19 Setembro 2024
“A fortaleza se fecha em torno do mundo não-branco, mas o desenvolvimento da guerra entre os próprios brancos e a desintegração política e cultural que padecem conduz à guerra nuclear”, escreve Franco “Bifo” Berardi, filósofo, escritor e ativista italiano, em artigo publicado por Diario Red, 18-09-2024. A tradução é do Cepat.
“It is not Hamas that is collapsing, but Israel” é o título de um artigo publicado pelo jornal Haaretz, em 9 de setembro. O autor, Yitzhak Brik, general do exército israelense, explica o porquê a guerra desencadeada contra a população de Gaza, apesar de ter causado a destruição de tudo o que existia naquele território, apesar de ter matado dezenas de milhares de pessoas, está levando à derrota estratégica de Israel. Se as Forças de Defesa de Israel (FDI) forem obrigadas a continuar esta guerra ou a expandir diretamente a sua frente, existe o risco, na opinião de Brik, de que ocorra um verdadeiro colapso. O estado psicofísico dos soldados envolvidos, durante quase um ano na prática de operações de extermínio, e a escassez de reservistas disponíveis levariam ao colapso e à derrota, segundo Brik.
O esgotamento físico e psicológico dos torturadores israelenses me lembrou o que Jonathan Littell contou em seu romance Les bienveillantes (2006): o estado de marasmo mental, a náusea, o horror diante de si mesmos em que se encontram os homens da SS, que durante meses e anos mataram, torturaram, massacraram e, ao final, não conseguem mais reconhecer o seu próprio rosto no espelho. O horror que os exterminadores das FDI provocam em todas as pessoas dotadas de sentimentos humanos não pode deixar de funcionar como um fator íntimo de desintegração naqueles que claramente pretendem competir com os assassinos de Hitler.
Em seu artigo, o general Brik se limita a examinar a situação militar, mas muitos indícios apontam para o fato de toda a sociedade israelense ter chegado ao limite da desintegração. A armadilha atroz que o Hamas armou está funcionando perfeitamente: o dilema dos reféns provoca uma ferida que não cicatrizará. O ódio sentido em relação a Netanyahu está destinado a ter efeitos políticos explosivos, quando, mais cedo ou mais tarde, ocorrer um balanço e for reivindicada uma prestação de contas pela condução cínica do massacre.
Além disso, a economia israelense está em colapso há muito tempo e não é o caso de uma situação passageira, porque aqueles que têm competências profissionais demandadas fora desse maldito país partem. Os médicos partem. Os empresários partem. Nenhum intelectual digno desse nome pode permanecer em um país que rivaliza com a Alemanha de Hitler em ferocidade e fanatismo. Permanecem os fanáticos, os loucos sedentos de sangue, os desgraçados que vieram a Israel apenas para se apoderar de terras alheias.
E, sobretudo, o que se supunha que era o lugar mais seguro da terra para os judeus se tornou o lugar mais perigoso do planeta para eles: um lugar cercado pelo ódio de 1,8 bilhão de muçulmanos, um lugar onde qualquer carro que passa pela rua pode virar de repente e matar as pessoas que esperam no ponto de ônibus. Antes, levantava-se a questão da legitimidade de Israel em existir como Estado, dada a violência com que se impôs e dada a sua violação sistemática de todas as resoluções da ONU. Penso que a questão deixará ser colocada: Israel não sobreviverá.
A sua desintegração já está em curso e nada pode detê-la. A questão que se colocará amanhã é outra: como conter a fúria assassina de 600.000 colonos fanáticos armados, que se instalaram ilegalmente na Cisjordânia? Como evitar que a tragédia israelense provoque um ataque nuclear, uma resposta histérica à proliferação da violência naquele território cercado pelo ódio?
Israel é o símbolo da arrogância do Ocidente, que quis reparar os seus pecados. Depois de isolar e repelir os judeus que fugiam de Hitler, depois de ter exterminado seis milhões deles em campos de concentração, os europeus convidaram os judeus sobreviventes a partir para morrer ou matar em outro lugar. Em troca, prometeram a Israel um apoio inabalável contra os árabes e os persas que, humilhados pela superioridade do monstro sionista superarmado, cercam ameaçadoramente Israel, esperando o momento da vingança. Mas a desintegração de Israel deve ser lida no contexto da desintegração do conjunto do mundo que gosta de se chamar livre, esquecendo que está fundado na escravidão.
Vejamos os Estados Unidos. No dia 11 de setembro de 2024, em homenagem às vítimas do maior atentado da história, o genocida Joe Biden disse: “Neste dia, há vinte e três anos, os terroristas acreditaram que poderiam quebrar a nossa vontade e nos colocar de joelhos. Estavam errados. Sempre vão errar. Nas horas mais sombrias, encontramos a luz. E diante do medo, nós nos unimos para defender nosso país e ajudar uns aos outros”. Nós nos unimos, disse o presidente. Mente, como demonstra a foto em que aparecem Harris e Biden, o então prefeito de Nova York, Bloomberg, e junto a eles Trump e Vance.
Unidos na luta? Causa risos ver suas caras de hipócritas com as mãos no coração. Biden está unido a Trump, e Vance está unido a Harris? Em que sentido estariam unidos esses sem-vergonhas que diariamente se insultam à espera de saber quem vencerá a disputa final, destinada a acelerar a desintegração? Certamente, estão unidos em armar o genocídio sionista. Certamente, estão unidos na deportação de seres humanos rotulados como estrangeiros ilegais. Sua unidade para por aí. No que diz respeito ao poder, são inimigos mortais.
Se Donald Trump vencer em novembro, o jogo termina: começa a maior deportação da história, mas também a destruição definitiva da aliança atlântica. Mas e se as coisas seguirem um outro curso? E se Kamala Harris vencer? Os seguidores de Trump não escondem a sua posição: se o Partido Democrata vencer, isso significará que os Democratas nos roubaram a vitória e não vamos nos render. Uma senhora, usando o glamoroso boné MAGA na cabeça, que foi entrevistada pela CNN durante um comício de Trump, disse isso sem rodeios. Caso vençam, “there will be civil war” [“haverá uma guerra civil”]. O que significa exatamente que acontecerá uma guerra civil em um país onde cada cidadão possui pelo menos uma arma de fogo e muitos possuem quatro, dez ou vinte e cinco?
Não acredito que ocorra uma guerra civil como nos tempos da Guerra Civil Espanhola, com multidões armadas se enfrentando ao longo de uma frente mais ou menos definida. Não, não é assim que se desenrola a guerra civil da era da demência pós-política e hipermidiática. Ao contrário, assistiremos à multiplicação de tiroteios racistas, veremos como os massacres passarão por um crescimento exponencial. Simplesmente, teremos o que já temos, mas em quantidade cada vez maior e tudo isto com uma intensidade cada vez mais inflamada, mais violenta.
Kamala Harris, por sua vez, disse o seguinte em 11 de setembro: “Hoje é um dia de solene lembrança. Enquanto choramos as almas que perdemos no atroz ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, ao comemorarmos este dia, todos nós deveríamos refletir sobre o que nos une: o orgulho e o privilégio de sermos estadunidenses”. A senhora disse as coisas como são. O que une os estadunidenses (que estão divididos e dispostos a entrar em conflito para tomar o poder e saquear) é o privilégio.
O povo estadunidense consome quatro vezes mais eletricidade do que o consumo médio mundial. E querem continuar consumindo desmedidamente, porque só o abarrotamento de plástico e merda dá sentido às suas vidas miseráveis. O atentado de 11-S foi uma obra-mestra de estratégia. O gigante militar mais poderoso de todos os tempos não podia ser derrotado por ninguém. Tinha que se voltar contra si mesmo, tinha que atacar com tanta força que enlouquecesse, que se visse levado a ações suicidas como a agressão ao Iraque e a guerra travada nas montanhas do Afeganistão, que terminou com a fuga desordenada de Cabul, o retorno dos talibãs ao poder e a humilhação da superpotência estadunidense.
Osama Bin Laden venceu a sua guerra desencadeando o processo de desintegração cultural, psíquica e militar do colosso, que segue acontecendo diante de nossos olhos. Mas não podemos esperar uma desintegração pacífica do poder estadunidense. Tal como Polifemo, cegado por Ulisses, os Estados Unidos lançam golpes terríveis contra quem deles se aproxima, porque o colosso estadunidense é obrigado a reagir: o cenário do choque final será a Europa, se os Democratas vencerem, ou o Oceano Pacífico, se os Republicanos vencerem. Mas, de qualquer modo, o colosso cambaleia sobre a linha que corre à beira do abismo nuclear.
Por último, a União Europeia, que em termos de desintegração se encontra, no momento, em um estágio muito avançado, certamente, acima do ponto de não retorno. Mario Draghi disse com a franqueza de quem não tem nada a perder, exceto o seu lugar na história: se não formos capazes de iniciar um plano de investimento conjunto e de emissão regular de dívida comum, podemos nos preparar para a desintegração da União. No dia seguinte, todos esquentaram as mãos com as palmas, mas disseram que as propostas de Draghi eram quimeras irrealizáveis. Primeiro, a Alemanha se manifestou dizendo que não quer falar de emissão conjunta de dívida, enquanto começa a pagar o preço de uma guerra que foi dirigida contra ela em primeiro lugar. Biden e Hillary Clinton conseguiram provocar uma guerra contra a Alemanha, que a perdeu imediatamente.
Enquanto a recessão se torna cada vez mais provável, com a guerra no horizonte, os fascistas assumem o governo de um país europeu após outro e, assim, anulam o resultado das eleições europeias que a coalizão de Ursula acreditava ter vencido e nas quais, ao contrário, não ganhou nada. Embora tenha maioria no inútil Parlamento Europeu, vê o avanço da direita que, apesar de não ter maioria em Estrasburgo, tende a tê-la em todos os países do continente.
Na França e na Alemanha, existem dois governos que não têm maioria. O golpe de Macron pode levar a um recrudescimento do conflito social marcado por traços cada vez mais violentos ou evoluir para um golpe definitivo dos lepenistas. Na Alemanha, iniciou-se o choque entre duas visões geopolíticas inconciliáveis: a visão atlântica, que postula a obediência aos amos estadunidenses, que já levaram o governo Scholz a romper os laços econômicos com a Rússia e, portanto, ao desastre econômico, ou a visão continental, que implica alcançar um equilíbrio com a Rússia, mas uma ruptura politicamente impossível com a OTAN.
O único fator de integração que resta aos europeus (bem como aos estadunidenses, neste caso) é o medo da maré humana que os assedia nas fronteiras e a adoção de medidas cada vez mais desumanas contra os migrantes. A fortaleza se fecha em torno do mundo não-branco, mas o desenvolvimento da guerra entre os próprios brancos e a desintegração política e cultural que padecem conduz à guerra nuclear.
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A desintegração do mundo branco. Artigo de Franco ‘Bifo’ Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU