27 Mai 2024
A masculinização de Deus ajudou uma cultura patriarcal e a marginalização do feminino, e é preciso procurar uma cura para isso. O Papa Francisco parece temer que a ideia de cooptar as mulheres para o clero seja uma rendição ao clericalismo.
O comentário é do jornalista italiano Riccardo Cristiano, em artigo publicado em Formiche, 22-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Primeira longa entrevista exclusiva de um papa para a televisão estadunidense. Há um elemento de novidade pouco notado, inerente à entrevista concedida por Francisco ao programa “60 minutes” da CBS.
Antes de responder às perguntas da entrevistadora, Norah O’Donnell, o papa quis cumprimentar toda a equipe, operadores de iluminação, técnicos de som, câmeras, intérpretes e assistentes diversos. É outro aspecto inusitado nas entrevistas com os chefes de Estado que merece ser destacado.
Norah O’Donnell tocou imediatamente em um tema incômodo e, depois de perguntar se ele pretende renunciar, acrescentou: “Eu sei que o senhor não gosta da pergunta”. Ele respondeu: “Não, imagine, pergunte o que quiser”. E, então, reiterou que nunca havia pensado nisso até agora. Dizer a um entrevistador “pergunte o que você quiser” também é no mínimo incomum, visto que, no Vaticano, o costume sempre foi fazer perguntas por escrito e com antecedência.
Se esse é o aspecto pouco notado da entrevista, não há dúvida de que, além de outras questões muito relevantes, como o apelo à resolução de todas as guerras por meio da negociação, entre os pontos mais relevantes esteve a resposta à questão sobre a possibilidade de as mulheres serem ordenadas presbíteras ou diáconas.
Sobre o primeiro ponto, a resposta foi muito clara: a possibilidade não existe. Sobre o segundo, o papa disse que, se fossem “diáconas com a Ordem Sagrada, não”.
O que isso significa? O diaconato pode ser entendido como um ministério que tem dignidade em si mesmo e por si mesmo, ou pode ser entendido como o primeiro grau que leva ao acesso ao presbiterado.
Portanto, o papa, na minha opinião, deu a entender o que o diaconato poderia se tornar (mesmo que feminino), imaginando também uma forma que não seja mais o primeiro grau da ordem sagrada, mas sim uma expressão da unção batismal. O outro tipo, aquele que permite o trânsito para o presbiterado, permaneceria limitado como é hoje.
Esse “sim” e “não” devem ser entendidos: o papa está travando uma batalha cultural contra o clericalismo e não acredita que uma espécie de clericalismo feminino seja a solução para o problema feminino na Igreja. Portanto, não me parece correto dizer que o papa disse “não ao diaconato feminino”: sobre os outros temas, ele já permitiu que fossem discutidos mesmo que discordassem dele, mas, sobre isso, deixou claro que, na sua Igreja totalmente ministerial, isto é, onde cada um realiza um serviço (na linguagem eclesial “ministério” significa “serviço”), cada ministério tem sua importância e dignidade.
É o clericalismo que faz com que o ministério presbiteral seja considerado mais importante. E, na sua Igreja sinodal, essa igualdade na diversidade deveria adquirir uma maior importância.
Então, para mim, parece ser um “sim” ao diaconato feminino permanente. Mas o que isso significaria, concretamente?
Se as mulheres tivessem acesso a esse “diaconato permanente”, uma mulher poderia administrar o batismo, distribuir a comunhão, abençoar os cônjuges, presidir um funeral. No entanto, a questão será objeto dos trabalhos do Sínodo.
Francisco instituiu um grupo de trabalho precisamente sobre esse assunto, mas o que é importante de ser sublinhado aqui é, para além dos ordenamentos internos da Igreja, a questão cultural de fundo. Que é a questão feminina.
Anos atrás, o Papa João Paulo I disse que Deus é pai e também mãe. Ele disse isso no Ângelus do dia 10 de setembro de 1978, com estas palavras: “Nós somos objeto de amor imorredouro da parte de Deus. Nós sabemos: Ele está sempre de olhos abertos sobre nós, mesmo quando nos parece que seja noite. Ele é pai; mais ainda, é mãe. Ele não quer nos fazer mal, quer apenas nos fazer bem, a todos. Os filhinhos, se por acaso estiverem doentes, têm maior direito de serem amados pela mamãe. E até mesmo nós, se por acaso estivermos doentes de maldade, desviados do caminho, temos maior direito de sermos amados pelo Senhor”.
Quem conhece as Sagradas Escrituras melhor do que eu, defende que há uma referência explícita nesse sentido no profeta Isaías. Se soubéssemos falar de Deus Mãe além de Deus Pai, talvez tivéssemos uma ideia menos antropomórfica de Deus – um senhor idoso quase sempre irascível – e menos patriarcal da família e da sociedade.
Precisaríamos, culturalmente falando, de Deus Mãe, carinhosa e afetuosa como foi a nossa mãe. E, acima de tudo, surgiria uma melhor consciência de que todos nós, portanto, homens e mulheres, somos à imagem e semelhança de um Deus: chega de antropomorfismo!
Infelizmente, do meu ponto de vista, a questão é real: há não muitos anos, posteriores a João Paulo I, um teólogo muito importante, que acabou “sob os grilhões” da Congregação para a Doutrina da Fé por algo completamente diferente, disse uma frase muito semelhante à pronunciada pelo Papa Luciani e que foi contestada.
Mas a história seguiu em frente, como sabemos, e uma masculinização de Deus ajudou uma cultura patriarcal e a marginalização do feminino, e é preciso procurar uma cura para isso. O Papa Francisco parece temer claramente que a ideia de cooptar mulheres para o clero seria uma rendição ao clericalismo, aquele que, por exemplo, considera o padre como ‘dono de casa” na paróquia, tal como o marido é o dono de casa na casa patriarcal, ou seja, em muitas das nossas casas, mas isso não resolveria a questão feminino.
Eu entendo, mas isso não resolve a questão feminina que permanece com toda a sua evidência (assim como o clericalismo): para dizer isso, porém, não é preciso dizer que o papa é contra o diaconato feminino. Suas palavras não me parecem dizer isso.
O ponto de vista dele me ajuda a entender melhor, penso eu, como ele gostaria que a sua Igreja fosse. Mas temo que o clericalismo e o machismo ainda são tão fortes que ambos exijam administrações massivas de anticorpos.
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Francisco, o diaconato, o clericalismo e a questão das mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU