O cerco terminou e levou à devastação de uma área à qual todos os palestinos da Faixa estavam ligados.
O artigo é de Sami al-Ajrami, jornalista palestino, publicado por Repubblica, 01-04-2024.
Eis o artigo.
Hoje aqui, entre as tendas de Rafah, só temos uma imagem nos olhos. A da área ao redor do hospital Al Shifa, na cidade de Gaza, agora que as forças israelenses a abandonaram após duas semanas de bombardeios. É uma área devastada, quase totalmente destruída. Essas imagens – com o clássico “antes e depois” – partem nossos corações. Não só pelas muitas vítimas – as notícias falam de 400 palestinos mortos à volta do hospital, com Israel a afirmar ter matado e detido centenas de homens armados – mas também pelo que sempre representou para nós, palestinos na Faixa.
O bairro Rimal fica no coração da Cidade de Gaza e todos temos boas lembranças dele. Existe de fato – ou melhor, existiu – um famoso centro comercial, sempre cheio de gente. E também o restaurante “italiano”, o melhor do gênero na Faixa. Todo mundo já foi lá pelo menos uma vez, e também era o preferido das minhas filhas, que às vezes até mandavam entregar pizza em casa. Também em frente ao hospital Al Shifa, foi destruído o hotel mais antigo da Faixa, o Marna House, uma ‘villa’ de três andares convertida em hotel, com uma velha árvore e um simpático café. Local que conheço desde pequeno e que sempre foi frequentado por jornalistas estrangeiros, lá ia muitas vezes para tomar uma bebida ou fumar Narguilé. E quem entre nós da Faixa nunca comeu “o melhor falafel de Gaza” em Abu Dalal, na praça do mesmo nome? Recebi o último um mês antes do início da guerra.
Se algum dia regressarmos à Cidade de Gaza, será difícil reconhecer o bairro de Rimal e será uma dor passar por cima dos escombros do bairro italiano ou de Abu Dalal. Ainda mais para os palestinos que viviam nesses edifícios antes dos bombardeamentos isralenses. Muitos agora vivem aqui em tendas de Rafah, mesmo os mais ricos, e nos últimos dias fui visitá-los. Que pena ver o seu Mercedes estacionado em frente às tendas, símbolos de um bem-estar que já não existe. As suas belas vilas no Ramal foram demolidas pela artilharia e depois queimadas. Eu estava conversando sobre isso há poucas semanas com um deles, um advogado, gerente de uma ONG que lida com direitos humanos. Ele resistiu durante meses depois de se mudar para Rafah, mas quando viu as imagens da sua ‘villa’ destruída na Cidade de Gaza, comprou passagem para o Egito para si e para a sua família. “Tenho que salvar a minha família antes da invasão de Rafah”, disse-me ele com lágrimas nos olhos. Agora ele está no Cairo e sobrevive com suas economias e com a ajuda de parentes que tem no Egito.
Agora que 90% dos palestinos em Gaza perderam os seus empregos, este é o destino de muitos. Porque não temos reconhecimento estatal e internacional, mas somos uma comunidade solidária. Ajudamos uns aos outros com hospitalidade e crowdfunding. Um hábito que não desapareceu, pelo contrário, agora que estamos todos desesperados.
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