24 Mai 2022
“Quando as pessoas começam a confiar em slogans, quando suas intervenções soam enlatadas, como se fossem caixas de seleção, isso mostra que eles não estão realmente ouvindo, que eles resolvem os desafios de nosso tempo de maneiras ideológicas. Todos nós fazemos isso mais do que gostamos de admitir. O processo sinodal exige que deixemos de lado nossos antolhos ideológicos”, escreve o jornalista estadunidense Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 23-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em fevereiro eu escrevi sobre alguns hábitos intelectuais que nós estadunidenses possuímos, mais especialmente uma sensibilidade ativista própria da democracia, que nós precisamos resolver se quisermos abraçar uma sinodalidade frutífera. Hoje, eu gostaria de falar sobre como uma das características do nosso tempo, especialmente esse temperamento ideológico, deve também ser posto em cheque se a sinodalidade é o bem que desejamos.
Durante a série de palestras Call to Action no estado de Nova York que eu dei na primeira semana de maio – o primeiro dia em Albany, o segundo em Syracuse, depois Binghamton, Rochester e Búffalo –, meu foco central era como a guerras culturais distorciam o ensino católico, e como nossa tradição intelectual e moral católica nos capacita a não entrar em guerras culturais. Uma parte chave dessa resistência vem de nossa habilidade a desenvolver uma cosmovisão católica.
Nós todos necessitamos de uma cosmovisão. Você não pode começar do nada cada dia. Conforme as nossas jornadas, nós adquirimos, discernimos ou decidimos certas ideias sobre o mundo: o que é importante? O que é justo e o que é injusto? Como eu equilibro e priorizo os compromissos pessoais, familiares e sociais? As respostas a essas questões e outras similares dão sentido ao que esperar do mundo.
Alguns de nós foram mais otimistas, e outros com expectativas mais pessimistas. Alguns de nós veem o inerente valor das leis e diretrizes, enquanto outros são mais ligados à importância da liberdade e da criatividade. Alguns de nós veem o mundo com suspeição, outro com mais confiança. No entanto essas coisas sacodem, elas são fruto de uma cosmovisão. Elas nos ajudam a dar sentido ao mundo baseado em lições que nós aprendemos e àquilo que nós consideramos ser significativo.
Mas como nós mantemos uma cosmovisão desenvolvida em uma ideologia? Nós nos colocamos antolhos, como um cavalo de corrida que focará em uma coisa, e não será distraído por outros cavalos. Nós não colocamos os antolhos à frente dos cavalos, porque senão isso faria o cavalo baixar a cabeça e não correr. Uma cosmovisão é como um antolho de cavalo. Um antolho posto à frente é quando a cosmovisão se torna uma ideologia.
Uma verdadeira cosmovisão católica irá, por si, prover o significado para evitar que se torne uma ideologia.
Nota: A cultura também é o principal meio pelo qual não começamos de novo todos os dias, e a cultura americana sempre foi moldada pelas ideias protestantes sobre o mundo. Enquanto o catolicismo sempre suspeitou do hiperindividualismo, o protestantismo não, então a a cultura dos EUA é mais individualista. Adicione os desafios especiais a uma cosmovisão religiosa apresentada pela modernidade, e isso pode ser desconcertante. Os católicos dos EUA precisam realmente trabalhar um pouco para criar uma cosmovisão católica.
Um dos atributos mais óbvios de uma cosmovisão católica é sua propensão a pensar em formas humanísticas que combinam e conectam, que incorporam e incluem. A tradição intelectual católica tem conjunções “ambos/e”, não “ou”. Não favorecemos a fé sobre a razão, como Lutero insistiu que um cristão deve fazer, mas procuramos maneiras pelas quais a fé e a razão dão sentido aos mistérios da fé. Os católicos insistem em um lugar tanto para a graça quanto para a natureza, não uma ou outra.
Assim, por exemplo, quando lemos a magnífica taxonomia da relação entre Cristo e cultura de H. Richard Niebuhr, admiramos sua capacidade de distinguir e diferenciar, mas uma leitura católica do texto nos convida a não aderir a nenhuma das cinco abordagens à questão articulada por Niebuhr, mas relacioná-los uns aos outros como complementares. Vemos a necessidade do “cristão radical” manter o resto de nós honestos, assim como reconhecemos o valor da religião acomodacionista que conecta o Evangelho ao que há de melhor em nossa cultura. Aplaudimos o sintetizador de Cristo e da cultura, mas permitimos que o dualista verifique seu trabalho também. E, esperançosamente, se formos honestos, quando convidamos Cristo a transformar a cultura, não pedimos a ele apenas que atenda à parte da cultura que abominamos.
Outra chave para derrotar a ideologia é ver nossa religião menos como uma série de proposições às quais concordamos e mais como um pertencimento relacional e afetivo. Aqui, os católicos de língua inglesa têm a grande graça de nossos irmãos e irmãs latinos, cuja fé na América Latina é mais relacional e menos propositiva, mais afetiva do que nocional. Se a Igreja Católica serviu como um meio para assimilar as populações imigrantes anteriores, a tarefa hoje é bem diferente: precisamos ajudar os católicos latinos a manter sua perspectiva religiosa e trazê-la para a assistência de nossa Igreja americana enfraquecida e moribunda. Eu já disse isso antes e direi novamente: O afluxo de católicos latinos é nossa única esperança. Caso contrário, a Igreja Católica nos Estados Unidos não passará de um clube de classe média alta para pessoas com ética sexual conservadora.
Ética? É importante, com certeza, mas a redução da religião à ética tem sido uma marca registrada do cristianismo nos EUA e essa redução empobrece a Igreja e distorce nossa autocompreensão. Todos os domingos, recitamos o credo, e não contém uma única reivindicação ética. Não menciona as bem-aventuranças. É silencioso sobre as obras de misericórdia corporais e espirituais. Em vez disso, o credo articula a admiração que sentimos ao contemplar o Deus revelado a nós por Jesus Cristo. Permanecendo por conta própria, muitas proposições éticas mantidas há muito tempo pelos cristãos não fazem sentido para homens e mulheres modernos, mas não se sustentam por si mesmas. Elas fluem de crenças fundamentais sobre a criação, a queda, a Encarnação, a morte e ressurreição de Jesus e o eschaton. Se permitirmos que nossa religião seja reduzida à ética, em breve será reduzido ainda mais à política, e nesse ponto se tornará uma ideologia. Resistir.
O ensino social católico é um exemplo de uma cosmovisão católica aplicada às realidades sociais, econômicas e políticas. Seus quatro pilares – dignidade humana, bem comum, solidariedade e subsidiariedade – estão todos relacionados entre si e mostram, também, como as conclusões éticas estão enraizadas em reivindicações doutrinárias e bíblicas, como o monsenhor John Strynkowski explicou em uma coluna do NCR alguns anos atrás – e traduzido ao português pelo IHU.
Há implicações antropológicas e até mesmo soteriológicas no ensino social católico que transcendem a ética. Mais importante ainda, não há questão na vida pública que não se beneficie de ser vista através das lentes da doutrina social católica, tornando-a um exemplo perfeito de quão relevante uma cosmovisão católica pode ser.
Essas são algumas das características de uma cosmovisão católica que eu acho que contêm o tipo de meio de autocorreção para impedir que essa cosmovisão se torne uma ideologia. E a capacidade de resistir à ideologia é absolutamente necessária para que o processo sinodal funcione. Quando as pessoas começam a confiar em slogans, quando suas intervenções soam enlatadas, como se fossem caixas de seleção, isso mostra que eles não estão realmente ouvindo, que eles resolvem os desafios de nosso tempo de maneiras ideológicas.
Todos nós fazemos isso mais do que gostamos de admitir. O processo sinodal exige que deixemos de lado nossos antolhos ideológicos e, em vez disso, ouçamos as palavras do profeta Isaías 43, 19: “vejam que estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando agora, e vocês não percebem?”.
A ideologia nos mantém em um deserto estéril, confiando apenas em nós mesmos. A sinodalidade nos abre ao movimento do Espírito Santo.
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Procure a abertura da sinodalidade, não a barreira da ideologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU