26 Junho 2024
A maior crise humanitária é também a mais esquecida. Os países ricos têm outras prioridades e não estão destinando os recursos necessários para evitar “a pior fome em décadas”, segundo a ONU.
A reportagem é de Patricia Simón, publicada por La Marea-Climática, 21-06-2024. A tradução é do Cepat.
O doutor Sachin Desai tem mais de 30 anos de experiência trabalhando nos piores cenários. Recorda poucas ocasiões em que a comunidade internacional tenha destinado tão poucos recursos a uma crise humanitária tão grave como a provocada pela guerra iniciada há um ano no Sudão. Desai é o responsável pela área de desnutrição grave administrada pela organização Médicos Sem Fronteiras no hospital central de Adré, fronteira do Chade com a região sudanesa de Darfur.
Em barracões de paredes descascadas, com macas cobertas com mosquiteiros, cerca de trinta bebês, meninos e meninas, recebem tratamento para reverter o estado de desnutrição em que foram internados. Junto a eles, suas mães, em sua maioria sobreviventes da limpeza étnica que as milícias paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) lançaram contra o povo masalit, mas também mulheres chadianas que são obrigadas a criar os seus filhos em condições quase tão precárias como as das refugiadas.
“Vim há cinco dias porque não conseguia fazê-lo comer, beber e dormir. Agora, sente-se melhor, mas tenho medo de irmos embora e que piore”. Khadija Ahmat tem 27 anos, dois filhos e o marido em N’Djamena, capital do Chade, para onde migrou há dois anos em busca de um trabalho que ainda não encontrou. “Não vim ao hospital antes porque pensava que teria que pagar e não tenho dinheiro”, explica, enquanto tenta fazer o menino beber um pouco de leite de um recipiente de plástico.
O Chade é o quinto país mais pobre do mundo, tem uma população de 17 milhões de habitantes e desde o início do conflito no vizinho Sudão, em abril de 2023, já recebeu quase 700.000 refugiados, sendo 90% mulheres, meninos e meninas. Um deles é a criança de dois anos, de cabelos castanhos claros (sinal de desnutrição), que se esconde sob o pano utilizado por Ihtisam Issakha para cobrir o seu corpo e cabelos.
Issakha chegou a Adré em novembro passado, após caminhar oito horas com os seus dois filhos, saindo de Geneina, a capital de Darfur Ocidental. Assim como ela, dezenas de milhares de pessoas fugiram naqueles dias para o Chade.
As RSF, as milícias árabes que em 2003, sob o nome de Janjawid, praticaram um genocídio contra as minorias negras, seguindo as ordens do ditador Omar al-Bashir, travam agora uma guerra contra o Exército pelo controle do país. Nesta nova limpeza étnica, mais de 14.000 pessoas já foram assassinadas em Darfur, a maioria da etnia negra masalit.
“Não consigo parar de pensar em todas as pessoas que foram assassinadas na minha frente, no meu irmão e em meus outros quatro familiares mortos”, explica Issakha. “As mulheres foram estupradas na frente de todos. Algumas eram mortas e outras deixavam ir”, prossegue com um olhar perdido.
Nas dezenas de entrevistas realizadas, o número de familiares assassinados varia, pois tiveram que fugir durante os primeiros massacres ou no segundo ataque. As mulheres falam da violência sexual do ponto de vista das testemunhas ou deixam entrever que foram vítimas diretas.
A maioria das testemunhas compartilham um retrato assombroso e preciso daquilo que a Organização das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional definem como limpeza étnica, com sinais claros de genocídio: assassinatos a sangue frio de homens e meninos masalit, estupros de mulheres e meninas na frente de seus familiares e vizinhos, incêndios e saques generalizados, abandono de cadáveres por dias nas ruas e um deslocamento em massa para controlar um território com reservas geoestratégicas de ouro e petróleo.
Dois milhões de sudaneses fugiram para o Chade, Sudão do Sul, Egito e República Centro-Africana, enquanto quase 9 milhões tiveram de abandonar as suas casas e se deslocar para outros lugares de seu país. Mais de 18 milhões dependem de uma resposta humanitária que nunca chega.
“Somos o único ator que distribui alimentos aos refugiados. Recebemos o orçamento mês a mês, sem saber se conseguiremos fazer a próxima distribuição mensal. Se o orçamento necessário não vier, veremos aumentar os casos de desnutrição e mortes nas próximas semanas”, explica Vanesa Boi, responsável do Programa Mundial de Alimentos (PMA) no leste do Chade. Atua na tenda de plástico onde distribuem um pacote com alimentos de subsistência para quatro dias às pessoas que acabam de cruzar a fronteira.
Os responsáveis da agência da ONU adotaram esta medida em meados de março, sem saber quando poderia ser feita a próxima distribuição mensal. Finalmente, em meados de abril, centenas de toneladas de sargo, leguminosas e suplementos nutricionais para os menores com sintomas de desnutrição chegaram em caminhões, após uma viagem de vários dias pelo deserto. Contudo, para atender as 700.000 pessoas refugiadas no Chade, tiveram de reduzir as rações e suprimir o óleo para minimamente cobrirem as calorias necessárias para um ser humano poder sobreviver.
Os principais financiadores do PMA - Estados Unidos, Alemanha, União Europeia e Japão – decidem para qual crise cada parte de seus recursos é destinada e priorizam as de Gaza e da Ucrânia. As vítimas do Sudão não contam no mercado da ajuda humanitária institucional, não rendem créditos políticos, nem geram interesse midiático.
A maior crise humanitária do mundo é também a mais esquecida. E, pela primeira vez no século XXI, os países ricos não estão destinando os recursos necessários para evitar a “pior fome em décadas”, conforme, há meses, a ONU alerta. Para isso, não são necessários apenas alimentos, mas também água potável e condições de vida que permitam uma higiene mínima.
“Em contextos de emergência, falamos de um mínimo de 20 litros por pessoa. Quando começamos a fazer as prospecções em Adré, há alguns meses, estávamos em 7 litros. Agora, após abrir dezenas de poços, chegamos aos 13. E isso é para tudo: para beber, para cozinhar, para lavar, para tomar banho... É o que gastamos dando descarga todos os dias na Espanha. É impossível manter um mínimo de higiene assim”, explica Cristina Arquero, responsável da equipe WASH (Água, Sanitários e Higiene) da organização Médicos Sem Fronteiras, na cidade fronteiriça com Darfur.
O segundo elemento crucial para combater a desnutrição e as epidemias são as latrinas. “Nesse âmbito, ainda temos muito a fazer. Cada latrina é usada por 400 pessoas. Assim, é impossível mantê-las limpas e evitar doenças como a hepatite E, de contágio fecal-oral, com muitos casos já presentes”, lamenta Arquero, formada em Ciências Ambientais e especializada em emergências humanitárias que, assim como seus outros colegas, trabalha 14 horas por dia, 7 dias por semana.
Algumas organizações instalaram um modelo de latrinas temporárias, concebido para crises de curto prazo. Agora, não podem mais ser usadas porque estão cheias de excrementos e não podem ser esvaziadas. O grande receio é que no verão, quando as chuvas chegarem, as inundações cada vez mais frequentes provoquem transbordamentos que atinjam as famílias refugiadas, que vivem próximas.
Sem água potável e latrinas suficientes, é provável que a hepatite E, que já causou a morte de várias pessoas, acabe se transformando em uma epidemia. “Sabemos que com as chuvas de verão teremos o pico das infecções por malária, que junto com a desnutrição multiplicarão o número de pacientes”, explica Cordula Haeffner, responsável médica do hospital construído pela organização Médicos Sem Fronteiras, em Metché.
No início do êxodo, foram instaladas dezenas de latrinas, mas as necessidades das pessoas refugiadas eram tão urgentes que eram desmontadas para o uso das vigas de madeira como lenha para cozinhar e como paus para construir cabanas e se proteger dos 42 graus médios que faz durante o dia. Além disso, o desmatamento prévio ao conflito e a exploração adicional provocada pela chegada de pessoas deslocadas obrigam as mulheres sudanesas a percorrer distâncias cada vez maiores para buscar lenha no deserto.
“Não deixamos mais as meninas irem porque está havendo muitos estupros”, explica Hawa Guma Hamad, sobrevivente dos massacres de Geneina e refugiada no campo de Metché. A maioria dos depoimentos recebidos destaca como responsáveis os milicianos das RSF, que muitas vezes cruzam a fronteira, perseguem, ameaçam, roubam e assassinam refugiados. Outros, apontam criminosos chadianos. E, em menor quantidade, outros refugiados.
Em todo caso, as poucas calorias que suas potenciais vítimas conseguem ingerir precisam gastar procurando alimentos, água e lenha, o essencial para sobreviver. Tarefas que muitas vezes são realizadas, apesar do perigo, por meninos e meninas que já estão há um ano sem frequentar a escola.
Em aldeias como Metché, a uma hora e meia de Adré, onde o Governo do Chade realojou 50.000 pessoas refugiadas, não existe uma só escola pública. Existem apenas duas escolas corânicas nas quais algumas crianças aprendem a ler e escrever o básico, por meio do livro sagrado do Islã. E nos campos de refugiados ainda não foi lançada nenhuma iniciativa educacional, com o consequente prejuízo para o desenvolvimento desses menores.
Em 2023, pela primeira vez, o orçamento da ONU para emergências diminuiu em comparação ao ano anterior: de 28,1 bilhões de euros para 19,7 bilhões, sendo 30% menos. Está cada vez mais difícil conseguir o compromisso dos países ricos em atenuar crises sistêmicas como a que Darfur por décadas.
O Sahel é a região mais afetada do mundo pela emergência climática e o Chade é um lugar perfeito para ver como esta crise acelera e agrava outras de caráter humanitário, fazendo com que comecem antes e perdurem mais. O Lago Chade, localizado entre Chade, Níger, Nigéria e Camarões, diminuiu sua superfície em 90%, nos últimos 50 anos.
A seca diminuiu as colheitas, aumentando a dependência do país e dos refugiados da ajuda externa. Aqui, as pessoas sobrevivem procurando comida, água e um teto. E estas condições de vida terríveis fazem com que haja mais casos de desnutrição e que piorem mais rápido pelas diarreias, pneumonia, malária...
A falta de recursos hídricos obrigou a organização Médicos Sem Fronteiras a realizar dispendiosos estudos hidrográficos para abrir poços. Um gasto que tem conseguido assumir graças às doações de seus parceiros e parceiras. Além disso, o preço dos alimentos e das matérias-primas aumentou substancialmente, nos últimos anos, devido a causas multifatoriais influenciadas pela crise climática.
O mesmo aconteceu com os combustíveis e o transporte. Este aumento dos preços repercute diretamente nos custos das cabanas de metal, latrinas, depósitos e lonas necessárias para cobrir as necessidades mais básicas das pessoas refugiadas e deslocadas.
A emergência climática é em si uma crise humanitária e, ao mesmo tempo, um novo desafio para as ONGs. Uma das chaves para adaptar e mitigar os seus efeitos é trabalhar em cooperação com as comunidades locais. “São elas que sabem quais são os materiais mais acessíveis, os que se adaptam melhor ao contexto, quando e quanto chove, que tipo de construção é mais adequada”, explica Laura Martinez Candela, coordenadora de construção do hospital que a organização Médicos Sem Fronteiras construiu em Metché.
Embora organismos da Organização das Nações Unidas e outras organizações humanitárias tenham publicado relatórios sobre como precisam adaptar as suas respostas à crise climática, continua sendo crucial exigir que os países ricos parem de diminuir a ajuda para emergências e se comprometam economicamente com a adaptação à crise climática dos países mais pobres e afetados por ela. E que as comunidades locais, aquelas que aprenderam durante toda a vida como fazer mais com cada vez menos, participem do desenvolvimento de planos de mitigação.
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O mundo vira as costas para o Sudão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU