07 Junho 2024
"A grande migração do sul e leste para o norte e oeste do mundo é o processo que mais contribui para a onda ultrarreacionária, enquanto a oposição entre o norte imperialista e o sul colonizado adquire contornos cada vez mais nítidos. Basta olhar o mapa dos países que condenam o colonialismo israelense e o dos países que o apoiam para entender a geografia do choque de época que está se delineando", escreve Franco Berardi, filósofo, escritor e agitador cultural italiano, em artigo publicado por El Salto, 28-05-2024.
Reflexões sobre a cúpula de Madri em que se reuniram os líderes mundiais do capitalismo 'gore' (sangrento) e formação do Anthropos 2.0.
A cúpula da ultradireita branca ocidental que teve lugar em Madri em 29 de maio foi a culminação de um processo que escapa às categorias da política moderna. Continuamos a interpretá-lo com as categorias que temos: democracia, liberalismo, socialismo, fascismo, etc... Mas acredito que estas categorias interpretativas da política não captam a essência deste processo, que não é realmente novo no plano enunciativo, programático, mas que é radicalmente novo no plano antropológico e psicocognitivo. As declarações dos líderes da direita mundial não explicam a força disruptiva do movimento que ninguém parece capaz de deter com algumas exceções como Colômbia, Brasil e a Espanha socialista, bastiões de resistência humana.
As dinâmicas tradicionais da democracia parlamentar e da luta social parecem ter sido superadas, como se um ciclone dotado de um poder inaudito arrasasse as defesas que a sociedade construiu após a Segunda Guerra Mundial. A cúpula de Madri reuniu formações que convergem no supremacismo branco ocidental e não nos movimentos que lideram países como a Índia de Modi, exemplo de supremacismo não branco, e a Rússia de Putin, exemplo de supremacismo não ocidental.
Na segunda metade de 2024 é possível que os supremacistas de direita ganhem a presidência dos Estados Unidos e mudem a maioria no Parlamento Europeu, aliando-se com o centro. Mas mesmo que a direita não se impusesse na Europa e os Democratas ganhassem as eleições norte-americanas, isso não mudaria muita coisa, porque nas questões fundamentais, sobretudo nas questões relativas ao rearmamento, à guerra e à mudança climática, já não há distinção entre os ultradireitistas e os governos de centro. Pelo contrário, na situação atual a vitória do lepenismo nas eleições de junho e a vitória de Trump em novembro teriam o efeito de fragmentar a unidade ocidental na guerra contra a Rússia.
Mas o objeto da minha reflexão não é o resultado das eleições de 2024. O que me interessa aqui é compreender a dinâmica antropológica e não meramente política que transformou as sociedades do Ocidente e da maior parte do planeta depois de ter destruído o movimento organizado do trabalho e desativado uma após outra as instituições internacionais da era liberal-democrática, começando pela ONU. Pode-se reduzir o que está ocorrendo a um retorno do fascismo histórico?
Eu diria definitivamente que não: o nacionalismo fascista continua sendo a principal referência da linguagem e da mentalidade da classe política que cavalga a onda reacionária porque se trata de pessoas de escassíssimo nível intelectual carentes da capacidade de encontrar conceitos e palavras à altura da força que a transformação antropológica colocou à sua disposição. Parece-me que não há consciência da direita à altura da potência da direita. A brutalidade, afinal, não costuma ser consciente de si mesma.
O que está surgindo é um fenômeno de proporções gigantescas que não pode ser explicado com as categorias da política porque mergulha suas raízes na mutação tecnoantropológica que a humanidade experimentou nas últimas quatro décadas e porque constitui a saída do hiperliberalismo, que fez da competição (ou seja, da guerra social) o princípio universal das relações inter-humanas.
As explicações políticas da onda brutalista libertariana apenas captam aspectos marginais do fenômeno: os democratas liberais sustentam que a ordem política está abalada pelo soberanismo autoritário. Os marxistas, ou muitos deles, interpretam o que está ocorrendo como um retorno do fascismo histórico após os erros cometidos pelo movimento operário organizado. Mas nenhum deles explica o mais importante, a qualidade antropológica e psíquica que subjaz à adesão massiva aos movimentos ultrarreacionários.
O que é preciso entender não é o significado das declarações de Trump, Milei, Netanyahu ou Narendra Modi, mas as razões pelas quais uma maioria crescente da população planetária abraça com entusiasmo a fúria destrutiva desses condotieros. Ao contrário do nazifascismo histórico, que praticava uma economia estatista, a onda supremacista funde os lugares comuns do racismo e do conservadorismo cultural com uma acentuação histérica do liberalismo econômico: liberdade para ser brutais. Essa novidade é suficiente para explicar o sucesso avassalador da mistureba intelectual que em toda parte suscita o entusiasmo das multidões? Devemos pensar que as multidões seguem Trump apesar de suas flagrantes mentiras, apesar de seu machismo de baixa categoria? E que as multidões israelenses apoiam o governo fascista apesar do extermínio de crianças palestinas, e que a maioria dos argentinos vota em Milei apesar da motosserra com que se dispõe a destruir o Estado de bem-estar e a matar de fome milhões de trabalhadores? Ou talvez seja necessário inverter o raciocínio?
Adiantei a hipótese de que estamos diante de uma verdadeira inversão do juízo ético: os norte-americanos votam em Trump precisamente porque ele é um violador e um mentiroso, os israelenses apoiam Netanyahu precisamente porque ele pratica o genocídio, compensando uma profunda e inconfessável necessidade de reparação dos descendentes das vítimas de um genocídio passado. E os jovens argentinos seguem Milei porque acreditam que, finalmente, os melhores poderão sobressair e os demais morrerão de fome como merecem.
A novidade que devemos compreender é a qualidade psíquica, cognitiva, antropológica do Anthropos 2.0. A inversão cínica do juízo, o entusiasmo pela violência racista, implicam uma perversão da percepção e da elaboração psíquica, mesmo antes de ser moral: capitalismo gore, como define Sayak Valencia a realidade mexicana.
Ao fazer da competição o princípio universal das relações inter-humanas, o neoliberalismo ridicularizou a empatia pelo sofrimento do outro, erodiu os fundamentos da solidariedade e, com isso, destruiu a civilização social. Quando Milei afirma que a justiça social é uma aberração, não faz mais do que legitimar o direito do mais forte e galvanizar a ilusão de massas de indivíduos jovens (na maioria homens) convencidos de que estão dotados da força necessária para ganhar de todos os outros. Essa crença não se desmonta facilmente, porque quando amanhã esses indivíduos forem, como já são, miseráveis solitários empobrecidos, apenas culparão de sua derrota os imigrantes, ou os comunistas, ou Satanás, conforme sua psicose preferida.
Enquanto se condena a justiça social como uma aberrante intromissão do socialismo de Estado na liberdade dos indivíduos, naturaliza-se o selvagerismo competitivo: na luta pela vida, quem não estiver à altura das circunstâncias merece morrer. A empatia não é compatível com a economia da sobrevivência, de fato é autolesiva para quem a pratica. Como diz Thomas Wade no romance de Liu Cixin The Dark Forest, 2008 (A Floresta Sombria, 2023): “Se perdermos nossa humanidade perdemos algo, se perdermos nossa bestialidade perdemos tudo”. O brutalismo se torna o fundamento da vida social.
Em geral, o marxismo subestimou a questão demográfica após Marx criticar as teses malthusianas em meados do século XIX. Marx estava certo ao criticar Malthus, que previu que o crescimento demográfico causaria transtornos sem levar em conta a evolução técnica da produtividade. No entanto, os marxistas erraram ao não considerar as consequências da extraordinária aceleração possibilitada pela medicina e pelo progresso social. O salto demográfico de 2,5 bilhões de pessoas vivas no planeta em 1950 para 8 bilhões 70 anos depois resultou em uma intensificação sem precedentes da exploração dos recursos da Terra e levou, acredito que inevitavelmente, à devastação do meio ambiente planetário.
O capitalismo liberal tem suas falhas, mas acredito que nenhum sistema de produção poderia ter atendido às demandas provocadas pela explosão demográfica sem efeitos catastróficos tanto sobre a ecologia planetária quanto sobre a percepção psíquica do outro: em condições de superpopulação, o inconsciente coletivo, em seu modo contemporâneo de inconsciente conectivo, já não é capaz de perceber o outro como amigo, pois, na verdade, qualquer outro indivíduo é uma ameaça à sobrevivência.
Na década de 1960, o etólogo John Bumpass Calhoun falou sobre um colapso do comportamento nesse sentido (behavioral sink). A devastação ecológica torna áreas cada vez mais extensas do planeta inabitáveis e impossibilita o cultivo de vastas regiões. É compreensível que as populações do Sul global (ou seja, as regiões que sofreram os efeitos da colonização e sofrem especialmente os efeitos das mudanças climáticas) desejem se deslocar para o Norte global (ou seja, a região que desfrutou dos benefícios da exploração colonial e sofreu menos, até agora, as consequências das mudanças climáticas). Também é compreensível (embora imoral, mas o julgamento moral vale tanto quanto um dois de paus nessa conjuntura) que os habitantes do Norte global temam a ideia de que massas cada vez maiores se desloquem do Sul global para o Norte global. Por isso, a grande migração empurra e continuará a empurrar as populações do Norte para posições abertamente racistas. Por isso, o genocídio já é, e provavelmente será cada vez mais, uma técnica de controle dos movimentos populacionais. Por isso, os europeus fazem todo o possível para que milhares de pessoas morram afogadas no mar ou dispersas nos desertos do Norte da África.
Em romance Gun Island (2019), Amitav Gosh relata o ciclo comunicativo entre telefone celular e migração:
Já não estamos no século XX. Não é necessário um megacomputador para acessar a rede. Basta um telefone, e agora todos têm um. E não importa se você é analfabeto. Você pode encontrar o que procura simplesmente falando; seu assistente virtual cuidará do resto. Você ficaria surpreso com a rapidez e eficiência com que as pessoas aprendem. Assim começa a jornada, não comprando um bilhete e tirando um passaporte. Começa com um telefone e a tecnologia de reconhecimento de voz.
Onde você acha que eles aprendem que precisam de uma vida melhor? Droga, de onde você acha que eles têm uma ideia do que é uma vida melhor? De seus telefones celulares, claro. É lá que eles veem fotos de outros países; é lá que veem anúncios em que tudo parece fabuloso; veem coisas nas redes sociais, posts de vizinhos que já fizeram a viagem [...] então, o que você acha que eles fazem? Voltam a plantar arroz? Você já tentou plantar arroz? Todo o dia agachado até o chão, sob o sol, com cobras e insetos à sua volta. Você acha que alguém quer voltar a esses campos depois de ver as fotos de seus amigos tomando um café com leite caramelizado em um café de Berlim? E o mesmo telefone celular que lhes mostra essas fotos também pode colocá-los em contato com intermediários [...] digamos que um cara peça asilo na Suécia. Ele precisará de uma história confiável. Não uma dessas histórias banais. Uma história como as que querem ouvir lá. Digamos que o cara morreu de fome, porque seus campos foram inundados: ou digamos que toda a aldeia adoeceu devido ao arsênico presente no solo; ou digamos que o cara foi espancado pelo seu senhorio, porque não podia pagar suas dívidas. Nada disso importa aos suecos. Os suecos gostam de política, religião e sexo. Você precisa de uma história de perseguição, se quiser que eles te escutem. É assim que ajudo meus clientes, fornecendo-lhes esse tipo de histórias (Amitav Gosh, "L’isola dei fucili", Vicenza, Neri Pozza, 2019, p. 74-76).
A grande migração do sul e leste para o norte e oeste do mundo é o processo que mais contribui para a onda ultrarreacionária, enquanto a oposição entre o norte imperialista e o sul colonizado adquire contornos cada vez mais nítidos. Basta olhar o mapa dos países que condenam o colonialismo israelense e o dos países que o apoiam para entender a geografia do choque de época que está se delineando. Mas não se deve acreditar que a brutalidade pertence apenas ao mundo branco ocidental: a Rússia de Putin não é ocidental e a Índia de Modi não é branca, mas ambos compartilham as características essenciais do brutalismo e da indiferença ao genocídio. A possibilidade de uma revolução anticolonialista tinha perspectivas progressistas no marco do internacionalismo operário, mas este parece ter desaparecido do horizonte da história. E o fim do internacionalismo abriu a porta para o apocalipse que estamos vivendo.
Devemos considerar o fato de que a expansão demográfica, que recua no Norte global, continuará em escala mundial até que a população mundial atinja, de acordo com as previsões, os dez bilhões de habitantes. É verdade que alguns demógrafos preveem que, nesse momento, em meados do século, a população da Terra começará a diminuir a um ritmo semelhante ao que cresceu no século passado. Na opinião de Dean Spears, economista e demógrafo da University of Texas em Austin, pode-se desenhar uma curva que sobe vertiginosamente de dois mil para dez mil milhões, atinge seu máximo por volta de 2040 e depois desce com a mesma precipitação.
Pelo menos três fatores contribuem para esse colapso da natalidade, que não analisarei aqui: o colapso da fecundidade masculina, a relutância feminina em gerar as vítimas do holocausto climático e bélico e a tendência da sexualidade a desaparecer como consequência da hipersemiotização do desejo. Mas é totalmente previsível que a brutalidade política e moral que se impõe por toda parte, combinada com o crescente poder das armas de destruição em massa e a racionalidade amoral da inteligência artificial aplicada aos sistemas de armamento, resulte no colapso final da civilização humana antes que a curva demográfica entre em sua fase descendente.
Podemos esperar um refluxo da tendência que venho analisando neste texto? Para responder a isso, devemos considerar que o auge do brutalismo libertariano reuniu e está reunindo uma energia que parece surgir da dinâmica profunda da evolução tecnológica, psíquica e cognitiva da humanidade. Tal energia não pode ser freada pela ação voluntarista protagonizada por sujeitos políticos sociais e culturais cada vez que não se percebem de modo algum no horizonte. Por isso, temo que esta onda só possa ser detida quando essa energia tiver produzido todos os efeitos de que é capaz, da mesma forma que o Terceiro Reich só se deteve quando destruiu tudo o que podia destruir, inclusive a Alemanha. Mas a força destrutiva de que dispõe o Terceiro Reich global do nosso tempo é suficiente para apagar todo traço de vida humana do planeta.
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Brutalismo supremacista libertariano. Artigo de Franco Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU