24 Abril 2024
"Colonialismo de assentamento, apartheid e hoje genocídio são a caixa de ferramentas do mundo acadêmico para descrever a natureza do estado israelense. Na indiferença. Até hoje: aquele léxico tornou-se tão global que ressoa na sala do Tribunal Internacional de Justiça", escreve Chiara Cruciati, jornalista italiana, em artigo publicado por Il Manifesto, 23-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um bombardeio israelense em Rafah matou dezesseis crianças e seis mulheres no domingo. Nas mesmas horas, uma nova vala comum vinha à tona, no hospital Nasser de Khan Younis, após o longo cerco israelense que terminou em 7 de abril: 283 corpos em sacos plásticos, muitos amarrados, muitos mortos à queima-roupa, provavelmente executados. Mulheres, crianças, idosos.
Quando a ofensiva terminar, em Gaza se caminhará sobre cadáveres.
Não é a primeira vez. Já havia acontecido no hospital Shifa. As valas comuns congelam o sangue, sedimentam o horror no imaginário global: é o abuso definitivo. Não é apenas a morte infligida, é a sua humilhação, o ultraje de um esquecimento sem dignidade. A vala comum de Bucha, na Ucrânia, permanecerá no imaginário europeu graças ao empenho dos líderes políticos que a visitaram.
Aquelas de Khan Younis e do Shifa não. Não estão nos jornais, se não estão, são postas em dúvida: eram combatentes, é um vídeo falso, talvez fosse o Hamas.
A sub-representação dos crimes de guerra cometidos por Israel – se não a sua ocultação – é uma das unidades de medida dessa ofensiva. Tem raízes históricas, aqui e em outros lugares. A questão israelense-palestina tem sido um confronto pela terra desde as suas origens. Mas foi, e ainda é, também um confronto entre narrativas. A narrativa de si é ao mesmo tempo fonte de identidade e voz daquela identidade, ainda mais num contexto colonial em que a negação do outro, do subordinado, é elemento estrutural da desapropriação e da subjugação.
No início do século XX, quando o movimento sionista chegou à terra da Palestina, o povo palestino já tinha um sentimento nacional e nacionalista fortemente enraizados e uma identidade coletiva (política, cultural, social) complexa. Com negação prolongada de autodeterminação, a necessidade de um reconhecimento externo passou pelo recurso a uma linguagem universal e compartilhada, o vocabulário do direito internacional.
Colonialismo de assentamento, apartheid e hoje genocídio são a caixa de ferramentas do mundo acadêmico para descrever a natureza do estado israelense. Na indiferença. Até hoje: aquele léxico tornou-se tão global que ressoa na sala do Tribunal Internacional de Justiça.
Não ressoa no sistema mediático ocidental, onde a violência semântica serve para justificar aquela concreta, exercida nos Territórios palestinos ocupados. Na Itália é uma dinâmica clara: a adoção acrítica da narrativa israelense, além de ser ditada por uma proximidade com as reivindicações de Tel Aviv, é funcional para a adesão a um modelo de cidadania desigual, de securitismo racializado e suposta superioridade moral.
Boa parte da imprensa italiana reproduz esse modelo por atitude racista e neocolonial. As vidas dos palestinos não contam, assim como contam menos as vidas dos migrantes ou das segundas gerações.
Os efeitos são visíveis: o recurso à linguagem israelense mesmo quando claramente contraditória com os ditames do direito internacional, a ausência de quem pratica a violência (com os palestinos mortos na guerra, mortos no êxodo), o questionamento dos testemunhos palestinos, a remoção do contexto histórico.
Mas, acima de tudo, e é isso que gera perplexidade e dor, a ocultação dos crimes de guerra israelenses. Massacres de crianças, blitz contra escolas, igrejas e mesquitas, vilipêndio de hospitais, ataques a corredores seguros durante a passagem de deslocados, fechamento das passagens de fronteira para provocar carestia, inteligência artificial para anestesiar o massacre, nada disso é contado na sua real medida pelos meios de comunicação que, noutras ocasiões, deram justamente voz à indignação. Não a geram as imagens de presos despidos, amarrados e vendados concentrados em estádios ou praças.
Tamanha sub-representação não recai apenas sobre os palestinos. Recai sobre nós: é o precursor da criminalização de quem discorda, acusado de antissemitismo no “melhor” dos casos, espancado no pior.
Dá o que pensar que o mesmo sistema midiático que evoca os anos de chumbo e as estrelas de cinco pontas para narrar o movimento estudantil, diante dos crimes de guerra ao vivo na TV e à transformação de Gaza num lugar impróprio para a vida, ainda esteja tartamudeando sobre a existência ou não de um “genocídio plausível”.
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Khan Younis mostra que as vidas palestinas não contam. Artigo de Chiara Cruciati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU