03 Outubro 2024
"A visão misericordiosa e de acolhida irrestrita que faltou em determinadas falas de Francisco em sua viagem à Bélgica, sobretudo no que tange a teologia do feminino. Suas palavras duras sobre o aborto poderiam ser evitadas com uma teologia particular do cuidado e da fraternidade."
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 02-10-2024.
Eu sou e sempre fui um grande entusiasta do papa Francisco, que de fato abriu um horizonte de respiro no mundo eclesial, favorecendo uma abertura inusitada em vários âmbitos da vida da Igreja, como no campo do diálogo das religiões, da sensibilidade ecológica e da missão libertadora. O seu testemunho tem sido inédito num cenário eclesial que nos últimos 40 anos esteve aprisionado por amarras restauradoras, com ênfase num identitarismo problemático. Francisco convocou a igreja católica a romper fronteiras e avançar no mundo da alteridade. Esse é um ganho que deve ser valorizado.
A abertura de Francisco não se deu, porém, em determinados campos, como no âmbito da teologia do feminino. Como mostrou recentemente, com acerto, o teólogo italiano Andrea Grillo, em artigo publicado no blog Come se non, e reproduzido no portal do Instituto Humanitas da Unisinos [1]. Segundo Grillo, a reflexão de Francisco no campo do feminino é ainda refém de uma visão profundamente essencialista, típica da teologia católica nas últimas décadas. E o teólogo italiano cita como exemplo a recente visita do Papa Francisco à Bélgica e, em particular, o seu discurso proferido na Universidade de Louvain, em 28 de setembro de 2024 [2]. Segundo Grillo, no discurso do Papa “emergiram claramente alguns limites profundos da visão católica de Francisco sobre a mulher, uma leitura que se pensa poder propor como 'doutrina' quando consiste apenas em preconceitos culturais envernizados com uma pátina de evangelho” [3].
Apesar de alguns esforços periféricos no campo da teologia do feminino, o que se percebe ainda de forma muito viva é a manutenção do posicionamento tradicional, ou seja, uma “forma a-histórica de pensar o feminino que alimentou, ao longo dos séculos, uma substancial discriminação e exclusão da mulher de qualquer esfera de exercício público de autoridade” [4].
As reações das mulheres em Louvain contra o discurso de Francisco foram bem sentidas, como expressou, por exemplo, a estudante de Relações Internacionais da mesma universidade, Valentine Hendrix. Para ela, infelizmente, “Francisco não esteve à altura” das expectativas almejadas [5]. O pontífice já tinha sido infeliz com palavras duras proferidas diante do túmulo do rei Balduíno, quando identificou a lei do aborto a uma lei “assassina”. Como é sabido, o rei Balduíno é conhecido por sua decisão de renúncia ao reinado por não querer assinar uma lei a favor do aborto. Francisco reiterou sua posição crítica ao aborto na sua viagem de volta da Bélgica, sublinhando que o aborto “é um homicídio”.
Tudo isso provocou constrangimento em segmentos mais abertos da comunidade católica, sobretudo em razão da linguagem “dura” que marcou o posicionamento de Francisco. É também verdade que suas palavras causaram regozijo em núcleos católicos tradicionalistas, como no caso da Canção Nova, que teceu claros elogios à posição do Papa em sua entrevista coletiva aos jornalistas durante o voo de retorno de sua 46ª viagem apostólica [6].
Em seu clássico livro que projetou a dinâmica de restauração na igreja católica, Rapporto sulla fede, o então cardeal Ratzinger tinha afirmado que era no âmbito da teologia moral que se processava o principal lugar das tensões entre o magistério e os teólogos [7]. Não foram poucos os teólogos da área que foram objeto de notificação ou condenação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé (CdF): B Haring [8], J.Pohier (1979), C. Curran (1986), A.Guindon (1986), M.Vidal (2001).
Em providencial fala de Timothy Radcliffe no retiro sinodal, no dia 30 de setembro de 2024, a visão teológica apontada foi inovadora, com um respiro eclesial significativo, ainda que não abordando diretamente temas polêmicos. Dentre outras coisas importantes ditas por ele, podemos mencionar a sua crítica aos que professam “um amor feroz pela igreja”, numa perspectiva de fechamento aos horizontes novidadeiros que devem se anunciar no horizonte. A seu ver, o medo às necessárias reformas na igreja provocam, na realidade, um fechamento ao mundo restrito e limitado do território eclesial. Em perspectiva diversa do medo, Radcliffe aponta a urgência de uma abertura do coração, de modo a poder captar o mundo do outro. De forma corajosa, convoca toda a igreja a romper com os grilhões de um narcisismo eclesial e abrir-se aos “horizontes sem limites” do amor de Deus [9].
A meu ver, é essa visão misericordiosa e de acolhida irrestrita que faltou em determinadas falas de Francisco em sua viagem à Bélgica, sobretudo no que tange a teologia do feminino. Suas palavra duras sobre o aborto poderiam ser evitadas com um a teologia particular do cuidado e da fraternidade. A linguagem pode ser ainda mais ferina do que o golpe real. No caso da fala de Francisco, faltou a sabedoria essencial e a delicadeza do pastor, que é capaz de acolher o outro nas situações mais inusitadas e inesperadas.
Lendo recentemente dois livros de literatura em torno da questão do aborto, pude fazer um exercício essencial de me colocar no lugar das mulheres que vivem esse drama particular. Isso não significa que eu seja pró-aborto, coisa que nunca fui, mas, sim, sempre a favor da descriminalização do aborto. Nos livros em questão, pude me dar conta da grande complexidade, dor e solidão que acompanham as mulheres nessa decisão-limite.
O primeiro livro é de autoria da prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux, O acontecimento [10]. No livro, a autora fala do aborto enfrentado quando tinha 23 anos e era estudante. Tinha engravidado do namorado em condições adversas e buscou recorrer ao procedimento, sem o apoio do companheiro ou da família, num momento histórico da França onde o abordo era ilegal. O relato é de uma dramaticidade única, e vem destrinchado pela escritora quarenta ano depois. Ernaux “reconstrói seu périplo solitário para realizar um abordo clandestino”. Relata ao final do livro que demorou a retornar ao mundo chamado normal, e ao processo de possibilitar ao corpo ser o “lugar de passagem de gerações” [11]. Tudo foi muito doloroso para ela numa “experiência vivida de um extremo ao outro pelo corpo”, até ter conseguido narrar o drama vivenciado no passado.
O segundo livro, de Colombe Schneck, Dezessete anos [12], nasceu como uma resposta a Annie Ernaux, como se a autora fosse convocada a reagir ao que aconteceu com sua antecessora. Em entrevista concedida por Ernaux ao jornal L´Humanité, em 2014, ela retomou o tema da “imensa solidão” que acomete as mulheres que vivem a experiência de um aborto.
Assim como Ernaux, Schneck precisava narrar o que aconteceu com ela na primavera de 1984. Mesmo em contexto diverso, agora favorecido pela lei Veil [13], a experiência foi bem dolorosa: “O aborto não é um belo tema literário. É uma guerra que se atravessa, entre vida e morte, humilhação, vergonha e lamento”. Não é algo nada simples, mesmo numa legislação diversa. Em seu relato, a conhecida jornalista e escritora francesa, narra a dor de se ver envolvida num dos atos mais frequentes e secretos na história das mulheres. É um relato que sempre incomoda e provoca polêmica. Segundo Schneck, com o aborto ela se viu excluída de seu mundo.
Mesmo na relação com sua mãe, feminista, a partilha dos sentimentos foi impossibilitada pelo domínio de um silêncio absoluto. Como ela expressou no livro: “Minha mãe não diz nada à sua filha de dezessete anos que abortou” [14]. Impressionante, a questão é tão difícil, que nem mesmo às suas amigas mais íntimas a jovem de dezessete anos conseguiu partilhar sua dor. Foi o pai que a acompanhou na clínica, mas mesmo ele se blinda num silêncio difícil, sem sequer perguntar na sequência se tudo correu bem, pois “não é uma pergunta que se faça depois de um aborto” [15]. A escritora retoma o tema e coloca na mesa as questões que estão em jogo numa decisão que é sempre difícil e dramática para quem a realiza, que está coberto de indagações complexas: por que não se cuidou devidamente do corpo, por que permitiu a ocorrência dessa acidente etc.
Trata-se de algo que acontece “de repente” e que lança questões que nem sempre afloram, ficando subjacentes e irradiando-se como dor. A autora indaga em certo momento de sua obra: “Trata-se de vida e de morte, da minha vida, do meu futuro, da minha liberdade, daquilo que acontece no meu corpo e que pode ser a vida ou nada, e pelo qual sou responsável” [16].
Também a mística holandesa, Etty Hillesum, que morreu no campo de extermínio de Auschwitz, aos 29 anos, viveu uma dolorosa experiência de aborto, que relata em seu diário [17]. Sua resistência à maternidade tinha para ela uma explicação específica. Seus dois irmãos tinham sérios problemas psicológicos, e em determinado momento da história da família, Etty presenciou a experiência de ver o seu irmão, Misha, sendo arrancado de casa para ser internado numa casa de internação psiquiátrica. Aquilo provocou nela um trauma duradouro. Daí em diante resolveu não abraçar a maternidade. O aborto aconteceu em sua vida, e este drama a acompanhou em seu itinerário. Fazia menção à experiência desse “menino nunca nascido” [18].
Eu apresentei esses três relatos de experiências de aborto que vieram acompanhadas de muito dor, solidão e angústia. São exemplos de tantas histórias que ocorrem por todo canto, e que são silenciadas por um interdito que vigora na sociedade e que provoca um isolamento que poderia ser evitado e transfigurado numa experiência de respeito e acolhida fraterna.
O Papa Francisco que fala tanto em misericórdia e acolhimento dos excluídos, poderia cuidar igualmente de sua linguagem ao abordar um tema tão delicado, complexo e doloroso, incluindo sua fala pejorativa com respeito aos médicos envolvidos no procedimento. Como diz o teólogo Jacques Dupuis, e se referia ao tema do diálogo com as religiões, mas aqui aplico à situação em questão, há que proceder a dinâmica de uma purificação da linguagem teológica, que muitas vezes se reveste de um teor deletério e ofensivo com os outros que vivem uma situação de muita vulnerabilidade. São indagações que levanto a partir de um sentimento pessoal, respeitando, evidentemente, os que pensam de forma diversa, mas que deveriam se esforçar para se colocar na situação do outro.
[1] Andrea Grillo. Francisco e as mulheres. IHU, 30 de setembro de 2024.
[2] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2024/september/documents/20240928-belgio-studenti-universitari.html (acesso em 01/10/2024).
[3] https://www.ihu.unisinos.br/644158-francisco-e-as-mulheres-palavras-infelizes-artigo-de-andrea-grillo (acesso em 01/10/2024).
[4] Andrea Grillo. Francisco e as mulheres...
[5] https://www.ihu.unisinos.br/644163-a-universidade-catolica-de-lovaina-contra-o-papa-por-suas-palavras-sobre-as-mulheres-e-o-aborto (acesso em 01/10/2024).
[6] https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/papa-reitera-que-o-aborto-e-um-homicidio-em-voo-de-retorno-da-belgica/ (acesso em 01/10/2024).
[7] Vittorio Messori a colloquio com Joseph Ratzinger. Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1985, p. 87.
[8] Ver a respeito: B. Haring. Fé – História – Moral. São Paulo: Loyola, 1989.
[9] https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2024-09/retiro-sinodal-meditacoes-padre-radicliffe.html (acesso em 01/10/2024).
[10] Annie Ernaux. O acontecimento. São Paulo: Fósforo, 2022.
[11] Ibidem, p. 70-71.
[12] Colombe Schneck. Dezessete anos. Belo Horizonte: Relicário, 2023.
[13] Trata-se de Simone Veil, que defendeu o projeto de lei que garante a interrupção voluntária da gravidez.
[14] Ibidem, p. 55.
[15] Ibidem, p. 47.
[16] Ibidem, p. 28.
[17] Etty Hillesum. Diario. Edizione integrale. Milano: Adelphi, 2012 (o original holandês é de 2000).
[18] Ibidem, p, 260, 265 e 715.
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Francisco e os limites de uma reflexão sobre o feminino. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU