17 Setembro 2024
"Faz parte dos estereótipos da propaganda russa acusar a Ucrânia de não querer a paz, de ser um Estado em falência, de estar dominada pela corrupção", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 15-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por trás do sangrento conflito russo-ucraniano, há um projeto de civilização ou, melhor, a democracia está em jogo? Na primeira posição estão as intervenções do Patriarca de Moscou, Kirill. Na segunda, está o arcebispo maior dos ucranianos greco-católicos, Sviatoslav Shevchuk.
O patriarca vem repetindo sua posição há muitos meses e, mais recentemente, fez isso em seu discurso no fórum internacional das “culturas unidas” (São Petersburgo, 11 de setembro). O segundo, muito menos exposto, expressou seus pontos de vista em Berlim, na tradicional recepção em homenagem a São Miguel diante da liderança do país e da Igreja (10 de setembro).
As duas interpretações não estão no mesmo plano. A solução de Kirill esgota a função da Igreja a uma “civilização” funcional ao poder de Putin. A segunda distingue a tarefa da própria Igreja (evangelização) da urgência histórica de defender os valores de referência que alimentam a dimensão democrática da Ucrânia, mas também das sociedades ocidentais.
Kirill ignora a violência e a desumanidade do conflito em nome de uma civilização “cristã” prerrogativa da Igreja Russa. O segundo parte da dimensão dramática da violência e de sua desumanização para destacar a necessidade de uma “paz justa”.
Falando em 8 de setembro em uma celebração no Mosteiro Sretensky em Moscou, o Patriarca questiona-se retoricamente sobre a perfeita equivalência dos processos democráticos entre Rússia e Ocidente. Os poderes são eletivos, as estruturas internas do Estado são semelhantes, as responsabilidades internacionais são comuns, então por que o conflito?
“Eu quero gritar bem alto. O quê? Não consigo encontrar outra razão senão o fato de que a Rússia e, pela graça de Deus, a Bielorrússia e a nossa Igreja oferecem ao mundo, inclusive ao mundo ocidental, uma alternativa para o desenvolvimento da civilização. Se, no Ocidente, há um entendimento absolutamente errado de liberdade como permissivismo, se lá, sob o pretexto de liberdade, o direito das pessoas de cometer pecado não é apenas incentivado, mas legislado, então esse é o caminho para o fim. Por quê? Sim, porque o pecado não é vital [...]. O pecado só traz divisão”.
Poucos dias depois, ressalta que, já nos tempos de Alexandre Nevsky, entendia-se que as potências orientais (os mongóis) exigiam benefícios materiais da Rússia, enquanto as ocidentais (cavaleiros teutônicos) exigiam a “nossa alma”. Nesse choque de civilizações, a guerra na Ucrânia é reconduzida aos “tumultos” internos que a Rússia vivenciou em várias passagens históricas e que são habilmente geridos pelo “nosso presidente Vladimir Vladimirovich Putin e sua equipe”. Mas, por trás disso, há o “forte apoio do povo e da nossa Igreja” (discurso de 28 de agosto).
A Rússia está familiarizada com as contradições do intelectualismo ocidental formal (Comte, Feuerbach, Marx) e com o processo de desculturação que iniciou uma trajetória suicida. A desculturação, de fato, leva à desumanização. Concede que o cristianismo é universal, mas hoje só encontra defesa no contexto ortodoxo russo.
No Ocidente, não há universalismo, mas globalismo ou, mais propriamente, uma cultura da aniquilação. “Hoje estamos vivenciando um choque entre cultura e anticultura. Essa é uma luta pelo próprio conceito de homem, pelo que o homem é” (discurso em Petersburgo, 11 de setembro).
“Somos chamados – repete - a interromper conjuntamente o processo de desumanização da cultura, restaurando o homem e a humanidade à sua alta dignidade determinada por Deus”.
E, nas respostas subsequentes, especifica a rejeição dos modelos ocidentais.
“Por que falo com tanta confiança de nosso país como escolhido por Deus? [...] Pela capacidade de preservar o que é mais importante. Nisso eu vejo uma certa escolha de Deus. O Senhor está conosco, ele não abandonará a nossa 'Rus”.
Estamos caminhando para uma época apocalíptica em que surgirá a síntese da civilização russa, ou seja, uma civilização científica e tecnológica moderna unida à fé em Deus e aos fundamentos morais da vida humana. Seu ímpeto retórico o leva a afirmações paradoxais:
“A Rússia, apesar de seu poder, é um país muito humilde. Não impomos nada a ninguém, não ocupamos ninguém, não escravizamos ninguém. Estamos seguindo com calma o nosso caminho histórico”.
O bispo Sviatoslav Shevchuk chama seus interlocutores ocidentais à realidade: “Não há dúvida sobre a total crueldade e maldade das intenções geopolíticas e genocidas da Rússia. Putin deixou isso claro e não vai parar diante de nada até que seja obrigado a fazê-lo [...]; seu objetivo é a destruição dos ucranianos e a ‘solução final’ da questão ucraniana”, infelizmente com a ajuda do patriarca que justifica o mal e transforma a Igreja em um instrumento de guerra.
Shevchuk relembra os massacres de Bucha, Irpin, Borodianka, Izium, os 13 milhões de deslocados (8 no exterior e 5 internamente), as casas destruídas (para três milhões e meio de pessoas), as 3.793 escolas e universidades bombardeadas, a devastação do sistema de saúde (1.736 hospitais e clínicas danificados), as 630 igrejas arrasadas. Acrescente a isso a devastação de estradas, pontes (344), estações de trem (126), aeroportos (18) e a ameaça do terrorismo nuclear.
A Igreja não defende a si mesma. Ela está nas mãos de Deus. Ela defende o povo e seu direito à liberdade.
“Conseguimos garantir a liberdade de imprensa e de expressão pública, a liberdade religiosa, a convivência pacífica e a cooperação fraterna entre as igrejas e as organizações religiosas. As recentes decisões tomadas pelo parlamento ucraniano (lei contra organizações religiosas que têm relações com Moscou) visam impedir a transformação da religião em uma arma bélica e numa agressão espiritual contra a nossa liberdade”.
Faz parte dos estereótipos da propaganda russa acusar a Ucrânia de não querer a paz, de ser um Estado em falência, de estar dominada pela corrupção.
Esta última, em particular, é um legado da tradição comunista mais que um fato endêmico.
“A Ucrânia está aprendendo a democracia em condições extremas. Aprende por meio do sacrifício. Adota os princípios de liberdade e responsabilidade em um momento em que as tendências autoritárias e niilistas estão ressurgindo na Europa e cada vez mais pessoas estão se tornando céticas em relação à democracia e aos seus benefícios [...] Esta não é apenas uma guerra na Ucrânia: é uma guerra da qual depende o futuro da democracia na Ucrânia, na Europa e no mundo”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Guerra Ucrânia-Rússia: “Russkij Mir” ou democracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU