14 Março 2024
"Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco também recorreu repetidamente ao princípio balthasariano indicando-o como um arquétipo eclesiológico e no entanto, com o passar do tempo, não ficou indiferente às fortes críticas que um bom número de teólogos e teólogas católicas fizeram contra o princípio mariano-petrino. Também essa capacidade autocrítica de Francisco faz parte da sua grandeza! De fato, no dia 4 de dezembro de 2023 convidou duas teólogas, Lucia Vantini e Linda Pocher, e um teólogo, Luca Castiglioni, para aprofundar e criticar o princípio de Balthasar diante do Conselho de Cardeais", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Stampa, 09-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O impasse em que se encontra hoje a Igreja no que diz respeito à forma de pensar e regular a presença e o papel das mulheres na comunidade cristã é evidente para todos. Claro, houve algumas tímidas aberturas: algumas nomeações para cargos de responsabilidade na cúria romana, ou em órgãos diocesanos, como na admissão nos ministérios instituídos. No entanto, no que diz respeito à presença de mulheres em cargos políticos, econômicos, de gestão, nas mais altas responsabilidades de governo e, de forma mais geral, no exercício da liderança que as mulheres vêm desempenhando nas sociedades ocidentais há anos, o que acontece hoje na Igreja católica é anacrônico. As responsabilidades atribuídas às mulheres até agora na esfera eclesial parecem mais benevolentes concessões que revelam uma mal disfarçada forma de medo clerical e, por vezes, de verdadeiro pânico diante da forte virada pela substancial igualdade entre homens e mulheres na cultura contemporânea. Vamos reconhecê-lo: na igreja atual a mulher (no singular abstrato) é tanto retoricamente idealizada quanto não ouvida, magnificada em palavras mas ignorada nos fatos, celebrada mas às vezes ridicularizada e por alguns até demonizada. O emblema dessa situação é a impossibilidade das mulheres de proferir a homilia na assembleia litúrgica que é a mais alta epifania da Igreja.
O que está aqui em jogo é a credibilidade da Igreja aos olhos do mundo e, em particular, das mulheres, e entre estas especialmente das mulheres católicas que desde sempre são a espinha dorsal das comunidades cristãs. Escreveu o teólogo francês Christoph Theobald: “Muitas maneiras de agir e argumentar de tipo clerical transformam a igualdade batismal numa afirmação abstrata e vã, sem que os homens de igreja perceberem que agora deixaram de ser ouvidos pela grande maioria das mulheres cristãs, ameaçando gravemente a credibilidade da igreja”. Entre os vários princípios teológicos evocados para justificar e manter o status quo atual em relação aos distintos papéis eclesiais dos homens e das mulheres, há um retomado acriticamente pelos últimos quatro papas, denominado princípio mariano-petrino, formulado pelo teólogo suíço Hans Urs von Baltasar (1905-1988).
De acordo com esse princípio, ao carisma de Pedro pertencem a autoridade e o governo, ao princípio mariano, ao contrário, o carisma do amor. Partindo desse paradigma simbólico, é fácil afirmar, aliás, como de fato foi feito, que a Igreja vive pelo princípio petrino, presente na hierarquia formada pelos homens que a governam, os pastores, e encontra uma imagem especular em Maria, a mãe dos crentes e esposa de Cristo! Assim se identifica uma mulher com a casa, o feminino com o amor, a interioridade, o cuidado e o masculino com a ministerialidade, a autoridade, o poder, a ação. Segundo von Balthasar “o elemento mariano governa secretamente na Igreja, como a mulher no lar”. Teoria inadmissível e agora fora de lugar diante do contexto sociocultural atual.
Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco também recorreu repetidamente ao princípio balthasariano indicando-o como um arquétipo eclesiológico e no entanto, com o passar do tempo, não ficou indiferente às fortes críticas que um bom número de teólogos e teólogas católicas fizeram contra o princípio mariano-petrino. Também essa capacidade autocrítica de Francisco faz parte da sua grandeza! De fato, no dia 4 de dezembro de 2023 convidou duas teólogas, Lucia Vantini e Linda Pocher, e um teólogo, Luca Castiglioni, para aprofundar e criticar o princípio de Balthasar diante do Conselho de Cardeais. Os textos dessas intervenções são agora reunidos e publicados em “Smaschilizzare la Chiesa"? Confronto critico sui "principi" de H. U von Balthasar, Edizioni Paoline, Milão 2024.
“Smaschilizzare la Chiesa"? Confronto critico sui "principi" de H. U von Balthasar, Edizioni Paoline, Milão 2024 (Foto: Divulgação)
Desde sempre convicto opositor do princípio mariano-petrino, que considero uma frágil teoria teologia construída sobre uma interpretação questionável dos textos bíblicos, bem como em estereótipos e exageros de gênero hoje cultural e antropologicamente inadmissíveis, senti uma íntima satisfação na leitura das reflexões de Vantini, Castiglioni e Pocher. O fato que aquilo que os três autores falaram com parrésia diante do papa e dos cardeais, mostrando a fragilidade e os limites da teoria da Balthasar, seja agora disponível para toda a Igreja e para a opinião pública certamente representa uma aquisição decisiva. Além disso, o fato de Francisco ter assinado o Prefácio do livro também valoriza ainda mais a importância do texto.
Se Castiglioni, refletindo sobre a "masculinidade tóxica" na atuação dos ministros ordenados, propõe formas de mudanças evangélicas no exercício da autoridade e nas relações com as mulheres, e se Pocher relê de uma forma nova e distante de qualquer estereótipo duas cenas bíblicas em que Maria é mulher entre as mulheres, é certamente à contribuição de Lucia Vantini que se deve a análise mais exaustiva e detalhada sobre os limites teóricos e práticos do princípio mariano-petrino – “uma fórmula vazia com tristes e injustos efeitos colaterais” –, assim como formulado por von Balthasar e depois retomado e utilizado pelo magistério.
Deixo ao leitor desfrutar dos argumentos sólidos e das nuances refinadas da teóloga, atual presidente da Coordenação Teólogas Italianas. Basta-nos aqui relatar o que Vantini tratou logo de esclarecer na reunião: “Estou convencida – e comigo muitas mulheres e também homens – que esse princípio não sustenta a complexidade do presente e que não poderá transportar a Igreja para o amanhã, pois compromete uma boa aliança entre nós, tensiona o entrelaçamento da laços de justiça e corre o risco de funcionar como uma frágil razão para reiterar a reserva masculina de ministerialidade ordenada ou agravar a exclusão das mulheres dos processos de tomada de decisão da comunidade”. Lembrando inteligentemente ao Papa Francisco o que ele mesmo respondeu – “Sigmund Freud dizia, se não me engano, que em toda idealização há uma agressão” – aos que idealizavam e mitificavam a sua figura em detrimento da liberdade de ser papa na história, para Vantini o mesmo discurso também deve ser feito para as mulheres diante do princípio do teólogo suíço: “Francisco usou um lógica semelhante àquela das mulheres cansadas de serem descritas à luz do modelo mariano ou do gênio feminino, sentindo-se talvez como elas, pregado em um espaço de perfeição que paralisa e condena à impossibilidade de ser o que se é, com os méritos e as limitações da própria singularidade”.
Esse precioso livro ensina que, em vez de se aventurar em elucubrações que não têm nenhum fundamento bíblico, teológico e antropológico, e em vez de continuar a repetir apoditicamente “a impossibilidade por parte da Igreja de conferir ordenação sacerdotal às mulheres”, seria decididamente melhor ser transparentes e claros: hoje essa escolha não é possível porque ainda não está amadurecida na Igreja católica, onde amplos setores da hierarquia e dos fiéis são abertamente contrários a ela, como contrárias são também as igrejas ortodoxas. No entanto, continua-se tentando responder às necessidades do povo de Deus e reconhecer o lugar que é devido à mulher sem invocar justificações que não convencem porque parecem frágeis e completamente anacrônicas.
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Uma Igreja “desmasculinizada” é mais próxima ao cristianismo. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU