20 Outubro 2024
"É evidente que a questão não é tanto sobre a participação em si, mas a participação em níveis de liderança de autoridade. É claro que 'ampliar os espaços para uma presença feminina mais decisiva' não significa ampliar os espaços da participação de base - basta contar a presença masculina e feminina na missa dominical para perceber que, ali, a presença das mulheres já é mais do que decisiva", escreve Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 28-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mulheres, poligamia, pobres, Igrejas Orientais, web: os Grupos de Estudo à obra no Sínodo. Esse é o título de um breve artigo publicado no Vatican News no início de outubro, relatando a apresentação, na abertura da Assembleia Sinodal, do trabalho realizado e dos futuros programas dos dez grupos criados em fevereiro pelo papa para abordar, do ponto de vista teológico e canônico, as temáticas postas nas mesas de trabalho do Sínodo. Extraio desse artigo algumas informações sobre a intervenção do Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício, antiga Santa Inquisição), Cardeal Víctor Manuel Fernández, porta-voz do grupo de trabalho dedicado às “Formas ministeriais”. No centro da intervenção do Cardeal Fernández, a participação das mulheres na vida e na liderança da Igreja.
De acordo com as breves notas relatadas pelo Vatican News, o cardeal se preocupou, em primeiro lugar, em reiterar a posição assumida publicamente pelo papa sobre o tema do diaconato feminino: não apenas o papa Francisco não considera a questão madura, mas “na mens do santo padre, há outras questões ainda a serem aprofundadas e resolvidas antes de se apressar a falar de um eventual diaconato para algumas mulheres”. De acordo com o cardeal, reconduzir a questão da participação das mulheres exclusiva ou principalmente ao objetivo do diaconato implicaria o risco de que o próprio diaconato se tornasse “uma espécie de consolo para algumas mulheres”, enquanto “a questão mais decisiva da participação na Igreja continua sendo posta de lado”.
O grupo de trabalho, afirmou o cardeal, continuará seu empenho de estudo e aprofundamento, tratando das mulheres que na história da Igreja “exerceram uma verdadeira autoridade” e colocando-se à escuta de mulheres que, na vida da Igreja de hoje, em terras distantes como a África e a Indonésia, desempenham papéis de primeiro plano. Dessa forma, de acordo com Fernández, um duplo objetivo será alcançado: redimensionar a questão do diaconato para as mulheres e tentar “ampliar os espaços para uma presença feminina mais decisiva”.
Fica claro na intervenção de Fernández, condensada no artigo de menos de vinte linhas, que a questão do diaconato feminino, por mais incômoda que seja, em vista do Sínodo sobre a Sinodalidade, não podia ser descaradamente varrida para debaixo do tapete. Alguma coisa tinha que ser dita, e o cardeal, mantendo-se em equilíbrio no nada, conseguiu se safar com um funambulesco exercício de eloquência clerical.
Quero pensar que as palavras do Cardeal Fernández foram reportadas de forma imprecisa no artigo. Porque se, de acordo com o que se lê, a questão mais decisiva para o cardeal, e para o papa, não é o diaconato das mulheres, mas a sua participação na Igreja, a afirmação realmente causa um sorriso por sua banalidade.
A vida da Igreja sem a participação das mulheres não existe e nunca existiu. Desde sempre, como Meneghello escrevia em Libera nos a Malo, “a fé é transmitida principalmente por linhas ginecológicas”. Como teria sido a história da Igreja se não tivessem existido as mulheres frequentando a missa, rezando os rosários, fazendo com que filhos e filhas recitassem as orações da manhã e da noite, limpando os bancos e fazendo café para os sacerdotes depois da santa missa matutina?
É evidente que a questão não é tanto sobre a participação em si, mas a participação em níveis de liderança de autoridade. É claro que “ampliar os espaços para uma presença feminina mais decisiva” não significa ampliar os espaços da participação de base - basta contar a presença masculina e feminina na missa dominical para perceber que, ali, a presença das mulheres já é mais do que decisiva.
Mas, se eu interpreto corretamente o artigo e o que o cardeal disse, o “vamos tentar ampliar os espaços para uma presença feminina mais decisiva” indicaria a vontade de assumir como possível (“vamos tentar...”) a oficialização de papéis de autoridade também para as mulheres. Que belo exercício funambulesco, esse “vamos tentar”. Hoje, nossas comunidades são ricas e férteis de experiências de autoridade feminina que não são reconhecidas nem sancionadas pelo Código e, ainda assim, temos de ouvir os cardeais dizendo “vamos tentar”.
Como não lembrar o motu proprio Spiritus Domini, que em 2021 modificava o Cânon 230 § 1 do Código de Direito Canônico, abrindo também “a fiéis do sexo feminino” o ministério laical do leitorado e acolitado? Quase como se, até 2021, nenhuma mulher jamais tivesse feito uma leitura durante a missa ou servido no altar...
Os funambulismos se desvendam já da premissa. Há muito a aprofundar e resolver antes de se apressar a falar sobre um eventual diaconato para algumas mulheres, afirma Fernández. Diante do verbo se apressar mais que sorrir, eu realmente dei uma gargalhada. Estamos nos dando conta? Os nossos cardeais estão com medo de serem rápidos demais em enfrentar uma questão que está diante de seus olhos há pelo menos sessenta anos.
Era o ano de 1966 quando o jesuíta Jean Galot publicou em La Civiltà cattolica um artigo intitulado La missione della donna nella Chiesa. O estilo com o qual Galot abordava (ou, talvez, seria melhor dizer que não abordava) a questão é o mesmo do Papa Francisco e do Cardeal Fernández: há um nó problemático a ser desatado, mas em vez de apontar diretamente para o nó, se desvia com elegância enfatizando o quanto é redutivo deter-se apenas no nó - há tantas coisas belas e sublimes a serem ditas quando se fala “da mulher” que parece ruim limitar-se a ninharias prosaicas e vulgares como a reivindicação de direitos.
Um detalhe: o nó problemático em Galot não era o diaconato, mas o “acesso das mulheres ao sacerdócio”. E, portanto, pelo menos um resultado os senhores cardeais alcançaram nesses sessenta anos: afundar a questão do “sacerdócio feminino”, reconvertendo-a no fantasma mais ou menos aleatório do diaconato.
Mas o toque elegante está naquele ar de lisonjeira e ambígua indeterminação conferido à frase pelos dois adjetivos “eventual” (ou seja, “casual, fortuito, acidental”? ou “possível, provável”? ) e “algumas” - adjetivo indefinido que pouco mascara uma certa crueldade pérfida, em sua projeção da questão do diaconato para o pano de fundo de uma espécie de jogo do biscoitinho da sorte: o eventual diaconato, se é que algum dia existirá e na forma que será decidida por quem tem o poder de decidir, que seja claro, será naturalmente apenas para algumas, ou seja, não todas - era só o que faltava! - e apenas se essas algumas forem boas, apenas se o merecerem, apenas se nós formos tão generosos para concedê-lo...
Depois de colocar de lado a questão do diaconato, por cortesia do grupo de trabalho, passa-se a analisar outra possibilidade para as mulheres, a de uma participação de autoridade na vida da Igreja. E aqui, eis outro mimo.
Para entender se hoje - no ano de 2024 - as mulheres poderiam exercer lideranças de autoridade dentro da Igreja, Fernández nos diz que, em primeiro lugar, temos que começar a estudar. Devemos estudar perfis de mulheres que exerceram verdadeira autoridade na história da Igreja.
Minha mãe costumava dizer que em algum momento a paciência se esgota. Será que se dão conta, os senhores cardeais, de quanta paciência exigem da gente? Se eles lessem e estudassem A Cidade das Damas, de Christine de Pizan (1364-1431), perceberiam que, há pelo menos seis séculos, as mulheres levantaram a questão da necessidade de uma reescrita a História à luz da auctoritas por elas expressa também dentro da Igreja.
E se lessem, de Christine de Pizan, também o Libro della pace col poema di Giovanna d'Arco [O livro da paz com o poema de Joana D'Arc]. Há seis séculos, essas obras esperam que pelo menos alguns homens iluminados da Igreja tentem olhar o mundo e a História de uma perspectiva “outra” daquela de sua posição dominante e privilegiada. O convite para estudar e aprofundar figuras femininas de autoridade soa como um zombeteiro convite para tomar e perder tempo, para quem dedicou décadas de sua vida a estudar a história invisível que não existe, ocultada na História pela violência do olhar masculino.
Vamos estudar, vamos nos aprofundar, diz o Cardeal Fernández. E, enquanto isso, as mulheres que se cansaram de servir café ao pároco na bandeja de prata coberta com uma toalhinha de renda de crochê, aquelas mulheres ali, sem fazer barulho, sem protestar, viram as costas e vão para outro lugar. Completamente indiferentes aos exercícios funambulescos dos nossos cardeais.
O pequeno artigo que deu início às minhas reflexões também trata da questão da poligamia no mundo cristão africano. O que dizer? A poligamia e o não ao sacramento da Ordem para as mulheres são a mesma representação do Macho Onipotente que considera seu próprio desejo de poder sobre os corpos das mulheres como soberano e inatacável. Até quando? Marcel Gauchet argumenta que estamos assistindo ao fim do domínio masculino (Marcel Gauchet, La fine del dominio maschile, Vita e pensiero, Milão 2019). Françoise Héritier, como mulher, é muito mais pessimista (Françoise Héritier, Dissolvere la gerarchia: Maschile/femminile II, Raffaello Cortina, Milão 2004). Algo está se movendo, ela observa, mas para que a mudança atinja as profundezas dos ânimos e se torne universal, terão que se passar milhares de anos.
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Questões de autoridade, entre diaconato e sacerdócio feminino. Artigo de Anita Prati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU