16 Junho 2023
Há muitos anos, Alfredo González-Ruibal (Madri, 1976) pesquisa a história da violência e, como arqueólogo, segue seu rastro tanto em sítios milenares quanto em escavações correspondentes a épocas contemporâneas.
Com essa perspectiva, acaba de publicar Tierra Arrasada (Crítica), livro em que explica a história humana a partir de vários episódios de violência em guerras, que lhe permitem estudar da Alemanha nazista – “O projeto de limpeza étnica de Hitler triunfou” – ao mundo romano – “Roma usava a violência com uma finalidade pedagógica”.
Depois dessa evolução, a espécie humana aprendeu alguma coisa? González-Ruibal argumenta que sim, porque, no passado, a guerra na Ucrânia teria sido muito pior, mas, alerta, a mudança climática já está se traduzindo em uma extensão da violência em vários pontos do planeta.
A entrevista é de Fèlix Baldia, publicada por La Vanguardia, 15-06-2023. A tradução é do Cepat.
De onde surge a ideia de escrever uma história sobre a violência da guerra?
Trabalhei muito na arqueologia do conflito contemporâneo e isso me levou a abordar muitos casos diferentes. Há dois anos, dei uma aula sobre esse tema e percebi que ninguém havia contado a história humana a partir da arqueologia da violência. Vi que essa disciplina poderia oferecer uma forma diferente de olhar a história, porque dos primeiros estados à atualidade, a violência deixou rastros, há histórias muito fortes que podem muito bem ser contadas.
A história da violência tem, na realidade, uma dupla dimensão. Por um lado, trata-se de uma prática exercida por uma superestrutura, pelo Estado, que muitas vezes nos leva a acabar contando as coisas com perspectiva e distância, esquecendo as pessoas, que são as que em definitivo sofrem a violência. Minha intenção é narrar essa dimensão, a humana, e como ela se conecta com a outra.
A violência é inerente à civilização?
O que é inerente à civilização é, na realidade, o conflito, mas, ainda que pareça contraditório, o conflito violento não é a norma na história, não é o mais frequente, e dentro deste último, fenômenos como o genocídio são excepcionais. Como possuem um eco muito importante nos meios de comunicação e na divulgação histórica, parecem muito mais frequentes do que são.
Pode-se dizer que passamos muito tempo nos matando em guerras, mas dentro de uma ordem, e esse “dentro de uma ordem” é uma nuance importante, pois se não tivermos isso presente, corremos o risco de nos acostumarmos à violência extrema, e até banalizá-la.
De uma perspectiva histórica, a mudança climática é uma fonte de violência?
Mais do que a mudança climática, são as crises climáticas que estão por trás das explosões de violência. O ser humano é capaz de se adaptar às mudanças do clima, uma evolução já demonstrada em muitas ocasiões. O problema, no entanto, ocorre quando essa mudança é rápida, torna-se imprevisível e as sociedades não conseguem se adaptar a ela. Aconteceu na América do Norte, entre 1.000 e 1.500, por exemplo, e agora está acontecendo em determinadas regiões do mundo, como o Sahel com o terrorismo islâmico, uma questão para a qual as condições do clima não são alheias.
A atual crise climática pode acabar provocando ondas violentas?
É que nas zonas mais afetadas, como a que eu explicava, isso já está acontecendo atualmente. Não obstante, há uma diferença importante em relação ao passado, pois nas sociedades antigas se acreditava que as crises climáticas eram um castigo divino e, agora, isso não é mais percebido assim. Agora, temos maior capacidade de adaptação e mecanismos para abrandar o seu impacto. E, atualmente, também sabemos o motivo pelo qual ocorrem.
Aprendemos alguma coisa com o passado, em termos de violência e guerras?
Sim, porque agora não enfrentamos esse fenômeno da mesma forma que antes. Uma demonstração é que não voltamos a um nível de destruição tão grande quanto ao da Segunda Guerra Mundial, porque temos memória. Em suma, os países não se envolvem em grandes conflitos globais, como os do século XX, porque a opinião pública tem presente a catástrofe humana que representaram. Por isso, a história é tão importante.
Contudo, não é o que a Ucrânia parece confirmar.
O fato da guerra na Ucrânia não ter transbordado para a região, sim, confirma. Se isso tivesse acontecido em 1914 ou 1939, estaríamos totalmente envolvidos em uma guerra mundial, e por enquanto as coisas não são assim. Temos a memória do que aconteceu muito viva, outra questão é por quanto tempo a teremos.
Como é a violência da guerra ou sua percepção, atualmente?
Vivemos uma época muito paradoxal porque, por um lado, existe um plano da guerra em que se mata cada vez mais à distância: os mísseis estratégicos e os drones são dirigidos por pessoas que estão muito longe do lugar onde impactam. Em muitas ocasiões, a guerra se parece muito com um videogame, o que constitui um instrumento muito eficaz no processo de desumanização do inimigo.
Contudo, ao mesmo tempo, embora os governos não queiram que sejam divulgadas, há cada vez mais imagens que mostram o horror resultante dessa violência, muito mais do que antes e é o que estamos vendo na invasão da Ucrânia. Tudo isso cria uma situação muito contraditória.
Historicamente, há vários casos em seu livro que chamam fortemente a atenção quanto à violência. O mundo romano, por exemplo, para nós o berço da nossa civilização, era extremamente violento.
É que desde pequenos na escola e, depois, na divulgação histórica, foi nos transmitido que os romanos são os nossos antepassados culturais, falamos línguas derivadas do latim e o seu legado arquitetônico, artístico e jurídico é imenso. Por isso, pode ser surpreendente para nós saber que o mundo romano praticou a violência de maneiras horríveis e sistemáticas, com o objetivo de esmagar populações inteiras e escravizar os sobreviventes. Era uma forma de usar a violência com uma finalidade pedagógica, atemorizar outros povos para que vissem que se opor a Roma era a pior das opções.
É verdade que a arqueologia não é necessária para isso, porque as próprias fontes clássicas falam dessa violência, mas uma coisa é lê-la e outra é vê-la em uma escavação. Ver as pessoas destroçadas, leva a entender o que aconteceu de uma outra maneira. Esse é o valor da arqueologia, que permite ver e tocar o passado.
Qual é a sensação de um arqueólogo ao se deparar com sítios que contêm vestígios de batalhas, perseguições e execuções?
É duro. Quando você faz uma escavação, não tem constantemente a mesma sensação, pois, nesse caso, não poderia fazê-la, mas há momentos duros e, na prática, você se encontra em uma montanha-russa emocional.
Por exemplo, em uma das últimas escavações em que estive (González-Ruibal esteve na Polônia escavando valas comuns onde foram enterradas as elites polacas, após serem executadas pelos alemães), o trabalho é monótono, mas de repente você encontra algo que impacta, como os óculos de uma das pessoas massacradas e enterradas ali, um objeto muito pessoal.
Outro caso destacável, claro, é a violência nazista, que foi muito diferente no Leste da Europa em comparação com o Oeste.
Normalmente, é mais fácil desumanizar alguém com quem você tem menos semelhanças culturais. No caso dos nazistas, eles já tinham desumanizado os judeus na Alemanha, mas estes eram, afinal, muito parecidos com eles, praticamente indistinguíveis. Quando chegaram à Europa Oriental, viram que os judeus se vestiam de forma diferente, falavam línguas diferentes, muito diferentes da deles, então, esse processo de desumanização foi muito mais rápido e fácil, e a violência teve uma escala maior.
De fato, você argumenta que, de certa forma, Hitler venceu.
Sim, Hitler venceu no sentido de que o processo de limpeza étnica que desejava foi exitoso, e não só pelas mãos dos nazistas, mas também dos aliados que, após a Segunda Guerra Mundial, realizaram movimentos de fronteiras e de grandes massas populacionais. Agora, por exemplo, a grande maioria das pessoas que vivem na Polônia são de cultura polonesa, mas antes da guerra não era assim, era um mosaico de diferentes culturas que, há séculos, viviam lá. Isso se perdeu para sempre.
E na Espanha, que marca deixou a violência da Guerra Civil?
A violência teve uma função pedagógica que consistia basicamente em incutir medo, em deixar uma marca na memória dos sobreviventes. Por isso, agora, não se fala do passado ou quando se fala se faz simplesmente com lugares comuns. Esse é o legado da violência na Espanha.
Nesse sentido, há vinte anos estávamos melhores do que agora, porque hoje estamos em retrocesso nesse aspecto, mas em uma sociedade democrática deveríamos ser capazes de poder analisar os acontecimentos de uma forma muito mais serena e clara.
Qual caso de violência histórica mais te impacta?
Bem, provavelmente, os pogroms nas cidades espanholas do século XIV. Fala-se da expulsão dos judeus de 1492, mas muito pouco dos assassinatos de um século antes, em várias cidades. O que mais me impacta é que foram crimes cometidos em nossas ruas e por um motivo puramente racial e cultural. Cometidos em nossas ruas e por nossos antecessores.
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A história humana a partir da arqueologia da violência. Entrevista com Alfredo González-Ruibal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU