02 Novembro 2015
"Não há organização religiosa que perpasse os tempos sem um corpo doutrinário, que podemos chamar, no caso das instituições cristãs, de princípios fundamentais", diz o teólogo.
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Apesar de o termo protestante estar "cada vez mais em desuso no Brasil", nas duas Igrejas Luteranas – IELB e IECLB – "que trazem em sua identificação uma explicitação do patrimônio teológico do reformador Martinho Lutero (...) o traço étnico teuto-brasileiro ainda é muito saliente. Mas isto é um traço externo. Tais igrejas luteranas, herdeiras da Reforma do século XVI, continuam atualizando a compreensão de que os seres humanos não podem contribuir com a salvação. Mas tocados por ela, a salvação de graça por meio da fé, se envolvem com os problemas da humanidade", diz Oneide Bobsin à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail por ocasião do dia de hoje em que se celebram os 498 anos da Reforma.
De acordo com Bobsin, "este traço distintivo é de difícil tradução para o nosso contexto brasileiro; e não o é por causa do catolicismo. Acho que a concepção de vida que se baseia na graça de Deus bate de frente com a visão de mundo do sistema capitalista de consumo, que nos vende a ilusão de que somos poderosos e podemos tudo individualmente. Costumo brincar que o sistema capitalismo não tem graça. E os fiéis destas Igrejas herdeiras de uma concepção gratuita da vida e da fé estão tão integrados na visão ideológica do sistema, que dificulta a explicitação de uma peculiaridade que não é própria das Igrejas da Reforma, mas do cristianismo com as suas múltiplas igrejas – a reciprocidade que nasce da gratuidade", justifica.
Em 2017, as Igrejas Evangélicas de Confissão Luterana irão celebrar os 500 da Reforma, e uma série de atividades estão sendo planejadas para marcar a data. Toda essa movimentação, diz Bobsin, "tem relação com a busca de atualização da Reforma do século XVI, com o objetivo de reafirmar a mensagem de Cristo para um mundo globalizado, ainda pouco reconciliado".
Oneide Bobsin é professor de Ciências da Religião na Escola Superior de Teologia - EST, e é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade de São Paulo - PUC-SP.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Qual é o significado da Reforma?
Oneide Bobsin - O meu ponto de partida não se baseia estritamente numa teologia confessional, embora eu seja um teólogo identificado com uma Igreja oriunda da Reforma. Valho-me da condição de professor de Ciências da Religião para comentar as perguntas.
Para o nosso mundo ocidental a Reforma Protestante é uma das grandes referências. No campo político tivemos a revolução francesa burguesa e a revolução socialista. São referências que nos constituem como ocidente distinto de outros povos. Como vivemos cinco séculos após o movimento da Reforma Protestante, não temos mais a dimensão do lugar que a religião ocupava naquela época. Uma mudança no campo religioso impactava profundamente a sociedade em suas múltiplas dimensões. Hoje, em nosso contexto, uma mudança religiosa tende mais para uma adaptação à sociedade. Evidente que precisamos desconsiderar o impacto do fundamentalismo. Também precisamos considerar que a Reforma Protestante foi um movimento religioso dentro da cristandade ocidental heterogêneo e que não tinha como objetivo a cisão do cristianismo.
IHU On-Line - Qual foi o impacto religioso, social e cultural da Reforma?
Oneide Bobsin - Nenhum fenômeno, seja ele social, político ou religioso pode ser visto de forma estanque. Há uma inter-relação entre as diversas dimensões da realidade. Nesta perspectiva, a Reforma retomou aspectos importantes do cristianismo que a sedimentação eclesiástica fora tornando irrelevante. A valorização da educação pública recebeu forte impulso da Reforma; no campo político, a separação entre Igreja e Estado impulsionou uma autonomia relativa entre política e religião. Igreja e Estado passam a ser distintos, mas não separados. Com isto temos impulsos para a constituição do Estado moderno, laico. Repito, não que isto tivesse sido um plano explícito dos reformadores; antes foi uma decorrência de novas concepções que já estavam nos primórdios do cristianismo. A música e o estudo das línguas antigas recebem impulsos.
IHU On-Line - Qual é a peculiaridade do protestantismo praticado no Brasil?
Oneide Bobsin - O termo “protestante” está cada vez mais em desuso no Brasil. A grande mídia comprou a proposta de igrejas pentecostais que renomearam os cristãos não católicos apostólicos romanos como “evangélicos”. Não vou, pois, falar deste campo “evangélico”, que também bebe, de certa forma, da Reforma do século XVI. Limito-me às duas Igrejas Luteranas – IELB e IECLB – que trazem em sua identificação uma explicitação do patrimônio teológico do reformador Martinho Lutero, apesar das diferenças entre si. Como protestantismo luterano de transplante, o traço étnico teuto-brasileiro ainda é muito saliente. Mas isto é um traço externo. Tais igrejas luteranas, herdeiras da Reforma do século XVI, continuam atualizando a compreensão de que os seres humanos não podem contribuir com a salvação. Mas tocado por ela, a salvação de graça por meio da fé, se envolvem com os problemas da humanidade.
Em outras palavras, o que recebemos na fé devemos passar aos outros no amor. Este traço distintivo é de difícil tradução para o nosso contexto brasileiro; e não o é por causa do catolicismo. Acho que a concepção de vida que se baseia na graça de Deus bate de frente com a visão de mundo do sistema capitalista de consumo, que nos vende a ilusão de que somos poderosos e podemos tudo individualmente. Costumo brincar que o sistema capitalismo não tem graça. E os fiéis destas Igrejas herdeiras de uma concepção gratuita da vida e da fé estão tão integrados na visão ideológica do sistema, que dificulta a explicitação de uma peculiaridade que não é própria das Igrejas da Reforma, mas do cristianismo com as suas múltiplas igrejas – a reciprocidade que nasce da gratuidade.
IHU On-Line - Na igreja católica, ao menos em algumas regiões do país, percebe-se um sincretismo religioso. O mesmo ocorre entre os protestantes? Como avalia esse tipo de fenômeno e de que modo o protestantismo dialoga com o pluralismo religioso e o sincretismo?
Oneide Bobsin - Parto do pressuposto que não há religião pura. E quando a pureza religiosa, política ou de outra natureza se instala, procura-se eliminar o diferente, simbólica ou fisicamente. Não conseguimos entender o Novo Testamento sem o Antigo Testamento. Na verdade, os cristãos são judeu-cristão. Nossa Bíblia é composta de duas tradições, embora as Igrejas cristãs leem o Antigo Testamento através do Novo. Assim, como há uma variedade de práticas católicas que se interpenetram com outras tradições religiosas, como, por exemplo, a indígena ou de matriz africana, da mesma forma, no protestantismo isto também ocorre, embora seja menos admitido pelo clero e por teólogos. Principalmente no contexto urbano, onde o controle social da comunidade de fé é menor, há pessoas luteranas que recorrem a outros credos nos momentos difíceis da vida, como luto, desemprego, doença etc. E não significa que estas pessoas deixam de participar de sua Igreja. No imaginário religioso dominante, os sistemas religiosos são complementários. Na cabeça da religião oficial existe uma certa ilusão de exclusão dos sistemas, que para a maioria é complementar. Como a televisão trouxe a religião para dentro de casa, este processo sincrético tende a se aprofundar.
IHU On-Line - Na igreja católica há tentativas de rever tanto a doutrina quanto as práticas de atuação, a exemplo do Sínodo dos bispos, que discutiu uma série de questões relacionadas à família. Há possibilidade de revisões doutrinais ou das práticas religiosas entre os protestantes? Em que aspectos? Como se dá essa discussão na sua igreja?
Oneide Bobsin - Não há organização religiosa que perpasse os tempos sem um corpo doutrinário, que podemos chamar, no caso das instituições cristãs, de princípios fundamentais. Tais princípios podem ser comparados aos fundamentos de um prédio, via de regra, não visíveis. Mas, diante da complexidade da vida, de novos desafios e de novas perguntas, as instituições precisam descongelar a tradução das doutrinas para que possam ser relevantes para os novos tempos. As perguntas mudam; elas precisam ser respondidas com as mesmas doutrinas. Na maioria das igrejas cristãs, e não é diferente nas grandes religiões, são formados corpos de teólogos e teólogos, cuja tarefa é auscultar as novas perguntas e atualizar as tradições. Prefiro falar em atualização que “revisão de doutrinas”.
Uma instituição religiosa que não sabe traduzir sua mensagem para novos tempos certamente trai seus princípios. Um dos problemas das Igrejas, muitas vezes, reside na dificuldade de tradução de princípios. A tradução das palavras de Cristo é um problema complexo, que merece revisão no sentido de atualização, mas sem cair em modismos. Há poucos dias o padre Zezinho disse algo fundamental, como aviso a alguns dos novos padres cantores: "Quando o meio se torna mais importante que a mensagem, algo está equivocado no meio e na mensagem". Ele questionou o modismo. Contudo, há diferenças de princípios entre as Igrejas. Mas isto é assunto para teologia confessional.
IHU On-Line - Em que consiste sua pesquisa acerca da atuação da Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil durante a ditadura militar?
Oneide Bobsin - Estou concluindo uma pesquisa sobre Direitos Humanos, Ditadura Civil-militar e Igreja. A pesquisa privilegiou o entorno dos anos de 1970, quando deveria ocorrer no Brasil a Assembleia da Federação Luterana Mundial, uma assembleia de igrejas luteranas que representavam mais ou menos 70 milhões de pessoas. Poucas semanas antes de sua realização, ela fora transferida para Evian, França. Comitivas de várias partes do mundo estavam reticentes com a presença do Governo brasileiro na Assembleia. Circulava pela Europa e pela América do Norte, de onde viria grande parte das comitivas, que o regime brasileiro desrespeitava os direitos humanos, especialmente dos oponentes políticos. A questão da tortura dos inimigos do governo militar era vista como inverdades denunciadas pela imprensa internacional para algumas das lideranças locais.
A direção da Igreja Luterana de então afirmava que não havia tortura no Brasil, embora pessoas exiladas comentavam o contrário no exterior. Fiz uma pesquisa entrevistando um grupo de pessoas luteranas que participaram na resistência ao Regime Militar através da participação política, movimentos estudantis e, posteriormente, na luta dos pequenos agricultores. Tais pessoas confirmam a existência de violação aos direitos humanos, torturas, antes de 1970, embora os “anos de chumbo” são considerados a partir de 70. A Comissão Estadual da Verdade/RS, da qual fiz parte, tinha como objeto de apuração as violações no período de 1961 a 1985. No RS, por exemplo, a repressão já se instalou a partir dos efeitos da legalidade, com a eleição de Ildo Meneghetti para o Governo do Estado. De qualquer forma, a transferência da Assembleia foi um duro golpe na IECLB da época, gerando, logo em seguida, um rico debate de inserção dela no contexto brasileiro empobrecido.
IHU On-Line - Como estão os preparativos para a celebração dos 500 anos da Reforma?
Oneide Bobsin - Há um grande movimento bem diversificado no sentido de buscar uma atualização da mensagem da Reforma para múltiplos contextos, sem cair confessionalismos excludentes, como no passado. Tenho poucas condições para fazer avaliações quantitativas. No campo teológico há uma grande movimentação. A Faculdades EST, por exemplo, criou uma Cátedra de Pesquisa sobre Lutero. Assim, há tantas outras iniciativas no campo teológico e eclesial mundo afora. Tenho certeza que toda a movimentação tem relação com a busca de atualização da Reforma do século XVI, com o objetivo de reafirmar a mensagem de Cristo para um mundo globalizado, ainda pouco reconciliado.
Afinal, precisamos constantemente de reformas em todos os campos. Lutero havia dito que uma Igreja da Reforma precisa estar sempre sendo reformada. Esperamos isto para o Estado brasileiro, bem como necessitamos de tantas outras reformas, como a agrária, a política, educacional, urbana etc., de forma a que todos/as sejam incluídos/as na distribuição da riqueza. Uma das grandes contribuições da Reforma Protestante foi a subordinação da economia à política.Vivemos numa subordinação da política a interesses econômicos de elites que desfiguram a cidadania.
IHU On-Line - Como avalia a visita do papa Francisco à Igreja evangélica e luterana
em Roma?
Oneide Bobsin - Só posso emitir uma opinião pessoal, como os demais comentários acima: é um papa certo para um momento certo. Em outras palavras, é uma pessoa situada no tempo e nos grandes dramas da humanidade. Sabe se comunicar para além da Igreja Católica porque é um papa muito atualizado. Seus gestos simples, fransciscanos, denunciam um modo de vida arrogante e consumista que ameaça o nosso planeta. Talvez tenha muitos conflitos internos com a hierarquia, que teme atualizar a mensagem de Cristo. Nos seus gestos pastorais estão implícitos os valores do evangelho de Cristo. É uma testemunha de seu tempo. Ora, não é fácil ser contemporâneo de seu próprio tempo. Papa Francisco consegue.
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''Uma Igreja da Reforma precisa estar sempre sendo reformada''. Entrevista especial com Oneide Bobsin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU