31 Julho 2024
"Deixando este exemplo, o sentido de uma verdadeira sinodalidade é que a Igreja funcione como o que diz ser: uma comunhão (koinonía) universal (católica)", escreve José I. González Faus, em artigo publicado por Religión Digital, 25-07-2024.
González Faus é licenciado em filosofia (Barcelona, 1960), foi ordenado sacerdote em 28-07-1963 e doutorou-se em Teologia na Universidade de Innsbruck, em 1968, na Áustria. Antes, estudou no Pontifício Instituto Bíblico, em Roma (1965-1966), e desde 1968 é professor de Teologia Sistemática, na Faculdade de Teologia da Catalunha.
A história ensina que as revoluções civis, por mais necessárias que fossem, foram mal conduzidas ou acabaram fracassando em parte. Ensina também que as revoluções na Igreja também não saíram como haviam sido sonhadas. E isso não apenas por causa do que alguns dizem agora ("o Papa Francisco está se tornando conservador"), mas pela culpa dos próprios revolucionários, cujos egoísmos desfiguraram a nobre causa pela qual lutavam.
Que a Igreja dos séculos XV-XVI precisava de uma grande reforma, ninguém duvida hoje. Mas o que aqueles reformadores nunca teriam desejado é que, em vez de uma igreja reformada, surgissem quatro ou cinco igrejas distintas.
Mas foi exatamente o que aconteceu: Calvino não se entendeu com Lutero e acabou criando uma nova igreja. Zwinglio não se entendeu com nenhum dos dois e teve o mesmo resultado. Lutero, tão genial quanto unilateral, esqueceu as justas demandas dos anabatistas e de Thomas Müntzer, e acabou desejando “que os matassem a todos” e que, se houvesse alguém bom entre eles, Deus se encarregaria de salvá-lo. E deixemos de lado o rei inglês e seus divórcios…
No século XVII, em vez de uma igreja reformada, tínhamos cinco. Isso contribuiu para que a Igreja Católica não se sentisse interpelada por algumas decisões muito válidas e necessárias dos reformadores, como a tradução e leitura da Bíblia, a justificação pela fé, a liturgia em línguas "vulgares", os abusos com as indulgências e as imagens, o caráter não sacerdotal do ministério eclesiástico e, provavelmente, também o acesso da mulher a esse ministério... Muitas dessas questões acabaram sendo aceitas pela Igreja Católica mais tarde e com atraso.
Deixemos esses erros da Reforma, deixemos as igrejas norte-americanas e passemos ao Vaticano II. Já mencionei antes a grande alegria com que Henry de Lubac (mais tarde cardeal) transmitia a marcha do concílio, a quem vi algumas vezes em Roma em 1966.
Daí minha desilusão e meu desconcerto quando, pouco depois de terminado o Vaticano II, De Lubac publicou um manifesto severo contra a forma como alguns estavam aplicando o Concílio. Pelo que pude acompanhar, tenho a sensação de que boa parte da direita de Ratzinger se deveu a esses mesmos excessos ou abusos do Vaticano II: de modo que o futuro Bento XVI acabou se tornando alguém que podia dizer algumas coisas que soavam muito audaciosas em teoria; mas só na teoria: sua prática era cada vez mais conservadora (como mostrou ao rejeitar Metz para uma cátedra em Munique, quando Ratzinger era o prelado daquela diocese). Lembro-me com serenidade ou resignação de ter ouvido K. Rahner falando do concílio, com um sorriso pacificado: “bem, algumas coisas não puderam sair agora; mas sairão mais adiante”.
E não se trata agora de discutir se alguma daquelas interpretações “exageradas” não poderia ter sua parte de razão; trata-se mais do modo de realizá-las por todos aqueles impacientes, que não tinham que dialogar pacientemente com Trump nem com Ottaviani e que, talvez sem se dar conta, sentiam que “o Vaticano II sou eu”. Como agora parecem pensar alguns: “a reforma de Francisco sou eu” (e como antes havia dito Pio IX “a tradição sou eu” e Luís XIV: “o Estado sou eu”).
Em resumo: daquelas disputas surgiu um pós-concílio com, ao menos, quatro tipos de católicos: aqueles que rejeitam o Vaticano II (que na época se manifestaram menos, mas agora se fazem ouvir mais claramente). Aqueles que, rejeitando o Concílio, utilizavam algumas frases mais “concessivas” do próprio Concílio para impedir sua aplicação, ignorando todas as demais. O que foi uma espécie de Vaticano II com o freio de mão puxado e que durou cerca de 50 anos. E o que agora, com Francisco, estava começando a ser uma implementação do Vaticano II.
(Nota: a espera de cinquenta anos não me surpreende. Já comentei outras vezes que o mesmo ocorreu com outros concílios famosos, como Calcedônia ou Trento. Deve ser assim que é a história humana).
Alguém me dirá que essas reflexões são ditadas pelo medo e pela velhice. Ou talvez porque tantas reformas que vivi desde 1970 até hoje já me deixaram tranquilo. Quero dar destaque a essas observações, desde que meu interlocutor aceite também esta outra: os reformadores não são concebidos sem pecado original. O primeiro vínculo eclesial, como escrevia Paulo aos romanos, é que “todos são pecadores e precisam da glória de Deus” (3,23). Daí o perigo de que a igreja reformada degenera em seita, quando, inconscientemente talvez, busca mais a satisfação própria do que a glória de Deus.
Por isso não posso compartilhar a opinião de que se você não se sente “confortável” na Igreja, é sinal de que algo está errado com ela. Na Igreja, devemos sentir-nos bem pelo que ela representa, não pelo seu modo de ser: estamos contentes nela porque é o sinal visível do amor incondicional de Deus a toda a humanidade, revelado em Jesus Cristo, e que busca não excluir ninguém (de fora nem de dentro).
Mas não posso esperar sentir-me confortável na Igreja pelo seu modo de ser: porque é impossível que uma instituição com mais de mil milhões de membros seja totalmente do meu agrado. Esse conforto só ocorre nas seitas (que, por algo, têm dimensões reduzidas).
Esse tipo de desconforto é intrínseco ao fato eclesial: daí o outro perigo inegável contra o qual também é preciso alertar: que alguns a utilizem em favor do que o melhor Ratzinger chamou de “defesa de sua preguiça”.
Mas se olharmos o Novo Testamento, encontraremos essas desconfortos, tanto em Lucas que as suaviza quanto em Paulo que as desnuda mais. Já entre aqueles primeiros convertidos existiam alguns “fanáticos da Lei” (At 21,20) que se dedicavam a pregar contra Paulo ou a reconverter os “insensatos gálatas” (Gl 3,1) [1]. Como havia coríntios que abusavam da liberdade pregada por Paulo [2]. E como havia teologias que pareciam opostas entre Paulo e Tiago (embora depois tenha se revelado que não eram tanto). E ao pobre Pedro cabia colocar bálsamos entre uns e outros, embora isso também lhe causasse alguns desgostos…
Mas essa é a nossa pasta humana (com suas doses de antifraternidade): a que Cristo recapitulou e Deus Pai quer transformar em seus filhos e irmãos todos. E seria muito bom, também agora, lembrar o conselho dado para manter a unidade: “não se esquecer dos pobres” (Gl 2,10).
Talvez todos tenhamos recebido uma lição importante sobre o modo de comportar-se em um episódio recente: o que nunca devemos fazer é dizer, como o Sr. Trump: “foi Deus quem desviou a bala que ia me matar”. Ou seja: as balas que acabaram com J. F. Kennedy e M. Luther King não foram desviadas por Deus porque deviam ser maus. Quando as coisas saem ao meu gosto é Deus quem age; e quando não saem ao meu gosto, será Satanás…
Irmão Trump: deixe-me dizer-lhe que seu deus não é o Deus de Jesus, e que essa sua proclamação não tem nada de cristã, nem mesmo de autenticamente religiosa. Isso se chama, pura e simplesmente, superstição: algo que todas as igrejas sempre perseguiram com afinco. É uma frase que pode servir para ganhar eleições: certamente (e já escrevi alhures que, dadas as circunstâncias, não acharia tão grave se você as ganhasse). Mas agora não estamos falando de eleições, e sim de que essa sua afirmação é tão pouco cristã quanto a daqueles que diziam a Jesus que Deus o tirasse da cruz para que acreditassem nele.
Assim estamos: só gostaria de ter sugerido uma meditação a todos os reformadores e opositores eclesiásticos. Uma meditação que deveria terminar em duas palavras: paciência e pedagogia.
As impaciências são algo das mais compreensíveis, é claro. Mas isso não significa que sejam das mais santas, embora possa haver “divinos impacientes”. Depois de nos entusiasmarmos com a sinodalidade, não é agora o momento de dizer que, se a sinodalidade não produzir reformas, deixa de ser crível. Talvez deveríamos dizer que, se as reformas não tentarem ser o mais sinodais possível, também não acabarão sendo muito eficazes.
Todos já vimos alguma vez que o autoritarismo pode ser mais rápido e eficaz do que a democracia: mas, em primeiro lugar, essa eficácia costuma ser fraca e, além disso, a democracia não se justifica por seus efeitos, mas pelo que ela própria significa.
E há um exemplo que me fez muita graça quando o li, e que mostra sem querer o quão difícil é a integração: a Don J. Sebastián Bach, luterano convicto, ocorreu (presumo que por razões musicais) compor uma Missa (em si menor). E resultou que os protestantes a rejeitaram, porque eles não têm missas. E os católicos a recusaram porque era obra “de um herege”. No fim: a missa em si menor recebeu um não maior. E teve que passar tempo para que todos pudéssemos desfrutar daquela preciosidade. Outra lição da história: é preciso integrar, mas isso não é nada fácil.
Então, seria bom concluir com uma palavra sobre a sinodalidade. Acredito que durante o primeiro milênio mais ou menos, houve um bom exemplo disso na eleição dos bispos pelas próprias igrejas locais (caso, de qualquer forma, mais fácil do que quando se trata de uma decisão para a igreja universal).
A certeza de uma ação do Espírito se dava apenas quando havia unanimidade (casos bastante raros como os de São Martinho de Tours e São Ambrósio de Milão). Em outros casos, funcionava uma espécie de busca de comunhão, tão respeitável que, em apelações a Roma, por desacordo em algum nomeação, a resposta do papa não era nomeá-lo ele, mas dizer que se repetisse a eleição [3].
Daí surgiu aquele princípio que depois passou ao direito comum: “o que afeta a todos deve ser tratado e aprovado por todos”[4]. Isso mesmo se reflete na frase popular: “vox populi vox Dei”, cujo perigo é que se leia como se dissesse: vox mea (ou vox nostra = do meu grupo) vox Dei. E que, em mais de um caso, poderá ser verdadeira; mas deve procurar sair de sua particularidade para se tornar o mais universal possível.
O que acabou com aquela prática de nomeações episcopais (simplificando um pouco a complexidade da história) foi que os príncipes e senhores feudais tentaram substituir o povo ou argumentar isso de: “o povo sou eu”. O que forçou Roma a fazer essas nomeações para salvar a liberdade da Igreja. E eu, que proclamo esta reforma como importante e urgente para hoje, temo também que, no dia em que as igrejas locais recuperem seu protagonismo na eleição de seus pastores, o grande perigo será que essas nomeações acabem sendo feitas não pelo povo, mas pelos Meios de Comunicação que hoje são tantas vezes meios de manipulação social.
Deixando este exemplo, o sentido de uma verdadeira sinodalidade é que a Igreja funcione como o que diz ser: uma comunhão (koinonía) universal (católica). E funcionar como o que se é, no fundo, não é sempre o mais confortável e fácil; mas parece ser o mais autêntico, embora às vezes possa implicar renúncias custosas. Mas outras vezes proporcionará experiências muito agradáveis de gratuidade e harmonia.
Essas reflexões têm a inoportunidade de ter pela frente o próximo sínodo sobre o qual já se ouvem opiniões nem sempre esperançadoras. Acredito que a única maneira de criar esperança é que o sínodo seja verdadeiramente sinodal (por assim dizer). Que todos possam falar e sobre tudo: evitando, por um lado, a influência tácita de “grupos ocultos de pressão” (que é o perigo de todos os assemblearismos) [5]. E que, se algum tema for excluído, não seja de maneira tácita e autoritária, mas que as comissões preparatórias apresentem as razões para isso: não é o mais urgente, ainda não está suficientemente maduro, não é uma demanda universal, tem esses ou aqueles inconvenientes… etc., etc.
Depois, aconteça o que acontecer, será preciso estar preparado para o conselho que dá título ao último livro do grande J. Moingt: “Crer apesar de tudo”.
[1] Esses, ainda não totalmente cristãos, existem também hoje. Alguns são autoridades, usam mitra e têm feito ao cristianismo um dano que talvez desconheçam.
[2] Esses “coríntios” também existem hoje; e cabe a nós perguntarmos se não poderíamos estar entre eles.
[3] Informação mais detalhada sobre toda essa história no livro: “Nenhum Bispo Imposo” (São Celestino Papa). As eleições episcopais na história da Igreja. (Santander 1992).
[4] “Quod omnes tangit ab omnibus tractari et approbari debet”. No seu origen era uma frase do direito romano e de Justiniano, aplicável apenas a casos de direito privado (familiar etc.). Com a prática eclesial, tornou-se direito público.
[5] E, sobretudo (como antes insinuei), a influência de alguns meios de comunicação, que parecem ter feito da reforma da Igreja uma espécie de “título chamativo” para evitar dedicar-se à própria reforma (que talvez seria muito necessária em alguns casos).
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Revoluções eclesiásticas: na Igreja, é preciso sentir-se à vontade pelo que ela representa, não pelo seu modo de ser - Instituto Humanitas Unisinos - IHU