“Os âmbitos reservados apenas aos homens foram drasticamente se reduzindo em número – pelo menos no Ocidente. Entre os últimos bastiões dos âmbitos reservados masculinos, permaneceu o sacerdócio na Igreja Católica. Como não lembrar o cardeal Martini? 'A Igreja está 200 anos atrasada'”.
A seguir, reproduzimos o texto da conferência de Anita Prati, Masculinidade(s) e a “reserva masculina” na Igreja, que será transmitida ao vivo no dia 29 de outubro, às 10h. A atividade integra o Ciclo de estudos: "O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Anita Prati é professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, na Itália.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer, de coração, ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por este convite que chegou até mim verdadeiramente como um presente.
Não ostento títulos ou publicações acadêmicas a ponto de me fazer pensar que uma universidade pudesse me chamar a proferir uma conferência. Sou, simplesmente, uma mulher que pensa e escreve – tive a sorte de encontrar pelo meu caminho alguns amigos, homens, que me abriram espaços de partilha para as palavras que escrevo e, assim, há três anos colaboro com a revista online Settimana News.
Conheço a Unisinos e o IHU justamente pelas leituras e pelas traduções de alguns dos artigos que, nestes poucos anos, fui publicando na revista dos dehonianos.
Receber o e-mail que me convidava para participar deste projeto intitulado “O (não) lugar das mulheres: o desafio de demasculinizar a Igreja” me levou, acima de tudo, a refletir, mais uma vez e ainda mais, sobre a importância das palavras.
O vínculo que se criou entre nós baseia-se, de fato, única e exclusivamente nesta coisa frágil e poderosa que é a palavra, o logos que une, o logos capaz de tecer laços que, neste caso, ultrapassaram não só as barreiras geográficas, mas também as barreiras linguísticas. Como dizia o sofista Górgias em seu Encômio de Helena: o logos, a palavra, é um megas dunastes – um poderoso senhor que, com um corpo muito pequeno e invisível, realiza façanhas divinas.
Portanto, justamente porque as palavras não só criam laços, mas também criam mundos, gostaria de começar a minha intervenção precisamente partindo do título que fui convidada a desenvolver, ou seja, “Masculinidade(s) e a ‘reserva masculina’ na Igreja”.
Detenho-me imediatamente nesta primeira palavra, que é “masculinidade”, observando como a língua portuguesa tem uma riqueza maior do que o italiano, ou seja, a possibilidade de declinar a palavra também no plural: “masculinidade” pode se tornar “masculinidades”, deixando claro, por meio de um expediente gramatical muito simples e imediata (a passagem do singular ao plural), que a masculinidade não existe na forma de um ideal singular e estereotipado, mas encontra uma conjugação concreta em uma pluralidade rica, variada, multiforme.
O italiano, justamente a partir desta base gramatical que não prevê o plural da palavra em si, tem um pouco mais de dificuldade em se permitir pensar a masculinidade como uma possível abertura plural. Em nosso auxílio, felizmente, vem o artigo e, assim, podemos ter “la mascolinità” [a masculinidade] e “le mascolinità” [as masculinidades]. O esforço da gramática para assumir o plural “dentro” da palavra fala do esforço de pensar a masculinidade como plural – as masculinidades; e, ao mesmo tempo, em contraponto, o esforço de pensar também a própria feminilidade como um possível plural, ou seja, as feminilidades.
Gostaria, portanto, na primeira parte da minha intervenção, de desenvolver, a propósito da palavra “masculinidade” conjugada em seus possíveis plurais, uma reflexão sobre o vínculo entre dinâmicas linguísticas estereotipadas e dimensões culturais. Na segunda parte, entrarei no mérito da chamada “reserva masculina”, compartilhando com vocês, a partir do fato de eu ser professora de letras e mulher da Igreja, todas as minhas reservas sobre essa reserva.
Masculinidade: etimologia Para entrar no coração das significações que a palavra “masculinidade(s)” – singular/plural – traz consigo, escolho duas vias de acesso. A primeira parte da própria palavra e, portanto, da etimologia, que é a matriz de sentido que cada palavra informa sobre si. A segunda, por sua vez, refere-se à dimensão da representação e, em particular, da representação literária, que é o modo por meio do qual as palavras se tornam a carne viva do nosso imaginário.
A escavação, não só etimológica, mas também literária é importante, porque permite atravessar e desconstruir as sedimentações seculares que incrustam a palavra e correm o risco de nos fazer sentir como um dado imutável aquilo que, pelo contrário, é um véu e uma cobertura que se formaram ao longo do tempo.
Além disso, é importante levar em conta o fato de que, para fazer emergir as significações profundas da palavra “masculinidade”, é indispensável pensar essa palavra-problema em uma chave de correspondência contrastante com a outra palavra-problema, “feminilidade”.
Comecemos pela etimologia, então.
A matriz do termo “masculinidade” é o adjetivo latino masculus, ligado ao substantivo mas, maris, que significa “masculino” e que, por sua vez, se conecta à raiz indo-europeia *ma-. Essa é uma raiz muito vital, que se apresenta nas formas apofônicas mn-, men-, man-, mon-, cujo significado de fundo remete à ideia de “medir, pensar, preparar, construir”. Encontramos essa raiz em palavras muito antigas como “mãe, matéria, mão, mês, metro, mente, modo” e no adjetivo “humano”.
Uma primeira observação: é interessante que a palavra “macho” esteja ligada à palavra “mãe” (aquela que dá a medida, a ordenadora) justamente a partir dessa raiz que preserva uma qualidade essencial do humano, ou seja, a capacidade de se dar e de dar razão ao mundo.
Se nos dirigirmos à palavra “feminilidade”, notamos, em primeiro lugar, que essa palavra deriva do latim foemina, em que foe- é o radical que remete a um verbo que indica a ação de sugar e, portanto, de amamentar, e mina é o sufixo participial: “fêmea” é quem amamenta, quem nutre, quem dá à luz, quem gera.
Em relação a “macho”, que – como se disse – explicita o humano como capacidade de dar e de se dar razão do mundo, “fêmea” se encarrega de sublinhar o potencial generativo ligado ao ato singular de trazer ao mundo, de dar à luz, mas também ao desenrolar do processo de geração por meio da alimentação e do cuidado.
E aqui é interessante uma segunda observação: dado que “fêmea” é quem gera e quem amamenta, “pai”, que vem da mesma raiz do verbo “apascentar”, também traz consigo a ideia da alimentação e do cuidado: pai é quem apascenta, quem nutre ou dá o alimento.
E isso nos leva a focar outra ênfase interessante: “macho” e “mãe” são palavras ligadas entre si pela ideia de dar conta do mundo; “fêmea” e “pai”, por sua vez, estão ligadas pela ideia de cuidar, de nutrir.
Deixemos aqui estas observações, entretanto, e sigamos em frente.
Passemos para o reconhecimento literário e vejamos como a literatura tem colocado em cena a palavra “masculinidade” e seu contraponto “feminilidade”. Para fazer isso, parto das duas obras que podemos considerar fundantes da literatura ocidental, a Ilíada e a Odisseia.
Se pedíssemos a alguém sem competências específicas que traçasse sinteticamente um retrato dos protagonistas desses dois poemas, tenho quase a certeza de que surgiria algo assim: “O herói da Ilíada é Aquiles, um guerreiro destemido, invencível e completamente invulnerável, não fosse por aquele tendão... O herói da Odisseia é Odisseu/Ulisses, homem inteligente, astuto, corajoso e sempre pronto para a aventura. Ah, além disso, é claro, na Odisseia também há Penélope, uma mulher exemplar em fidelidade e paciência”.
Como podem ver, as imagens da masculinidade e da feminilidade que emergem da “vulgata” da Ilíada e da Odisseia dão lugar, sem reservas, ao estereótipo, ou, melhor, tornam-se elas mesmas garantia do estereótipo e de sua validação: o macho é o herói sem mancha e sem medo, que combate pelos grandes valores da vida e vai pelo mundo para se enriquecer de experiências, enquanto a fêmea fica em casa se ocupando de coisas sem importância, coisas que não têm nenhum peso para o destino do mundo, como fazer e desfazer pedaços de tecido.
Mas, entre a história em sua fonte original e as suas renarrações por meio de um filtro interpretativo condicionado pelas convenções de gênero e, portanto, por sua vez, condicionante, passa todo um mar – que depois se torna um oceano – de preconceitos, clichês e banalidades retumbantes. Libertar o imaginário dessas banalidades não é fácil, mas tentamos.
Comecemos pela Ilíada e por um belo ensaio de Nicole Loraux intitulado “O feminino e o homem grego”. Nicole Loraux foi uma grande filóloga clássica, que morreu aos 60 anos, há pouco mais de 20 anos. Seus estudos, de caráter pioneiro, abriram perspectivas totalmente novas e não convencionais do ponto de vista metodológico e interpretativo na abordagem da Grécia e do mundo clássico.
Tomo o capítulo IV de seu ensaio, no qual Loraux convida a “retomar a interpretação ao texto” e observa que, “para grande surpresa de quem tem uma ideia convencional demais do heroísmo, é preciso se render à evidência: na epopeia, não existe um só guerreiro que pelo menos uma vez não tenha sentido medo”. Não só o covarde, mas o corajoso também tem medo; ou, melhor, para o herói homérico, a verdadeira coragem não é não sentir medo, mas sentir medo e ser capaz de dominar esse medo.
E, no capítulo seguinte, Loraux observa ainda que “todos os grandes heróis da Ilíada experimentaram, ao menos uma vez, o sofrimento de uma ferida”. Não entrarei no mérito do belo caminho percorrido por Loraux para captar as afinidades entre o sangue que sai do corpo dos homens devido às feridas infligidas pelos inimigos e o sangue que flui dos corpos das mulheres sem que as mulheres possam impedi-lo. Chego à conclusão, emblemática: “Estudando a figura grega do herói, o historiador do imaginário rapidamente se familiariza com a ideia de que o homem nunca é tão homem do que quando tem algo de mulher dentro de si”.
Se na cena da Ilíada as figuras masculinas aparecem predominantes em termos numéricos e de “peso” narrativo em comparação com as figuras femininas, não devemos cair na fácil armadilha de pensar que o feminino não está ali, que foi eliminado. Pelo contrário: na Ilíada, o feminino é assumido e incorporado pelos heróis que, longe de serem as máscaras impassíveis e desprovidas de cicatrizes, cuja descrição pode ter sido conveniente durante séculos, são, pelo contrário, capazes – no sentido latino, isto é, carregam e guardam dentro de si – de emoções e sentimentos, até mesmo contraditórios entre si.
A figura do masculino e da masculinidade, na Ilíada, é a ambivalência. Ainda Loraux diz: “A grandeza da Ilíada consiste precisamente em ter sabido perseguir magnificamente o masculino em seu aspecto vacilante: vulnerável-invulnerável, ferido mas intacto, um instante depois triunfante por ter vencido a fraqueza, corpo inquebrável e, ao mesmo tempo, delicado”.
Passemos agora à Odisseia. Aqui, eu começaria pelas figuras femininas que povoam a cena em grande número e vivacidade. Seria redutivo, para não dizer aviltante, parar apenas em Penélope. É redutivo e humilhante pensar em Penélope só como uma esposa paciente e passiva.
Portanto, não apenas Penélope, mas também os rostos multiformes de uma feminilidade que só o é verdadeiramente quando pensada nas infinitas facetas da pluralidade. E assim temos Calipso, a mulher apaixonada, que gostaria do homem totalmente para ela, mas que, se ele não quiser ficar, é capaz de deixa-lo partir ou, melhor, que o ajuda a partir; Circe, a mulher irresistível no corpo e na fala; Nausícaa, a beleza da juventude na floração primaveril que une força e fragilidade; Anticleia, a mãe de Ulisses, mulher de dores, como todas as mães que não sabem mais nada sobre o destino dos filhos; Euricleia, a ama, mãe, como tantas outras, não na carne e no sangue, mas no leite e no coração; Arete, a mãe de Nausícaa, rainha dos feácios, mulher influente de poder e de governo; as Sereias, Cila e Caríbdis, a feminilidade monstruosa da qual não se sabe como se defender; as criadas infiéis e as criadas fiéis, mulheres nas quais se pode confiar, mulheres das quais é melhor duvidar; e Atena, a confidente, o ombro e o apoio nos momentos de dificuldade, a amiga do coração com quem se pode compartilhar os sofrimentos e a alegria da vida.
É tão rica e variada a presença feminina na Odisseia, é tão multiforme a imagem da feminilidade que dela emerge que, no século XIX, um pensador inglês original, Samuel Butler, chegou ao ponto de levantar a hipótese de que a Odisseia teria sido escrita, na realidade, por uma mulher. Como que dizendo: só as mulheres se dão conta de que também elas estão no mundo, só as mulheres sentem a necessidade de dizer e contar histórias em que a presença delas não se reduz a um pano de fundo indistinto ou a um contorno marginal e até irritante.
O livro de Butler, “A autora da Odisseia”, de 1897, foi retomado depois em 1955 pelo ensaísta e romancista britânico Robert Graves, em um romance histórico muito agradável intitulado “A filha de Homero”. Tomo a liberdade de inserir estas sugestões de leitura na esperança de que as minhas divagações literárias possam se tornar uma oportunidade para refletir sobre como e em que medida as pré-compreensões condicionam o nosso modo de olhar para a realidade. Porque nós sabemos que, na concretude das nossas experiências de vida, pudemos encontrar mulheres fiéis e mulheres infiéis, mulheres sábias e de autoridade, e mulheres caprichosas, amigas confiáveis e fortes, e falsas amigas, mães pacientes e mães castradoras – uma polifonia extraordinária! No entanto, as pré-compreensões das quais custamos a nos libertar nos levam a encaixar as pluralidades concretas do feminino, com todas as suas variáveis, dentro de atribuições que devem necessariamente corresponder a uma idealidade singular pré-estabelecida. Da série “é uma mulher, então…”.
O fato de as numerosas figuras femininas da Odisseia terem sido achatadas, positivamente, no único ícone de Penélope ou, no máximo, no de Nausícaa e, negativamente, a Circe e às várias monstruosidades das Sereias, de Cila e de Caríbdis, traça uma continuidade não muito surpreendente com as figuras femininas consagradas pelo imaginário cristão, que até ontem – ou menos ainda – conseguia pensar a mulher apenas dentro de limites e categorias fechadas como gaiolas sem saída: ou dentro dos limites das duas polaridades contrapostas Maria-Eva (anjo-demônio, salvação-perdição) ou dentro das categorias da virgo [virgem] e da mater [mãe]. Categorias, estas, que receberam consagrações desde a promulgação dos dois primeiros dogmas marianos: em 431, no Concílio de Éfeso, Maria Theotókos, mãe de Deus; em 553, no Segundo Concílio de Constantinopla, Maria Aeipárthenos, sempre virgem.
Deixo por um momento a reflexão sobre a feminilidade – ou, melhor, sobre as feminilidades – na Odisseia, e volto-me para Ulisses.
O Ulisses da vulgata, como sabemos e já dissemos, é o fanfarrão que sai pelo mundo, livre de amarras e de preocupações, totalmente voltado à aventura e com sede de conhecimento. Mas é também o homem inteligente e astuto, que sabe felizmente se virar em todas as situações mais conturbadas.
Mas, estereótipos à parte, o que podemos dizer sobre a masculinidade de Ulisses?
Para chegar ao cerne dessa reflexão, parto de um dos epítetos que mais bem qualificam a personalidade do herói da Odisseia. Esse epíteto soa, em grego, polymetis, rico em metis e, portanto, na tradução, astuto, inteligente.
A pergunta que devemos nos fazer neste ponto é: o que é metis?
As energias que o Ocidente desdobrou ao longo dos séculos para refletir e teorizar sobre o logos não podem ser quantificadas. O logos é a pedra angular do pensamento e da reflexão filosófica ocidental. Mas o mundo grego, desde suas raízes homéricas, sempre soube que a vida é vital não apenas em virtude do logos, mas também graças a metis.
Para entender o que é metis, partamos de um mythos, de um conto, que tem como protagonista Metis – escrita com letra maiúscula. Metis é uma deusa. Uma deusa antiga, uma oceanina da geração dos Titãs e das Titânides. Sua primeira aparição na cena mítica a mostra nas vestes de conselheira: é ela quem dá a Zeus o sábio conselho que lhe permite libertar-se da condição de opressão em que havia sido mantido por seu pai, Cronos. Graças a Metis, Zeus consegue destronar Cronos e tomar seu lugar.
Metis é a personificação da sabedoria, e é por isso que Zeus a toma como esposa. Mas não só isso. Visto que, segundo a eterna repetição do mito, o filho que nascerá dela e de Zeus estará, por sua vez, destinado a expulsar seu pai do trono para reger o mundo em seu lugar, quando Metis fica grávida, Zeus a engole e a faz desaparecer dentro dele. Conhecemos, depois, a história: será o próprio Zeus quem levará a gravidez a termo, e a criança que nascerá será, na verdade, uma filha, a deusa Atena, que, na hora do parto, sairá vestida e totalmente armada da cabeça de seu pai.
Mas voltemos a Zeus e a Metis. O que esse mito nos diz? Se Zeus engole e absorve Metis, a Sabedoria, dentro de si, neste ponto, a Sabedoria torna-se um atributo imprescindível do Divino.
De Metis com letra maiúscula a metis com letra minúscula, de nome próprio a nome comum. A deusa não está mais lá – está dentro de Zeus – mas permanece sendo a sabedoria (com letra minúscula). E metis, a sabedoria, o que é? Se logos é palavra, discurso, raciocínio, estudo – pensamento sublime, mas abstrato, quase impalpável, inconsistente –, metis é, em vez disso, o pensamento que não precisa pensar, o pensamento concreto que desvenda emaranhados e dissolve obstáculos, o pensamento que age, que encontra, resolve, supera percalços e remove os impedimentos. Metis é o pensamento que se mede com a vida em toda a sua concretude e palpabilidade.
Dirão ainda que metis é a inteligência feminina, um degrau abaixo do logos ou, talvez, até um pouco mais.
Mas ali, na Odisseia, em um dos textos fundantes do imaginário ocidental, o herói só é herói porque é polymetis, por estar dotado daquela capacidade (feminina?) de se virar em todas as situações, que é sabedoria de vida e olhar irônico sobre o mundo.
Algumas conclusões, agora, puxando os fios dessas nossas divagações etimológicas e literárias.
A etimologia sugere aproximações inéditas entre o macho e a mãe, a masculinidade e a maternidade – sabíamos que dar-se e dar razão do mundo era uma prerrogativa masculina; talvez nem sempre tenhamos considerado que o materno também deveria ser pensado nessa perspectiva.
A etimologia nos leva a pensar ainda a fêmea em ressonância com o pai, na feminilidade com a paternidade. Também aqui, seguramente sempre soubemos que prover a nutrição e cuidar da prole eram uma prerrogativa feminina; muito menos, provavelmente, pensamos na paternidade como um exercício de cuidado.
O reconhecimento literário nas duas obras-primas da Grécia antiga, Ilíada e Odisseia, nos fez encontrar masculinidades (plurais) muito mais nuançadas e complexas do que a ideia comum e padronizada do herói macho destemido e invulnerável, aventureiro astuto e temerário. Os heróis da Ilíada sentem medo, choram, sofrem, sentem dores no corpo e na alma, gritam e tremem – como as mulheres, diriam alguns –, enquanto o polymetis Ulisses desdobra repertórios de astúcia e estratagemas dignos da raposa mais astuta – e a raposa, como sabemos, é feminina por gênero gramatical, mesmo quando é masculina por sexo e por natureza.
Comprimir as masculinidades e as feminilidades (plurais) dentro da forma abstrata de uma singularidade ideal é uma operação perigosa e violenta, muito violenta. Temos de nos perguntar, por exemplo, quanto mal provocou não só às mulheres, mas também aos homens pensar em Penélope como o protótipo ideal da feminilidade passiva e condescendente.
Haveria muito, muito a dizer sobre Penélope. Gostaria apenas de sugerir que vocês releiam comigo a maravilhosa semelhança que sela seu reconhecimento do marido após 20 anos de distância, no livro XXIII da Odisseia:
“Tal como a vista da terra distante é agradável aos náufragos, quando, em mar alto, o navio de boa feitura Posido faz soçobrar, sob o impulso dos ventos e de ondas furiosas; poucos conseguem chegar até o firme, nadando nas ondas de cor escura, com os membros cobertos de espessa salsugem, e ledos pisam a praia, enfim tendo da Morte escapado; do mesmo modo a Penélope a vista do esposo era cara, sem que pudesse dos cândidos braços, enfim, desprendê-lo” (Odisseia XXIII, 233-240; trad. Carlos Alberto Nunes, Ed. Nova Fronteira, 2015).
Penélope que abraça Ulisses e não consegue desprender os braços do pescoço dele é como um náufrago que finalmente chega à terra firme – uma imagem muito poderosa que põe novamente em jogo e inverte o estereótipo, já que Ulisses, o náufrago vacilante por excelência, se faz terra firme aqui, imobilidade estável e passiva, enquanto a estática e imóvel Penélope, aquela que, nesses longos 20 anos de espera, nunca se afastara de Ítaca, é a mulher corajosa que, incrustada pelas agruras de sua solidão, combater os ventos e as ondas dos naufrágios da vida e, depois de vencer o perigo, finalmente conseguiu chegar ao porto.
Neste ponto do nosso percurso, devemos traçar o arco da ponte que nos permitirá conectar a primeira parte do título, dedicada à masculinidade no plural, das suas conjugações, à segunda parte, que trata da chamada “reserva masculina” na Igreja Católica.
Para traçar esse arco, sirvo-me mais uma vez de uma palavra ou, melhor, uma raiz indo-europeia, a raiz vi-, que carrega em si a ideia de fundo da força vital e do princípio energético que age e opera na natureza e por meio da natureza, no mundo e na humanidade. Encontramos essa raiz em muitas palavras de origem latina: vis/força, com seu derivado violentia/violência; vita/princípio vital; ver/primavera; viridis/verde, com seu derivado viriditas, tão caro a Hildegarda de Bingen; virga/broto. Também a encontramos nas palavras vir/homem e virgo/mulher, jovem mulher.
Ainda não chegamos à pedra angular, mas esse certamente é um pilar estrutural imprescindível da nossa discussão: vir e virgo têm o mesmo status etimológico, ambas as palavras falam de uma força vivificante e vital, pronta para se expressar e agir no mundo.
No entanto, o porte epistemológico é muito diferente, as superestruturas de sentido que se sobrepuseram a esse significado de fundo são muito diferentes, fazendo com que, a partir de vir e virgo, tomassem forma, por superfetação, os dois modelos normativos e paradigmáticos da virilidade e da virgindade.
Virilidade e virgindade representam a modelização levada ao extremo da masculinidade e da feminilidade. Ora, se para a masculinidade e a feminilidade já é possível e está em curso a passagem que, da abstração ideal do singular, leva à recuperação da concretude do plural, virilidade e virgindade habitam ainda e apenas o reino do ideal, são ainda e apenas um ideal. Um ideal a ser perseguido em uma forma que, em sua essência, é, acima de tudo e talvez apenas, uma forma sexual e sexuada.
Explico-me melhor. Os feminismos trouxeram reflexões decisivas sobre a questão feminina, desencadeando, consequentemente, caminhos de pensamento que também tematizaram a questão masculina e a masculinidade. Daí os conceitos de masculinidade tóxica e de masculinidade hegemônica, termos que hoje são comumente usados para indicar modos de comportamento dos homens que já se tornaram inaceitáveis. Daí, a imagem de uma masculinidade multiforme e variada, não mais estereotipada no modelo do macho “que nunca deve pedir”, como dizia o slogan de uma histórica propaganda de loção pós-barba dos anos 1980. Daí a liberdade e o amplo fôlego de uma masculinidade capaz de toda a infinita gama de sentimentos e de emoções de que o ser humano é capaz, seja homem ou mulher.
O fato de que a jaula daquela masculinidade abstrata e ideal, de uma vez só, já foi aberta pode agora ser visto a partir de pequenos sinais, diminutos – desde o cuidado que tantos homens das novas gerações dão ao corpo e aos sentimentos até às lágrimas do ministro que chora ao vivo na televisão pedindo desculpas à esposa, a Vasco Rossi, que canta “fica perto de mim... vou aonde você for”, aos jovens pais que vão ao supermercado fazer compras segurando os filhos pela mão.
Por sua vez, Marcel Gauchet, em seu recente livro “O fim da dominação masculina”, chega ao cerne do argumento sem meios termos:
“O acontecimento não é de pouca importância. Pelo contrário, é tão enorme a ponto de despertar incredulidade – do tipo: ‘algo assim não pode acontecer’. Mas é assim: estamos assistindo ao fim da dominação masculina. Entendamo-nos: está morto como princípio, mas deixando atrás de si toda uma série de consequências que podem esconder a profundidade da ruptura ou permitir a negação de sua existência. O fim, no entanto, aconteceu, e precisamos fazer as contas com ele.”
Mas, se feminilidades e masculinidades se libertaram ou estão em vias de se libertarem das amarras da abstração ideal, arrastando consigo, nesse movimento de ruptura, até as estruturas profundas da dominação masculina, virgindade e virilidade são fantasmas que ainda pairam nos sonhos noturnos e diurnos de muitas pessoas.
Estamos nos aproximando da pedra angular do arco da nossa ponte. Superfetação de sentido, eu dizia. Sim, porque o que – na proposta da etimologia – é, tanto para virginitas quanto para virilitas, energia e tensão e abertura vital, vis, na imposição modelizadora do imaginário, tornou-se simplesmente uma questão de hímens intactos e ereções.
De fato, eis as figuras da virgo intacta e do vir potens, apoteose do feminino e do masculino, figuras nas quais a superextensão da sexualização invade de modo sutil e pervasivo cada dobra de significado; figuras irreconciliáveis e absurdamente antinômicas, cujo encontro só pode gerar conflitos e guerras contínuas. Sim, porque, em um jogo de papéis tão estruturado, cabe à verdadeira mulher o compromisso sobre-humano de manter firmemente apertado a fechadura que o verdadeiro homem, se quiser ser assim considerado, tem a tarefa de continuar forçando. Ça va sans dire, toda mulher é uma vítima em potencial, e todo homem, um predador em potencial.
Mas algo aconteceu. Houve uma onda feminista. Uma primeira, uma segunda, uma terceira onda. Uma quarta, agora. As mulheres, é evidente, não estão mais se adequando passivamente ao modelo virginal, ainda mais sublimado no modelo materno, que durante séculos lhes foi imposto, não só pelos homens, mas também pelas próprias mulheres. O modelo virginal, que se manteve e funcionou tão bem durante séculos e séculos, agora não funciona mais, não consegue mais dizer nada.
É emblemático o caso de Santa Maria Goretti. Tendo sido morta aos 12 anos de idade, em 6 de julho de 1902, devido aos golpes de adaga que lhes haviam sido infligidos por seu jovem vizinho após uma tentativa frustrada de estupro, Maria Goretti foi proclamada santa quase 50 anos depois, em 1950.
Cada época tem ou, melhor, proclama os santos que mais correspondem às suas expectativas ou às suas urgências. A emancipação da mulher já avançava com passos decisivos, também na Itália, naquelas primeiras décadas do século XX. Mussolini e a Igreja, juntos na Concordata, encontraram motivos de mais harmonia e de reforço recíproco na vontade comum de conter a novidade disruptiva e traumática da emancipação feminina.
O compromisso assumido pelos promotores da causa de beatificação da pequena Maria Goretti pusera de acordo, em nome da moral pública, a ideologia fascista e a catequese cristã, como se verifica muito bem nas palavras dirigidas por Pio XII aos peregrinos que acorreram a Roma em abril de 1947, para a proclamação da nova bem-aventurada:
“Em outras ocasiões, Nós já demonstramos amplamente como neste meio século o mundo feminino, da vida reservada e retraído – características da era anterior –, foi lançado em todos os campos da vida pública, até ao próprio serviço militar. Esse procedimento foi realizado com, gostaríamos de dizer, uma celeridade implacável.
“Se não quisermos que mudanças tão profundas e rápidas determinem as mais graves consequências na religião e nos costumes da mulher, devem ser reforçados nela acima de tudo aqueles valores íntimos e sobrenaturais que refulgiram na nova Bem-aventurada: espírito de fé e de modéstia, e isso não só como sentimento de pudor natural e quase inconsciente, mas como virtude cristã consciente e cuidadosamente cultivada.
“Além disso, todos aqueles que trazem no coração o bem da sociedade humana e a saúde temporal e eterna da mulher devem exigir firmemente que a moral pública seja a guardiã de sua honra e dignidade.”
Três anos depois, no dia 24 de junho de 1950, Maria Goretti, “a pequena e doce mártir da pureza”, uma pobre menina analfabeta, que só fizer a comunhão cinco vezes em sua brevíssima vida, era santa.
Mantenhamos bem firmes no horizonte do nosso raciocínio aquele ano de 1950.
Porque não é por acaso que, justamente nesse mesmo ano – ano santo, ano jubilar –, no dia 1º de novembro, Pio XII proclamou o dogma da Assunção com a bula dogmática Munificentissimus Deus:
“A imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial.”
Maria, mãe virgem, imaculada na alma, assunta ao céu com seu corpo: um modelo feminino cada vez mais ideal, cada vez mais abstrato, inalcançável, inatingível.
Tão inatingível que, expressado desse modo, esse modelo não funciona mais e não interessa mais a ninguém, assim como Maria Goretti não funciona mais como modelo de martírio a ser apresentado às meninas. No máximo, hoje, podemos olhar para Maria Goretti como a pobre vítima de um feminicídio e, antes ainda, da miséria feroz, feita de fome, ignorância, sujeira e trabalho brutal, que caracterizava tantas zonas rurais da Itália no início do século passado.
Portanto, com todo o respeito a Pio XII, só nos resta constatar que mudanças verdadeiramente profundas e rápidas determinaram as mais graves consequências na religião e nos costumes da mulher. Se tínhamos alguma dúvida disso, se não nos basta observarmos como as nossas filhas e as amigas das nossas filhas hoje percorrem sozinhas estradas nas quais nós – as mulheres da minha idade – sequer ousávamos pisar, os números claros e inequívocos das estatísticas estão aí, prontos para nos lembrar: as mulheres não têm mais filhos, não entram mais ao convento nem vão mais à missa. Esse é o retrato das nossas sociedades ocidentais.
O que afirmei antes merece, portanto, uma correção. Porque, pelo menos para as mulheres, no Ocidente, o fantasma da virgindade não é mais um fantasma.
Mas outro fantasma continua nos perseguindo: como a sombra de Banquo, no Macbeth de Shakespeare, o espectro do vir potens paira funestamente sobre as nossas mentes e as nossas vidas.
Presença obsessiva que alimenta alucinações e leva à loucura, o vir potens tem uma única missão a cumprir: demonstrar ao mundo inteiro que não é impotente. Esmagado pela ânsia de desempenho, ele dedica toda sua energia à afirmação de primazias e à definição de hierarquias, arrogando-se privilégios e desdobrando continuamente cenários existenciais povoados por inimigos a combater, vítimas a subjugar, primados a alcançar.
Não faz distinções de censo e de classes sociais. Persegue a mente do chefe industrial, obcecado pela concorrência, e a do desempregado sem arte nem parte, que, no entanto, sempre consegue encontrar alguma mulher para mostrar quem manda.
Encontra-se à vontade entre as mesas da política, vive bem nos palácios do poder, no lugar de honra, na primeira fila, nos altares, nos salões secretos e nas salas de controle. Materializa-se nos tons e nas palavras agressivas, substancia-se de furores belicistas; com perfídia melíflua, manipula, subjuga, condiciona.
Constrói armas, o vir potens, usa capacetes, embraça o fuzil, usa a faca, o bastão, o cetro e o báculo – símbolos fálicos tão evidentes que dispensam qualquer explicação.
“Ainda és o da pedra e da funda, homem do meu tempo.” Assim começa um intenso poema de Salvatore Quasimodo, um dos maiores poetas italianos do século XX:
Ainda és o da pedra e da funda,
homem do meu tempo. Estavas na carlinga,
com as asas malignas, as meridianas de morte,
eu te vi – dentro da carruagem de fogo, nas forcas,
nas rodas de tortura. Eu te vi: eras tu,
com tua ciência exata persuadida ao extermínio,
sem amor, sem Cristo. Mataste de novo,
como sempre, como mataram os pais, como mataram
os animais que te viram pela primeira vez.
E esse sangue cheira como no dia
Em que o irmão disse ao outro irmão:
"Vamos aos campos." E aquele eco frio, tenaz,
chegou até ti, dentro da tua jornada.
Esqueçam, ó filhos, as nuvens de sangue
que subiram da terra, esqueçam os pais:
seus túmulos afundam nas cinzas,
os pássaros negros, o vento, cobrem seu coração.
O poema é de 1947. O horror da Segunda Guerra Mundial é uma ferida recente e não curada: o anseio pela paz, o desejo de relações que saibam falar de fraternidade e de amor – que tenham sabor de Cristo – é forte, mas o homem ainda e sempre é o vir potens que dedica todas as suas conquistas de pensamento ao extermínio e que vagueia pelas ruas em busca de sangue, cheirando a sangue.
Se não é guerra quente, é guerra fria, guerra em pedaços, guerra de baixa intensidade. Como aquela que massacra mulheres todos os anos e se chama feminicídio.
E se não bastasse isso, o jogo sujo dos campos de batalha se repete todas as vezes, limpo e engravatado, no desdobramento de forças cerebrais e verbais que, a cada novo conflito, envolve os analistas especialistas em geopolítica e em estratégia militar, lançados na arena dos debates e voltados, com autossatisfação orgástica, a escavar o mais profundamente possível nas supostas razões da guerra.
Como se o fato de dizer as razões não fosse já dar razão, justificar a guerra em si como princípio, como teatro em que a encenação da virilidade vive seus triunfos mais dramáticos.
A encenação da virilidade: eis a pedra angular que nos permitirá agora chegar rapidamente à conclusão desta palestra que, com base no que está indicado na segunda parte do título, deve agora tratar da chamada “reserva masculina”. Que, neste ponto, dadas as premissas ilustradas até aqui, é mais consequente e honesto definir como “reserva viril”.
Houve um tempo em que as mulheres eram seres inferiores, e todos sabiam disso, até as próprias mulheres. Elas não tinham alma nem inteligência, eram fracas e precisavam de proteção, eram irracionais e incapazes de autocontrole e, acima de tudo, eram impuras. Portanto, é lógico ou, melhor, necessário impedir-lhes de ter acesso ao mundo e mantê-las trancadas a sete chaves.
Era um tempo em que os âmbitos reservados apenas aos homens eram incontáveis. Dentro de casa, o gineceu e o harém definiam os limites entre ambientes de acesso permitido às mulheres e ambientes de acesso proibido; fora de casa, as mulheres eram proibidas de frequentar as ruas e as calçadas (lugares notoriamente frequentados apenas por “mulheres da rua”), as escolas (que nunca haja o monstrum de uma mulher capaz de ler e escrever, que nunca haja o absurdo de doutorar as mulheres!) e todos os lugares de exercício de poder e da diversão (que, aliás, é outra forma de poder).
Todas as religiões sempre assumiram substancialmente como um dado natural essa concepção de um feminino limitado e imundo e, portanto, inevitavelmente, sempre levantaram barreiras invisíveis ao redor dos espaços do sagrado que as mulheres foram proibidas de ultrapassar.
Na Igreja Católica, durante séculos a tradição eclesiástica impediu às mulheres o acesso ao altar. Somente em 2021 o motu proprio Spiritus Domini, do Papa Francisco, um papa proveniente da América Latina (e eu não acho que seja uma coincidência), minou essa norma secular, modificando o cânon 230 § 1 do Código de Direito Canônico, permitindo o acesso ao ministério instituído do leitorado e do acolitado também “para as pessoas do sexo feminino”. Traduzido em termos espaciais, as mulheres foram oficialmente autorizadas (como se já não o fizessem há décadas...) a pôr os pés, as mãos e a voz na zona off-limits do presbitério, onde, até 2021, de acordo com o Direito Canônico, o acesso era reservado apenas ao clero oficiante.
Hoje, graças às reivindicações feministas, descobriu-se e admitiu-se que nós, mulheres, também temos alma, inteligência e consciência autônoma, assim como os homens, que somos indivíduos inteiros, e não divididos, da mesma forma que os homens e, portanto, da mesma forma que os homens, podemos exercer direitos e assumir deveres. Assim, os âmbitos reservados apenas aos homens foram drasticamente se reduzindo em número – pelo menos no Ocidente.
Entre os últimos bastiões dos âmbitos reservados masculinos, permaneceu o sacerdócio na Igreja Católica. Como não lembrar o cardeal Martini? “A Igreja está 200 anos atrasada”.
Não tenho as competências acadêmicas para entrar no mérito das questões teológicas que até hoje continuam mantendo a porta do ministério ordenado fechada para as mulheres, com tranca dupla ou tripla. Sou simplesmente uma professora e leio, por paixão e por ofício. Empreendemos a nossa reflexão relendo algumas palavras e algumas representações literárias. Gostaria de concluí-la relendo, como em uma sinopse, algumas imagens.
Tomemos uma Quinta-feira Santa, pela manhã, na catedral, quando o bispo celebra a Missa Crismal e todos os padres da diocese desfilam em procissão atrás dele e depois vão encher o presbitério e as naves.
Tomemos uma ação militar em um filme de guerra, um filme qualquer que narra uma guerra qualquer.
Em ambas as cenas, o protagonista masculino é exclusivo e indiscutível, no plano numérico e no plano simbólico. No desenvolvimento da trama narrativa, também poderia haver presenças femininas – das coristas ou das fiéis que assistem à celebração, das enfermeiras da Cruz Vermelha que socorrem os feridos –, mas não há dúvida de que seriam apenas figuras marginais e de fundo, apenas aquele toque de cor que confere vivacidade às imagens e faz você se sentir tão politically correct.
Não há dúvida de que os verdadeiros protagonistas são eles, os homens, os padres de paramentos farfalhantes, os soldados de armadura ou camuflados. Não há dúvida de que ambas as representações dizem a mesma coisa – a encenação da virilidade, a flagrante autocelebração do vir potens, ainda e sempre em busca de confirmação.
Depois, pensemos em Jesus de Nazaré, o Jesus dos Evangelhos. Pensemos nos seus pés pelas estradas da Galileia, nas suas mãos que tocam e libertam. Pensemos no discipulado de iguais que fez as mulheres se apaixonarem pela sua palavra de liberdade e de verdade, pensemos em Maria de Mágdala e em muitas outras – sem rosto, sem nome e sem voz, sem tradição – que o seguiram, em todos os lugares e em todos os tempos.
Muitas vezes eu penso em Jesus. Penso em Jesus desarmado e penso em Jesus que cinge seus rins com um pano de linho. Não consigo vê-lo sentado na cátedra, com a mitra na cabeça e o báculo na mão, cercado apenas de homens.