sobre os quais não queremos saber nada: Myanmar, Sudão etc. Então, não tenho ilusões de que vivemos em um mundo pacífico. Obviamente, desejaria que fosse, e quem não gostaria? Contudo, como historiador, sei que isso não é uma realidade.
Vamos conversar sobre o que está acontecendo em Gaza. Embora bombardear a população civil seja ilegal, é o que acontece repetidas vezes.
Os instrumentos jurídicos, a Convenção de Genebra de 1949, os protocolos adicionais de 1977, todos eles foram concebidos para proteger os civis dos efeitos da guerra, especialmente dos bombardeios. E foram absolutamente ineficazes. E, é claro, não temos uma guerra nuclear, (mas) não existe nenhum instrumento jurídico internacional que impeça o lançamento de uma bomba nuclear. Desde a Segunda Guerra Mundial, existe a intenção de evitar que aconteça o que houve na Segunda Guerra na Grã-Bretanha, Alemanha e Japão. No entanto, tem sido notavelmente ineficaz na Coreia, no Vietnã etc. E mais recentemente na Síria e agora em Gaza.
Como isso pode acontecer?
A resposta simples é que (se) os líderes militares e políticos pensam que é o que devem fazer, farão e ninguém será capaz de detê-los. Seria possível pensar em uma combinação de Estados dizendo a Israel que cada ataque que empreende é um crime de guerra e que precisa parar. No entanto, ninguém faz isto. E, de fato, Israel nega que qualquer um destes sejam crimes de guerra. É claro que são crimes de guerra! Não é permitido atacar um alvo militar imaginário em meio a uma área civil densamente povoada. E fazem isto todos os dias da semana.
E no final desta guerra, essas pessoas não irão a julgamento. Ninguém vai dizer que cometeu crimes de guerra atrás de crimes de guerra. Simplesmente vão dizer: bem, queríamos eliminar o Hamas e foi o que fizemos. Não é o que fizeram, é claro, mas é o que pensam.
É bastante interessante refletir sobre a Segunda Guerra Mundial, quando novamente a ideia era que se a Alemanha fosse bombardeada com intensidade suficiente, o povo se revoltaria e Hitler seria derrubado. Ou no Japão, se fosse bombardeado o suficiente, certamente se renderiam. E em nenhum dos casos funcionou. Acabaram matando seiscentos ou setecentos mil civis, sem levar realmente a uma rendição.
Isto significa que as organizações internacionais, a começar pela ONU, estão falhando em uma de suas principais missões?
Sim, sim, um fracasso total. Todos sabiam que havia limites para o que as Nações Unidas poderiam alcançar. E a maior parte da manutenção da paz tem sido realizada em pequenos Estados falidos ou em guerras civis nas quais forças externas podem desempenhar um papel. Contudo, quando se trata de qualquer grande potência, existem limites totais ao que as organizações internacionais podem fazer.
Então, alguém poderia dizer, bem, por que se incomodar em ter estas organizações? Penso que é tentador argumentar assim. Sim, fazem muitas outras coisas muito boas, é preciso reconhecer, mas a única coisa com que estavam comprometidas, que é manter a paz, está fora de seu alcance.
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“Este tem sido um século quase tão violento quanto o século passado”. Entrevista com Richard Overy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU