Guerra na Ucrânia: entre bravatas e trocas de ameaças, a iminência da terceira guerra mundial. Entrevista especial com Vinícius Mariano de Carvalho

Para o professor e pesquisador, já vivemos um conflito globalizado, mas os riscos de escalada da violência e o atual contexto internacional lembram o enfraquecimento de estruturas geopolíticas globais que levaram à Primeira e Segunda Guerra Mundial

Putin, Zelensky e Putin | Foto: Radio Free

12 Agosto 2025

No fim de julho, Donald Trump deu declarações que elevaram o tom das ameaças entre Rússia e Estados Unidos. Enquanto Trump publicava um ultimato para Vladimir Putin findar a Guerra na Ucrânia e os estadunidenses mobilizavam dois submarinos nucleares próximos ao país rival, o ex-presidente russo Dmitri Medvedev fazia ameaças aos norte-americanos, anunciando o início da produção em série do Oreschnik, um míssil hipersônico capaz de transportar ogivas nucleares.

O que parecia até então ser uma mudança na retórica dos discursos do chefe da Casa Branca, após criticar ataques de Moscou à Ucrânia, ganhou novos contornos no último fim de semana. Ao anunciar seu encontro presencial, no Alasca, com Vladimir Putin para discutir o fim da guerra, Donald Trump deu nova guinada em favor da Rússia, dizendo que os ucranianos deverão “trocar algumas terras para o benefício de ambas as partes”.

Na discussão, para a qual Ucrânia e Europa não foram convidadas, o que está em jogo é um acordo de cessar-fogo com as cartas dadas por Putin, que não deve renunciar ao controle de áreas ocupadas. No momento, a Rússia ocupa 20% da Ucrânia. Além da Crimeia, anexada em 2014, os russos já controlam totalmente a província de Luhansk e 70% da província de Donetsk. Também mantêm sob seu domínio metade de Zaporizhia e a metade oriental de Kherson. São áreas do Leste da Ucrânia que o Kremlin reivindica como parte do seu território.

No entanto, “enquanto houver ganhos econômicos na manutenção de uma guerra, não se verão esforços amplos de contenção da mesma”, adverte Vinícius Mariano de Carvalho, professor de Estudos brasileiros e latino-americanos do Kings College em Londres. O fim da guerra, na avaliação do especialista, ainda está longe. “Ainda nem sequer lograram um cessar-fogo que permita o início de negociações de paz. Estas negociações serão longas, quando iniciarem, envolverão muitas pressões internacionais e necessitarão de mediadores e negociadores diversos. Infelizmente, iniciar uma guerra é mais simples que terminá-la”, lamenta.

Segundo o pesquisador, os discursos e ultimatos de Trump com relação à guerra na Europa são bravatas para um público ingênuo. “Esse tipo de retórica de Trump é apenas superficial e tentando impressionar um público incauto. Guerras não têm prazos e terminá-las não é apenas resultado da declaração ou desejo de uma pessoa, que diretamente não está envolvida como um dos atores belicosos”, pontua.

Mas se o presidente norte-americano faz de seus pronunciamentos performances midiáticas eloquentes, Putin dá sinais de que não vai ceder os interesses do Ocidente. “A mensagem é clara para todos os atores globais, a de que a Rússia não se renderá, tendo artefatos nucleares como potenciais meios de dissuasão”, explica Carvalho na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Ao ser questionado sobre um possível acirramento do conflito para escala mundial, o professor aponta “que já se trata de um conflito de impactos globais. Neste momento já há tropas Norte-Coreanas atuando nos teatros de operação na Ucrânia. Pressões globais em termos de comércio exterior, sanções a países que fazem negócios com a Rússia, já implicam em uma globalização do conflito. A questão é: como se define o que é uma guerra mundial? Do que já temos hoje até dizermos que se trata de uma guerra mundial é uma questão de respondermos a esta pergunta”.

Vinícius Mariano de Carvalho (Foto: Agência Marinha de Notícias)

Vinícius Mariano de Carvalho é doutor em Romanischen Literaturen und Kulturen, pela Universität Passau, Alemanha, atualmente é professor de Estudos Brasileiros e Latino Americanos no departamento de War Studies do King’s College London, onde já foi diretor do Kings Brazil Institute, e vice-decano Internacional da Faculty of Social Science & Public Policy (SSPP). Foi professor em diferentes universidades na Alemanha, Dinamarca, México, El Salvador, Egito e pesquisador visitante da Escola de Guerra Naval e da Escola de Comando e Estado-Maior do Brasil.

Confira a entrevista.

IHU – A guerra entre Rússia e Ucrânia, com ocupação do território ucraniano por tropas russas, começou em fevereiro de 2022. Já se vão mais de três anos. O que está em jogo neste conflito?

Vinícius Mariano de Carvalho – Este conflito é bem mais complexo do que se pode imaginar. A invasão russa do território ucraniano de fevereiro de 2022 não foi a primeira forma de agressão russa e a relação entre os dois países vem sendo conturbada há muitos anos, desde o fim da URSS.

Mesmo durante o período soviético, a relação da Rússia com a Ucrânia foi marcada por eventos traumáticos. Podemos citar, por exemplo, o Holodomor, a Grande Fome Ucraniana de 1932-1933, que matou cerca de 10 milhões de pessoas devido à Política de Coletivização implementada pelas autoridades soviéticas sob a liderança de Josef Stalin.

Em termos mais recentes, a tensão entre os dois países começa a se agravar a partir da chamada Pomarancheva revoliutsiia, a Revolução Laranja, que de novembro de 2004 a fevereiro de 2005 gerou protestos em toda a Ucrânia, devido à corrupção e fraude eleitoral, resultando na anulação dos resultados eleitorais anteriores e levando à vitória do político pró-europeu Viktor Yushchenko, posteriormente vítima de um envenenamento, tributado à Rússia.

Em 2010, Viktor Yanukovych foi eleito democraticamente em uma eleição que a OSCE considerou justa e transparente. Suas políticas pró-Rússia porém causaram grande reação popular e em novembro de 2013 inicia-se a chamada Euromaidan, ou Revolução da Maidan (uma praça em Kiev, que significa Praça da Independência). Estes protestos levaram a destituição de Yanukovych em 2014 e a sucessão por Petro Poroshenko, um político pró-europeu e amigo próximo do ex-presidente Viktor Yushcheko. Após o impeachment de Yanukovych, o recém-eleito primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk introduziu uma legislação controversa que discriminaria os falantes de russo, bem como partidos que seguissem ideologias socialistas ou comunistas. Em uma tentativa de se tornarem independentes das autoridades ucranianas residentes em Kiev, russos étnicos e simpatizantes do governo russo que viviam no leste da Ucrânia declararam-se independentes e fundaram a República Popular de Luhansk e a República Popular de Donetsk em 2014. No mesmo ano a Rússia anexa a Crimeia (2014).

Então, pode-se dizer que a invasão de 2022 é apenas mais um capítulo nesta controversa e violenta relação. Tentar olhar para esta invasão de 2022 sem uma visão conjunta, histórica e ampla da relação entre os dois países seria inadequado e superficial.

De forma geral, pode-se dizer que o objetivo estratégico da Rússia possa ser o de reformular os arranjos de segurança regional e o equilíbrio global de poder em seu próprio favor. Realizando uma operação militar na Ucrânia, a Rússia também pode ter como intenção minar a resiliência e a coesão dos Estados Unidos/OTAN/União Europeia, garantindo um espaço geopolítico global mais amplo, reafirmando sua posição de grande poder global.

Mapa: Al Jazeera/CC.

IHU – Por que o conflito já dura tanto tempo? Qual o poder geopolítico da diplomacia multilateral para conter a guerra? Existe esse interesse?

Vinícius Mariano de Carvalho – Como disse anteriormente, o conflito dura muito mais do que três anos. De certa forma, houve uma certa conivência do mundo com a anexação da Crimeia por parte da Rússia em 2014, o que permitiu um escalonamento para o que se vê desde 2022.

Sobre haver interesse ou não em que a guerra seja contida, e preciso perceber que da mesma forma que há países e grupos que realmente empenham-se para que a guerra termine, há outros que beneficiam-se dela. Em relações internacionais, países movem-se por interesses particulares muito mais do que por princípios gerais. Enquanto houver ganhos econômicos na manutenção de uma guerra, não se verão esforços amplos de contenção da mesma.

Em relação ao papel da ONU neste contexto, é preciso lembrar-se que esta não é uma supra instituição com poderes acima dos governos soberanos. Sua força e seu papel são resultado do empenho em que os países dão à instituição. Neste sentido, se a ONU se vê enfraquecida, é porque os países não lhe estão dando o devido peso e valor. Isso reflete bem a crise do multilateralismo que o mundo passa atualmente. Se não há interesses das nações, especialmente daquelas que exercem poder desproporcional no concerto das nações (particularmente os países com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU) em se buscar soluções multilaterais para os problemas (e principalmente as guerras) globais, então o poder da diplomacia multilateral ficará sem dúvida reduzido.

IHU – No fim de julho Trump anunciou que a guerra entre Rússia e Ucrânia se encerraria em dez ou doze dias. Qual a real possibilidade disso acontecer, afinal estamos chegando ao limite do prazo? Por que é ou não é possível alcançarmos a paz?

Vinícius Mariano de Carvalho – Uma guerra não se termina com prazos assim estabelecidos. Esse tipo de retórica de Trump é apenas superficial e tentando impressionar um público incauto. Guerras não têm prazos e terminá-las não é apenas resultado da declaração ou desejo de uma pessoa, que diretamente não está envolvida como um dos atores belicosos. Ainda nem sequer lograram um cessar-fogo que permita o início de negociações de paz. Estas negociações serão longas, quando iniciarem, envolverão muitas pressões internacionais e necessitarão de mediadores e negociadores diversos. Infelizmente, iniciar uma guerra é mais simples que terminá-la.

O que se nota, no terreno, é que as agressões estão acirrando e os combates sem nenhum sinal de que cessarão pelo momento. Ademais, é preciso que os dois atores envolvidos diretamente na guerra, Rússia e Ucrânia, tenham vontade, capacidade e condições de iniciarem negociações, o que não parece que seja o caso neste momento.

IHU – Como a Rússia recebeu a notícia de que Trump estava disposto a dar fim ao conflito? A fala foi vista com seriedade ou foi tomada como mais uma frase de efeito, mais midiática que efetiva, algo comum quando se trata do presidente dos EUA?

Vinícius Mariano de Carvalho – Pelas respostas e declarações públicas das autoridades russas, não parece que tenham tomado muito em conta esta declaração. Seguramente, nem Rússia nem Ucrânia, estão se submetendo ou vão se submeter a ditames de Trump que não se traduzam em processos de negociação de paz, que como disse acima, são longos e complexos.

IHU – Por outro lado, Putin anunciou a produção em escala dos mísseis balísticos hipersônicos, que têm o potencial de carregar ogivas nucleares. Que recado a Rússia passa para os EUA, a Europa e o mundo?

Vinícius Mariano de Carvalho – A Rússia tem claramente definida uma doutrina de emprego de armas nucleares. Desde o início desta fase da guerra, os líderes políticos e militares do país têm declarado abertamente que o componente nuclear é um recurso bélico que é parte de sua doutrina e que, se necessário, fariam uso dos mesmos. Reforçar suas capacidades de lançamento destas ogivas, bem como treinar para o uso de armamento nuclear, como fizeram recentemente na Geórgia, é um sinal claro que este vetor é sim, considerado. E a mensagem é clara para todos os atores globais, a de que a Rússia não se renderá, tendo artefatos nucleares como potenciais meios de dissuasão.

IHU – Diante deste cenário, Trump, pressionado por cumprir a promessa de campanha de acabar com a guerra entre Rússia e Ucrânia em um dia (já passaram mais de seis meses desde a posse), afirmou ter enviado dois submarinos nucleares para os arredores do território russo. Dmitry Medved, vice-presidente do Conselho de Segurança, disse que “cada ultimato de Trump é um passo em direção à guerra”. Essas afirmações são bravatas ou deveríamos nos preocupar? Por quê?

Vinícius Mariano de Carvalho – Evidentemente temos que nos preocupar. É importante lembrar que em diplomacia, forma é conteúdo. A declaração de líderes não deve ser tomada apenas como bravata, especialmente em momentos tensos e de guerras. Cada palavra tem um peso grande.

Eu diria que qualquer país do mundo hoje deve cuidadosamente iniciar a pensar quais consequências um conflito que vá além do que já está ocorrendo hoje terá para si e para o concerto de nações. Escalar o conflito para dimensões maiores, sem dúvida levará a pressões para a formação de alianças e posicionamentos. E neste mundo globalizado, será muito difícil manter-se neutro.

IHU – Na sua avaliação, a julgar pelos movimentos geopolíticos mobilizados por atores como Trump, Putin, mas também a União Europeia e a China, qual o risco do conflito entre Rússia e Ucrânia se desregionalizar e se tornar uma guerra mundial?

Vinícius Mariano de Carvalho – Eu diria que já se trata de um conflito de impactos globais. Neste momento já há tropas Norte-Coreanas atuando nos teatros de operação na Ucrânia. Pressões globais em termos de comércio exterior, sanções a países que fazem negócios com a Rússia (vide exemplo dos EUA em relação à Índia), já implicam em uma globalização do conflito. A questão é: como se define o que é uma guerra mundial? Do que já temos hoje até dizermos que se trata de uma guerra mundial é uma questão de respondermos a esta pergunta.

IHU – De 2020 a 2024 o governo americano gastou mais dinheiro em cinco empresas da área de defesa do que o investimento em diplomacia e ajuda internacional. Isso durante um governo democrata. O que esses dados apontam sobre o mundo que vivemos hoje?

Vinícius Mariano de Carvalho – A indústria de defesa, globalmente falando, obviamente beneficia-se de guerras. Essa indústria sempre terá um papel de influência política muito grande nos países onde estão localizadas. Isso implica que independente de serem Democratas ou Republicanos, governos americanos terão sempre uma relação muito estreita com esta indústria, que impactará as decisões políticas do país.

Sobre a diminuição do investimento em diplomacia e ajuda internacional, é o sinal claro do desinteresse global, especialmente por parte dos países mais poderosos, por questões que afligem ao mundo.

IHU – Trump se vale da guerra comercial e usa o recorrente expediente da ameaça tarifária para ameaçar países que não se submetem às suas pretensas ordens. Frente a isso, qual o papel dos países do Sul Global e de blocos econômicos como o BRICS nesse xadrez geopolítico e diplomático global?

Vinícius Mariano de Carvalho – Se os BRICS realmente pretendem ser uma alternativa em termos de mercados, estas políticas de Trump apenas favorecerão uma maior aproximação dos membros do bloco em termos de comércio e estabelecimento de outros mercados, independentemente dos EUA. É importante ressaltar que os BRICS não são uma aliança política, ou mesmo um organismo internacional, mas uma cooperação entre economias com potencial de crescimento.

IHU – O que explica a fragilização da diplomacia internacional e o progressivo enfraquecimento dos órgãos e entidades multilaterais?

Vinícius Mariano de Carvalho – Essa é uma pergunta difícil de ser respondida. É como se fosse uma ressaca da globalização. Além disso, um efeito colateral da pandemia de Covid-19. Esta última, em particular, afetou muito as relações entre os países, na corrida desigual por medicamentos, EPIs, e mesmo na produção e distribuição da vacina. Isso levou a níveis de desconfiança entre países e retraimentos que já na se viam há anos.

Além disso, vê-se uma velada quebra de confiança em acordos e alianças. Veja por exemplo o que vem ocorrendo com a OTAN, sob pressão constante de seu membro fundador, os EUA, aparentemente por questões de empenho de recursos, mas que vai além disso.

O que se nota, porém é que parece que repetimos aqueles períodos que antecederam as duas guerras mundiais, quando o enfraquecimento de estruturas geopolíticas globais levou a conflitos armados que causaram tamanha destruição. Esperemos que as lições da história nos previnam disso.

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