07 Fevereiro 2024
"Sair da idealização mística do feminino, para descobrir as mulheres reais, é uma forma, talvez a única, de aceitar e valorizar aquele evento que João XXIII reconheceu claramente na sua última Encíclica, Pacem in terris: a entrada da mulher no espaço público".
O artigo é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 01_02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que falar sobre um “evento” que se torna um “livro”? Porque me parece que o pequeno volume que acaba de ser lançado pelas edições Paoline (L. Vantini – L. Castiglioni – L. Pocher, “Smaschilizzare la Chiesa”? Confronto critico sui “principi” di H.U. von Balthasar” (Desmasculinizar a Igreja”? Confronto crítico sobre os “princípios” de H.U. de Balthasar, 2024) é o registo público e objetivo de um evento eclesial, ocorrido no dia 4 de dezembro de 2023, quando, a convite do Papa Francisco, duas teólogas e um teólogo foram convidados a oferecer uma reflexão ao Papa e ao seu Conselho de Cardeais, em torno da presença e do papel das mulheres na Igreja. Mas há mais: a pergunta do Papa não visava um genérico aprofundamento, mas a tematizar explicitamente (e criticamente) a teoria do “princípio mariano” de H. U. von Balthasar, da qual o magistério das últimas décadas fez um uso bastante intenso e bastante acrítico. Os três convidados fizeram o seu trabalho e mostraram, de uma forma diferenciada, o quão crítico deve ser o confronto.
No livro o Papa escreveu também duas páginas de prefácio, que mostram claramente duas prioridades: a exigência de “escutar uns aos outros”, para “desmasculinizar a Igreja” (o título do livro retoma precisamente esse neologismo típico do Papa); a necessidade de compreender a diferença entre homens e mulheres, deixando o ponto de chegada “nas mãos de Deus”.
Ora, embora as duas intervenções de Castiglioni e de Pocher se concentram sobretudo numa análise da identidade presbiteral numa nova compreensão e numa renovada releitura da figura de Maria em algumas passagens da Escritura, gostaria de examinar aqui apenas o primeiro texto, o de Lucia Vantini, que, de certa forma, “pega o touro pelos chifres” e mostra a fragilidade teorética e prática da dialética entre “princípio mariano” e “princípio petrino”, tal como concebido por H.U. von Balthasar e como foi depois utilizada pelo magistério eclesial.
É preciso dizer que em seu texto Vantini indica que propõe uma reflexão que se baseia em vinte anos de trabalho, nos quais muitas teólogas italianas e estrangeiras mostraram, com fineza argumentativa, a fragilidade carregada de preconceitos com que a teoria dos "princípios" foi primeiro concebida e depois utilizada. Também neste blog Marinella Perroni já apresentou, resumidamente, o cerne das profundas reservas no plano exegético e sistemático a respeito dessa teoria.
Mas examinemos melhor os três passos fundamentais que Lúcia Vantini apresentou diante do Conselho dos Cardeais.
O princípio mariano-petrino, para quem trabalha numa pesquisa de gênero, provoca sofrimentos e intolerâncias. Isso vale evidentemente, em primeiro lugar, para as teólogas, que sentem, nos seu corpo, o sofrimento e a intolerância face a uma forma de direcionar a compreensão da diferença que mortifica uma das partes. Vantini diz, dirigindo-se ao Papa e aos Cardeais:
“Meu desejo é criar uma passagem entre nós para que, como homens que têm uma função ministerial ordenada, vocês possam acessar àquele mundo feminino que se sente desconfortável com esse princípio de Balthasar, um mundo feminino tão exaltado quanto incompreendido, mal-entendido, não escutado, subestimado, ridicularizado e demonizado” (15).
Depois de citar duas intervenções públicas do Papa Francisco, nas quais nos convidava justamente a expressar os sofrimentos e a manifestar as intolerâncias, Vantini especifica como o “conflito de interpretações” não deve ser entendido como o de posicionamentos opostos, mas como uma reconstrução, dialógica, de uma complexidade não redutível, respeitosa e não excludente, com vistas a um crescimento de todos e para atingir um nível mais alto de experiência comum.
O ataque do segundo parágrafo é muito oportuno e singularmente eficaz, onde Vantini começa com uma útil definição do “princípio”, na esteira dos estudos de M. Perroni:
“O princípio mariano-petrino [...] funciona porque promete simplificar aquela complexidade que nos aterroriza, de trazer as diferenças de volta à unidade desejada pelo sujeito mais forte e ordená-las com precisas polaridades hierarquizadas, porque permite a algum nostálgico propor elegantemente aquele horizonte patriarcal e ‘fratriarcal’ que hoje está em crise, mas não completamente extinto nem substituído por um sistema simbólico alternativo" (18)
A teologia do “gênero” desmascarou o “jogo fraudado” que se esconde por trás do tom sumo-sacerdotal de von Balthasar “o princípio mariano-petrino apaga ou neutraliza as mulheres por meio de boas definições e imagens exaltantes” (18)
E aqui, novamente, a referência entre a “condição feminina” e a “condição papal” é muito fina: Vantini recorda a afirmação de uma das primeiras entrevistas do Papa Francisco (“Sigmund Freud dizia, se não me engano, que em toda idealização há uma agressão"). Assim como o Papa temia, naquela entrevista, que a “idealização do Papa” fosse, em última análise, uma forma de violência exercida sobre a sua liberdade histórica, isso vale analogamente para as mulheres diante do princípio mariano:
“Francisco usou uma lógica semelhante à das mulheres cansadas de serem descritas à luz do modelo mariano ou do gênio feminino, talvez se sentindo como elas, pregado num espaço de perfeição que paralisa e condena à impossibilidade de ser o que se é, com os méritos e os limites da própria singularidade" (19)
Aqui a sobreposição entre duas idealizações diferentes, que exercem violência sobre as mulheres e sobre o papado, parece-me muito inspirada e surpreendente: talvez seja precisamente aqui que se aplica a complexidade das figuras bíblicas, nas quais Maria é também o emblema de estar "sob a lei " e em que Pedro também se sente ferido por sua fraqueza e sabe chorar amargamente.
Estamos diante de uma “fórmula vazia com efeitos colaterais tristes e injustos” (19). O que as mulheres mostraram com o seu estudo pode ser resumido da seguinte forma:
“A promessa transmitida parece positiva: um mundo em que mulheres e homens podem ter o espaço justo sem entrar em competição ou pisar nos pés uns dos outros, e viver numa boa aliança para o cuidado do mundo. O dispositivo, no entanto, é estruturalmente frágil, porque pretende conseguir tudo isso integrando o feminino como 'força de inspiração' de um mundo que continua sendo masculino. Nós, mulheres, não estamos na Igreja como Beatriz para Dante”(19-20).
Esse desmascaramento do dispositivo idealizador que é desencadeado no uso do duplo princípio permite ler com nova visão tanto a Igreja-esposa, como metáfora a ser aplicada à vida de cada crente e não ser encerrada num automatismo de papéis que a destrói. A “receptividade” à graça é transversal, é de toda a Igreja, de todos os “nascidos de mulher”, homens e mulheres. Por essa razão a natureza problemática dos dois princípios afeta não só o feminino, mas também o masculino:
“O princípio de Balthasar é problemático não só porque interpreta o elemento mariano-feminino como afetivo e carismático, mas também porque interpreta o elemento petrino-masculino como exclusivamente ministerial-institucional, confirmando um estranho quadro que confina o primeiro ao mundo subjetivo e o segundo ao mundo objetivo” (25)
Um efeito não controlado (mas talvez inconscientemente desejado) é o da validação de “um imaginário da diferença que confina as mulheres aos bastidores e os homens a gerir, sozinhos, ou no máximo com moderação feminina implícita, o governo das coisas” (28).
As razões das diferenças não são hierárquicas: aqui reside o ponto decisivo para orientar corretamente a “participação feminina” na vida da Igreja e para eliminar os impedimentos teóricos e práticos de todos aqueles que ficam paralisados só de ouvir falar disso.
“Periculum latet in generalibus”. Como bem sublinha Castiglioni, no segundo texto, e Pocher, no terceiro, um tratamento da “mulher” ou de “Maria” que ocorra “em geral”, que transforme a mulher e Maria num “princípio”, facilmente passa da complexidade das mulheres e das atestações sobre Maria, a uma idealização que gera uma “constrição” e um “fechamento”.
Assim, o propósito dessa “crítica de princípios” deve ser especificado:
“A desconstrução do princípio mariano-petrino não leva à negação da diferença sexual como traço de parcialidade e finitude que marca toda vida. O gesto, pelo contrário, torna-a livre para significar sem cair em fórmulas hierárquicas antievangélicas” (28).
Descortina-se assim o horizonte paulino de Gal 3,28, no qual as diferenças étnicas, sociais e sexuais não podem ser motivo de vanglória ou de humilhação das vidas: esse chamamento prepara uma conclusão no plano da consciência histórica e da proteção da complexidade, em que diferença e igualdade encontrem o seu equilíbrio, entre dignidade e honra. E justamente, para encerrar, Vantini relembra uma frase profética de Carlo Molari:
“Existem qualidades humanas que séculos atrás não eram necessárias, ou eram impossíveis de desenvolver ou mesmo proibidas” (citado na p.31)
Sair da idealização mística do feminino, para descobrir as mulheres reais, é uma forma, talvez a única, de aceitar e valorizar aquele evento que João XXIII reconheceu claramente na sua última Encíclica, Pacem in terris: a entrada da mulher no espaço público. Esse evento cultural e social é um evento espiritual que não só não é estranho à vida eclesial, mas que é hoje reconhecido como um dos âmbitos em que é mais urgente que a Igreja saia de si mesma: rumo a uma Igreja em saída primeiro e principalmente de seus próprios preconceitos.
Ter podido e sabido dizer tudo isso diante do Papa e do Conselho de Cardeais é um sinal dos tempos: da límpida maturidade de uma teologia de gênero e da parrésia da qual sente a urgência não só quem tem a coragem de exercer a crítica apertis verbis, mas também quem tem a coragem se submeter a ela, de acolhê-la e de meditá-la. Esse diálogo entre mulheres corajosas em falar e homens corajosos em escutar faz bem ao coração.
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A coragem da parrésia para “desmasculinizar” a Igreja. Um evento que vira livro. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU