07 Dezembro 2024
"É sempre a mesma história: desde que começou a sair do recinto que havia sido construído ao seu redor (ou seja, os conflitos africanos esquecidos e “inofensivos”), o Tribunal foi contra vontade envolvido nos “padrões duplos” que prevalecem na comunidade internacional: proteger os amigos, atacar os inimigos. E, assim, elogiá-lo quando acusa os últimos, deslegitimá-lo ou acusá-lo de politização quando incrimina os primeiros", afirma Riccardo Noury, porta-voz da Anistia Itália. A entrevista é de Umberto De Giovannangeli, publicada por l'Unità, 05-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de prisão por crimes de guerra e crimes contra a humanidade contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, o ex-ministro da Defesa israelense Yoav Gallant e um líder do Hamas. O G7 decretou que Netanyahu goza de imunidade. E o mesmo ocorreu com países que reconhecem o Tribunal. Como fica a situação? Durante o mesmo período em que emitiu mandados de acusação contra Netanyahu e Gallant, bem como contra o único dos três indiciados do Hamas possivelmente ainda vivo (os outros dois, como se sabe, foram mortos pelas forças israelenses que substituíram aquela internacional pela “justiça do faça você mesmo”), o Tribunal fez exatamente o mesmo contra seis líbios, pertencentes ao grupo armado al-Kaniat, acusados de crimes contra a humanidade.
A procuradoria do Tribunal depois solicitou a emissão de um mandado de prisão por crimes contra a humanidade, cometidos no final da década passada contra a minoria Rohingya, pelo então chefe das Forças Armadas de Mianmar e agora líder da junta militar no poder desde 1º de fevereiro de 2021, Min Aung Hlaing.
Não me parece que essas atividades judiciárias tenham obtido grande interesse ou provocado qualquer protesto. Por isso, parece que a questão da imunidade é levantada para os amigos.
Por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, Vladimir Putin também está sob mandado de prisão internacional. No entanto, ele não goza de imunidade nos países que reconhecem o Tribunal e nem mesmo em alguns dos que não aderiram, primeiro entre eles os EUA. Isso é uma reproposta de padrão duplo?
É sempre a mesma história: desde que começou a sair do recinto que havia sido construído ao seu redor (ou seja, os conflitos africanos esquecidos e “inofensivos”), o Tribunal foi contra vontade envolvido nos “padrões duplos” que prevalecem na comunidade internacional: proteger os amigos, atacar os inimigos. E, assim, elogiá-lo quando acusa os últimos, deslegitimá-lo ou acusá-lo de politização quando incrimina os primeiros.
Isso confirma o que a Anistia Internacional sempre sustentou: para além da maior ou menor sensibilidade daqueles que chefiam a promotoria do Tribunal (certamente há investigações emperradas, como a do Afeganistão, porque há anos se discute se também deveria dizer respeito às forças internacionais presentes de 2001 a 2021 no país), a eficácia desse órgão de justiça internacional depende da cooperação dos Estados que assinaram seu Estatuto (que, nunca vamos esquecer, foi adotado em Roma em julho de 1998, sob o grande impulso dos movimentos de direitos humanos e, naturalmente, também do governo italiano da época).
Hoje, 124 Estados têm a obrigação a prender fugitivos procurados pela justiça internacional, se estiverem em seu território: Putin, Netanyahu, os chefes de defesa da Rússia e de Israel, milicianos palestinos ou líbios ou golpistas birmaneses. Mas, hoje em dia, em vez disso, ouvimos falar de decisão ultrajante do Tribunal, de justiça politizada, até mesmo de “sentença”, uma afirmação que causaria uma reprovação no primeiro exame da faculdade de direito.
Além disso, há subterfúgios, como as referências à imunidade: mas em seu Estatuto, o Tribunal não reconhece a imunidade para os mais altos cargos do Estado, e o fato de Israel não ser parte do Estatuto pouco importa. Se os redatores do Estatuto tivessem cedido, dando precedência à regra do direito internacional consuetudinário que prevê a imunidade pessoal para os mais altos cargos, protegendo-os de processos judiciais enquanto durar seu mandato, não teria havido sentido sua própria criação. Seria bom que os Estados Partes do Estatuto de Roma, que estão participando neste momento de sua 23ª assembleia, se lembrassem disso. Assim como deveriam se lembrar de que, pelo menos nos Estados de Direito, não é função dos governos tomar tais decisões. Existem leis (a italiana é de 2012) que atribuem o papel de executar as solicitações de cooperação do Tribunal aos juízes estatais e não ao executivo.
A Anistia Internacional documentou, em dezenas de relatórios detalhados, os crimes de guerra cometidos por Israel e pelo Hamas. Mas o debate na Itália sempre gira, especialmente na imprensa mainstream, em torno do uso do termo “genocídio” aplicado a Gaza. Mas para os mais de 45.000 mortos, um número subestimado, na Faixa, a maioria mulheres e crianças, e para uma população reduzida à fome, nada importa sobre a definição, mas sobre a impunidade que Israel continua a desfrutar.
A partir de hoje, aquele termo, “genocídio”, também é usado pela Anistia Internacional. Fizemos nove meses de pesquisa sobre a intenção genocida de Israel com relação a três dos cinco elementos que constituem o crime de genocídio: matar membros de um grupo, causar danos físicos e mentais graves a membros do grupo, infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para causar sua destruição física total ou parcial. Verificamos a existência daquela intenção genocida e identificamos os palestinos como um “grupo protegido”, em função de ser grupo “nacional, étnico, racial e religioso”.
Essas expressões foram extraídas da Convenção sobre o Genocídio de 1948, ratificada por Israel em 1950. Verificamos a intenção genocida na conduta militar de Israel na Faixa de Gaza: nos ataques diretos contra a população civil e contra objetivos, estruturas e infraestruturas que são fundamentais para a vida dos civis, nas contínuas transferências forçadas após ordens de evacuação que afetaram 90% da população, nos obstáculos à chegada de ajudas humanitárias. Vimos isso em numerosas declarações de figuras importantes das instituições israelenses, desde a definição dos palestinos como “animais humanos” até a afirmada inexistência de uma distinção entre civis palestinos e milicianos do Hamas, ou na comparação com fatos bíblicos, como o apelo à destruição completa de uma nação inteira, o povo de Amaleque. Não se trata, é claro, de comparar a situação na Faixa de Gaza com o Holocausto, o Holodomor, o Porrajmos ou outros genocídios, quatro dos quais foram considerados como tais somente nos últimos 30 anos. A comparação não é com a história, mas com o Direito.
Tampouco, em face da “destruição total ou parcial de um grupo”, contam os números: ninguém, exceto os negacionistas mais acirrados, ousaram discutir o fato de que aquele de Srebrenica, na Bósnia, em 1995, tenha sido oficialmente sancionado como genocídio, embora as vítimas tenham sido pouco mais de 10.000.
Esse caso repropõe com força um tema caro à Anistia Internacional: a diplomacia dos direitos. Uma diplomacia abalada... Hoje, essa expressão parece esvaziada de sentido, um verdadeiro oximoro, uma frase orwelliana.
Devo lembrar um conceito expresso acima: os duplos padrões. Estamos nos aproximando do dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Mais uma vez, este ano, em seu 68º aniversário, teremos de constatar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos continua sendo uma nobre declaração de intenções, uma visão de um mundo livre do medo, da necessidade, das repressões e da violência, a que se preferiu um mundo pior.
Tudo isso em um ano em que milhões e milhões de pessoas saíram às ruas para exigir direitos em dezenas de países: Bangladesh, Nigéria, Paquistão, Quênia e também nas ruas europeias, pelos nossos direitos e pelos direitos dos outros.
O número de países em que os protestos pacíficos são reprimidos está aumentando constantemente, e a Itália também está entre eles. No entanto, é esse protesto que mantém a pressão por mudanças. Se a diplomacia dos direitos das instituições está entrando em colapso, a diplomacia dos direitos das ruas está ganhando vigor.
Em julho, os estudantes de Bangladesh que saíram às ruas contra a lei que garantia uma cota anormal de empregos no serviço público para os herdeiros da guerra de libertação de 1971 previram que haveria derramamento de sangue e, de fato, centenas foram mortos. Alguns deles, em suas poucas horas de sono noturno, sonhavam que a primeira-ministra Sheikh Hasina renunciaria ao poder e que, em seu lugar, um ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Muhammad Yunus, seria chamado para liderar o país. É o que aconteceu, em apenas três semanas. Eles ousaram sonhar e venceram. Uma inspiração para o mundo inteiro.
De Saïed a al-Sisi, de Assad a Netanyahu. O Oriente Próximo é marcado por autocratas ou pior.
Um destino inevitável?
Acrescentamos o saudita Mohamed bin Salman e a liderança iraniana e o quadro estará completo. É um período histórico infausto, sem dúvida.
Mas se essa parte do mundo é caracterizada por uma profunda e total negação dos direitos, acusar as populações locais de não terem se oposto, se levantado, se rebelado é cínico e até mesmo falso. Elas se rebelaram, e muito, várias vezes durante as décadas da República Islâmica do Irã e em massa durante as chamadas “primaveras árabes” de 2010-11.
Nós traímos e abandonamos aquelas reivindicações de direitos, deixando que Assad, na Síria, as reprimisse impiedosamente com a ajuda da Rússia, tornando o Egito de al-Sisi um país amigo e, por incrível que pareça, um país “seguro”. Tão “seguro” quanto a Tunísia, onde Kaïs Saïed traiu completamente a revolução de 2010-11. Mas ele é um nosso caro amigo.
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“Nós da Anistia também dizemos: na Faixa é genocídio”. Entrevista com Riccardo Noury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU