09 Mai 2023
"Quem realmente quer a paz deveria, antes de tudo, perseguir o objetivo de refundar as Nações Unidas com base em princípios igualitários, e não de herança do colonialismo. E deveria evitar defender a integridade territorial das nações, que é quase sempre resultado de guerras iguais àquela que tanto nos escandaliza hoje, e que sempre e apenas impuseram a lei do mais forte", escreve o matemático e lógico italiano Piergiorgio Odifreddi, ex-professor da Universidade de Turim e da Cornell University, em artigo publicado por La Stampa, 08-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No seu discurso no Concertone de 1º. de maio, Carlo Rovelli expôs de forma eficaz e concisa as razões da paz. Ele apenas errou o valor do gasto mundial anual com armamentos, dizendo que era de dois trilhões de dólares. Na realidade, e felizmente para o mundo inteiro, dois bilhões de bilhões por ano não são gastos em armas, mas "apenas" dois mil bilhões.
O equívoco surgiu do fato de Rovelli pensar em inglês, onde bilhão significa “milhar de milhões”, e trilhão “milhar de bilhões”: que são, justamente, milhões de milhões, ou milhares de bilhões. Em italiano, em vez disso, se usa miliardo para "milhar de milhões", bilione para "milhar de miliardi", biliardo para "milhar de bilioni" e trilione para "milhar de biliardi": que são, justamente, miliardi de miliardi (bilhões de bilhões).
Mas isso é secundário e, de qualquer forma, são valores difíceis de serem visualizados por qualquer um, inclusive físicos e matemáticos. Para se ter uma ideia, 2.800 bilhões de euros é o valor da dívida pública italiana, e todos sabem que é uma cifra enorme (até a União Europeia sabe disso, que de fato nos pede em vão há anos para mantê-la sob controle).
Esses 2.000 bilhões em gastos militares, devem ser atribuídos em 60% (1.200 bilhões) à OTAN: 800 bilhões para os Estados Unidos e 400 para países europeus. Portanto, não causa espanto que os ministros da Defesa dos países ocidentais são todos como Crosetto: mercadores e traficantes de armas, em nome e por conta de seus estados. Que os armamentos também estejam fora de controle, como a dívida italiana, já era sabido até pelo general Eisenhower, que em seu discurso de despedida à nação, após oito anos de presidência dos Estados Unidos, alertou os estadunidenses contra “a aquisição da injustificada influência (econômica, política, até espiritual) do complexo militar-industrial, e a possibilidade de um desastroso crescimento do poder fora de lugar. Vindo de um militar de carreira, significa algo.
De sua parte, Tolstoi já havia alertado os leitores de Guerra e Paz contra considerar a guerra como um duelo entre líderes, como costumam narrar nossas mídias diariamente: no seu romance, os líderes eram Napoleão e o czar Alexandre, e em nossos dias, postas as devidas proporções, Zelensky (ou Biden) e Putin. A guerra, dizia Tolstoi em vez disso, tem suas próprias leis matemáticas e científicas. E são elas que precisam ser compreendidos caso se queira realmente chegar à paz.
O Ministro Crosetto talvez não soubesse que existem essas leis científicas da história, e por isso convidou Rovelli para o papel de físico. Na realidade, e isso infelizmente é um grande problema, as armas existem precisamente porque existem os matemáticos, os físicos, os químicos e os biólogos para projetá-las, e os engenheiros para construí-las.
Cientistas como Leonardo, que não por acaso deu nome à fábrica de armas citada por Rovelli, por suas ligações com o ministro Crosetto. Mas, felizmente, nem todos os cientistas são inventores e projetistas de armas. Muitos, ao contrário, são até modelos de pacifismo. Pensemos, por exemplo, nos membros do movimento Pugwash de cientistas contra as bombas atômicas, que em 1995 receberam o Prêmio Nobel da Paz. Foram eles, no período da Guerra Fria, que continuaram a manter o diálogo dos dois lados da Cortina de Ferro, e a elaborar para suas próprias nações os tratados de não proliferação nuclear.
Acima de tudo, foi um modelo de pacifismo, Albert Einstein, que com um famoso manifesto assinado em 1955 com Bertrand Russell inspirou em 1955 o movimento Pugwash. Eu vou pedir desculpas por confiar mais em Einstein do que no ministro Crosetto, que diz que um ministro da Defesa “trabalha todos os dias para buscar a paz e parar a guerra".
Em vez disso, Einstein dizia que só há uma maneira para alcançar verdadeiramente a paz: parar de pensar nela em termos locais e nacionais e começar a pensar em termos globais e mundiais. Quando Israel lhe ofereceu a presidência do novo estado de Israel, ele a recusou: sabia que quem realmente busca a paz não pode ser ministro ou presidente, porque acabaria perseguindo os interesses de seu próprio país, e não aqueles do mundo inteiro. E é justamente por essa razão que as guerras são travadas.
Einstein tinha em mente um governo mundial que, no entanto, não pode ser aquele das atuais Nações Unidas. Para perceber isso, basta olhar para a composição do Conselho de Segurança, onde três dos cinco membros permanentes, que têm direito de veto, pertencem à OTAN. E onde sentam anacrônicas potências ex-imperiais como a Grã-Bretanha e a França, mas não grandes estados modernos como a Índia e o Brasil, que estão justamente descontentes com isso e o mostram com sua atitude em relação à guerra na Ucrânia.
Quem realmente quer a paz deveria, antes de tudo, perseguir o objetivo de refundar as Nações Unidas com base em princípios igualitários, e não de herança do colonialismo. E deveria evitar defender a integridade territorial das nações, que é quase sempre resultado de guerras iguais àquela que tanto nos escandaliza hoje, e que sempre e apenas impuseram a lei do mais forte.
Quem quer realmente a paz deveria perseguir o objetivo da autonomia dos povos, que conflita abertamente com as fronteiras nacionais, e é precisamente a causa das tantas guerras fronteiriças que periodicamente sacodem o mundo: da Ucrânia a Israel, da Síria à Turquia, da Caxemira ao Tibete, da Coreia a Taiwan. Quem quer realmente a paz não deveria trabalhar para o congelamento do status quo, como fazem as diplomacias ocidentais, para poder voltar o mais rápido possível a fazer ‘business as usual’.
Em vez disso, deveria repensar uma ordem mundial capaz de refletir não as pretensões supremacistas dos mais fortes, mas as expectativas autonomistas dos mais fracos. Mas quem quer realmente a paz é mal visto por quem, ao contrário, está disposto a travar uma guerra, quando as coisas não saem do jeito que lhe agrada. Em suma, a paz é desejada por aqueles que estão dispostos a mediar seus pedidos, enquanto a guerra é feita por aqueles não dispostos a ceder em suas pretensões, custe o que custar.
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Para construir a paz é preciso uma nova ONU. Artigo de Piergiorgio Odifreddi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU