José Ignacio González Faus é um jesuíta nascido há 87 anos, em Valência (Espanha). Hoje, mora a 12 quilômetros de Barcelona, em uma cidadezinha chamada Sant Cugat del Vallés. “Sant Cugat, traduzido para o espanhol, é San Cucufato, um santo pouco conhecido, não se sabe muito sobre quem foi, mas dizem que é um mártir, que morreu aí, que veio da África para cristianizar a Espanha e que, ao desembarcar, foi morto”, conta-nos no início.
Acrescenta que enquanto escrevia a sua tese de doutorado na Alemanha, ganhava o seu sustento como capelão dos migrantes daquela época, e na mesma cidade onde estava como professor de dogmática Joseph Ratzinger, que no início deste século foi eleito Papa e se tornou Bento XVI.
Explica que ser capelão de imigrantes muitas vezes implica ser intérprete, “porque é disso que os migrantes mais precisam”. Ao concluir sua tese, disse que desejou se dedicar à pastoral dos migrantes, “mas uma emigrante espanhola, uma grande mulher, que já morreu e que havia migrado por razões econômicas e afetivas, disse-me: “não, não, não, José Ignacio, você retorna para casa e nos ajuda com sua palavra. E voltei para casa”.
Desde então, sua palavra é orientadora para milhares de cristãos e cristãs que o acompanham em todo o mundo.
González Faus é licenciado em filosofia (Barcelona, 1960), foi ordenado sacerdote em 28 de julho de 1963 e doutorou-se em Teologia na universidade austríaca de Innsbruck, em 1968. Antes, estudou no Pontifício Instituto Bíblico, em Roma (1965-66), e desde 1968 é professor de Teologia Sistemática, na Faculdade de Teologia da Catalunha (Barcelona).
Além disso, desde 1980 oferece regularmente aulas na Universidade Centro-Americana (UCA), em San Salvador, e viajou como professor convidado para diferentes países da América Latina (México, Brasil, Uruguai, etc.).
De 1968 a 1977, foi diretor da revista Selecciones de Teología e, de 1981 a 2005, responsável acadêmico do centro de estudos sociais e teológicos Cristianisme i Justícia, de Barcelona. Atualmente, permanece como membro da área teológica de tal centro.
A entrevista é de Aníbal Pastor N., publicada por Religión Digital, 19-07-2021. A tradução é do Cepat.
Estamos vivendo uma mudança de época, que não só vai gerando templos vazios, mas almas vazias. Qual é a sua reflexão acerca desta realidade?
Primeiro, é preciso definir um pouco em que consiste a mudança de época, porque há dois campos distintos. Por um lado, a sociedade passou de uma sociedade mais religiosa a uma sociedade mais secular, mais laica. Com isso, há o perigo de, em vez da laicidade, cairmos em um laicismo. Isso é inegável.
Por outro lado, independentemente de qualquer coisa, parece-me que a Igreja entrou em uma crise séria, ao menos no que era o ocidente cristão. Isso não me perturba muito, porque, assim como muitas outras crises, pode servir para passar da quantidade à qualidade.
Na Espanha, que é o país que conheço, quando eu era menino todo mundo era católico, todo mundo era cristão. Era uma religiosidade imposta, que a alguns pode ajudar, a muitos afastou. Agora, com a má imagem que a mídia apresenta da Igreja e com os pecados da Igreja, também já disse, algumas vezes, que há jovens cristãos hoje que são muito mais cristãos do que eu era quando tinha a sua idade.
Mesmo que antes eu era jesuíta e, possivelmente, eles agora têm namorada ou estão casados ou algo assim. Acredito que o Espírito pode nos conduzir a isso: passar de um cristianismo de quantidade a um cristianismo de qualidade. Isso seria a primeira coisa.
A segunda coisa, algo que pode ser preocupante, é que a crise é sobretudo típica do que era ou do que podemos chamar ocidente cristão. No oriente, o cristianismo não está em crise. Eu sou jesuíta, você já sabe. Na Espanha, se temos sete vocações de jesuítas, em toda a Espanha, já aplaudimos. No Vietnã, no ano passado, admitimos 47. Em um país como o Vietnã. E após os solicitantes passarem de 100. Porque aí são muito avaliados.
O que quero dizer com isto? A crise da Europa pode favorecer o crescimento do cristianismo na Ásia e na África, que será muito bom, mas o cristianismo ocidental adquiriu os direitos humanos e o sentido social, que possivelmente não estão bem desenvolvidos nestas igrejas que vêm do oriente, não estão tão desenvolvidos, nem são tão importantes para elas.
Por isso, passar da quantidade à qualidade implica ver também como transmitimos, que se dá por aquilo que para mim parece ser grandes valores, adquiridos graças ao progresso da Igreja, à modernidade e a muitas coisas que foram sendo recuperadas, que podem ser simbolizadas no sentido social do Papa Francisco.
E sobre as consequências espirituais desta mudança de época?
Uma expressão que você disse antes, que gostei: “os templos vazios e as almas vazias”. Os templos estão vazios, em parte, por nossa culpa. Eu não sei como está o Chile, mas posso dizer que na Espanha, ao menos há alguns anos, nossa pregação era espantosa.
Quando eu era mais jovem e em um domingo precisava estar em Sevilla, em Madrid, em Zaragoza, por motivo de alguma viagem, em vez de celebrar a missa no domingo, ia até uma igreja qualquer e participava da missa nela. E muitas vezes saí pensando: “que paciência têm esses cristãos que suportam essas homilias”. Não sei se isso mudou, porque falo de... vinte anos atrás.
Mas, assim como os templos vazios podem ser nossa culpa, as almas vazias são culpa desta sociedade. E isso me parece muito importante. A sociedade de consumo que criamos não oferece outro objetivo para a vida a não ser consumir.
Algumas vezes, parodiei Santo Inácio de Loyola, que disse: “o homem foi criado para louvar e servir a Deus”. A sociedade de hoje diz: “o homem foi criado para consumir e que, dessa maneira, seja apreciado pelos outros”, algo assim.
Chega um momento no ocidente em que o consumo já não satisfaz. Deixa a alma vazia. E isso é o que provoca tantas buscas, infelizmente, equivocadas ou perdidas, que busquem no oriente, que procurem o radicalismo como o Jihad ou coisas desse gênero, que conquistam porque oferecem um objetivo para viver. A sociedade de consumo não oferece nenhum objetivo.
Como é do seu conhecimento, a linguagem constrói realidade e, no processo de empoderamento das mulheres na igreja, falamos de Deus Pai e Mãe. Qual é a sua opinião a esse respeito?
Todo esse processo de igualdade entre mulheres e homens é algo muito cristão. No entanto, não há um parto que não seja acompanhado de sujeiras e de perigo. O que me ajudou foi estudar um pouco, historicamente, algo sobre esse tema da mulher, a história da igreja primitiva. Então, você percebe algumas coisas que são importantes.
Primeiro, ao contrário do que muitas feministas dizem, não foi o cristianismo que criou a desigualdade. A sociedade grega era muito desigual nisso. Platão, com toda a sua sabedoria, disse que a mulher foi feita apenas para a casa e o homem para a política. Inclusive, parece mentira que alguém como Platão diga isso: só é possível ter amizade com homens, porque com os homens você pode falar de coisas sérias, com as mulheres não é possível falar de nada sério.
Claro, só é possível entender isso quando se conhece como estava a mulher, há 25 séculos, na Grécia daquele momento. Aqui, o cristianismo foi realmente uma autêntica revolução. Tanto que, do pouco que se conserva de críticos, pagãos ou cristãos, uma das coisas que parece que escandalizou é que corrompe as mulheres.
São Paulo, que tem algum texto muito discutível, disse que as mulheres usem véu, disse também para as mulheres que profetizam que usem véu. O véu é secundário, o que importa é que a mulher pode profetizar. E a profecia era, na carta aos Coríntios, por exemplo, depois do apostolado, o segundo grande carisma.
Este e outros indícios permitem compreender que, no cristianismo primitivo, houve uma situação da mulher mais sóbria do que gostaríamos de ver, mas escandalosa para aquela sociedade. Então, Paulo recua, porque para Paulo parece que o objetivo primeiro é eliminar a divisão entre pagãos e judeus, antes que a divisão entre homens e mulheres.
É curioso que, certa vez, em Gálatas 3, 28, tenha dito que em Cristo Jesus não há homem, nem mulher, senhor e escravo, judeu, nem grego. No entanto, em outra citação, removeu homem e mulher. Disse que com Cristo Jesus não há senhor, nem escravo, judeu ou grego. Porque para Paulo, a universalização do cristianismo era fundamental.
Depois, vão surgindo outras coisas, ao longo da história.
Tenhamos em conta que na sociedade primitiva, um detalhe que me parece muito importante, além do fato de que, em sociedades muito mais guerreiras, como eram então, a força física era supervalorizada, e o homem tem mais força física, além disso, na antiguidade, não se conhecia o óvulo. Acreditava-se que a única célula germinal era o sêmen do homem, assim, a mulher era desvalorizada. Era como uma terra, como a terra onde eu planto a semente, mas a terra não é fecunda, fecunda era a semente. Esta era a mentalidade.
Isso deu origem a uma concepção da superioridade do homem, que a história foi eliminando e temos que aceitar, porque a história evolui para algo. E quando evolui bem, é preciso aceitar. Isto me parece importante para todos os casos de violência, por exemplo, mas essa situação na qual o homem se acreditava superior era fundamental para a mentalidade da época, e isso na Bíblia você poder ver muitas vezes nos Salmos, na perpetuidade, perpetuar-se, ter filhos, que meu sobrenome não se perca.
E isso só podia ser dado pela mulher, pois com todo o seu sentido de superioridade, o homem tinha uma dependência da mulher, além da atração sexual do corpo da mulher. Mas, para além disso, sem a mulher não podia procriar. E isso gerava uma relação que era, ao mesmo tempo, de admiração e de ódio.
Falei muito disso. Por um lado, diviniza-se a mulher, com as grandes estátuas, mas, por outro lado, ao ser divinizada, é objetificada. E isso eu acredito que se prolonga muito, em muito de nossa literatura.
Em algum lugar, citei a literatura, um tanto pornográfica, de Henry Miller, na qual por um lado a mulher é muito exaltada, mas é um objeto. Você pode ter uma relação de posse, mas não de igualdade. E me lembro, certa vez, falando sobre isso, que citei um desse corridos mexicanos, que gosto muito, que começa: 'O que vou fazer se te amo de verdade, já te adorei e não posso te esquecer. E mesmo que eu não tenha fortuna, me amará aos poucos'. Contudo, em seguida, termina: 'Porque serei o seu dono'. Ou seja, muita humildade me faz amar, mas serei o seu dono.
Essa ambivalência na relação ocorreu muito. E isso é a primeira coisa que precisa ser dissolvida. E para isso as mulheres também devem colaborar, porque, às vezes, muitas feministas se preocupam mais em dizer eles e elas e pai e mãe, do que com a enorme escravidão de muitas jovens submetidas ao tratamento de prostituição, que clama ao céu.
Isso é a primeira coisa que o feminismo precisa fazer, depois diremos, como dizemos na Espanha, os bascos e as bascas ou os chilenos e as chilenas. Isso tem muito mais continuidade, então diversos pontos vão se concretizar. Quero acrescentar uma coisa, pois no Chile deve ter acontecido o mesmo, muitas pessoas católicas, pouco instruídas, daqueles que na Espanha dizíamos que tem a fé do carvoeiro, bom, a tinham muito introjetada.
Há sessenta anos, eu tinha uma tia muito conservadora, muito católica. Na primeira vez que foi a uma igreja em que uma mulher fez a leitura, voltou para casa dizendo: Não volto mais à missa naquela igreja, porque uma mulher fez a leitura e vai saber com quem passou a noite”. E sua irmã mais nova disse: “Animal! Se é um homem não terá passado a noite com ninguém” (risos).
Eu vivi esta cena... É muito importante que para todo esse cristianismo conservador, por ignorância, também saibamos dar a paz, retirar dele o escrúpulo, não deixar que acredite que está cometendo uma barbaridade. E para isso é muito importante, também, o exemplo de Jesus, que em seu tempo escandalizou, porque há uma oração judaica que se preserva: 'Senhor, eu te agradeço porque não me criou animal, nem pagão, nem mulher'.
Sabemos que quando a mulher saía à rua, andava sempre atrás do marido, nem sequer ao lado. E quando o marido se encontrava com um amigo e começavam a conversar, a mulher ficava ali, quietinha. Nesse contexto, quando Jesus conversa com as mulheres, é um verdadeiro escândalo.
Sua reflexão me parece muito interessante, mas façamos um salto da Igreja Primitiva aos dias de hoje. Há ao menos 500 anos, as mulheres eram lançadas na fogueira e hoje nas diferentes fogueiras modernas e institucionais, com a manutenção de uma estrutura eclesial patriarcal.
Sim, passaram-se muitos anos. Você citou as bruxas. As bruxas eram a alcunha feminina dos hereges. Porque as mulheres eram consideradas tão inferiores que não podiam nem sequer ser hereges. Então, eram chamadas de bruxas e todas acabavam na fogueira.
Mas note, não gostaria de errar o santo, mas há vários como Frei Luís de Granada ou São João de Ávila que disseram que as pessoas que morrem na fogueira são mártires. Então, já existiam cristãos que intuíam que isso não era evangélico. Eram silenciados, eram punidos, mas ao longo do tempo o que permanece é a palavra de São João de Ávila e não a dos inquisidores.
Eu tive a paciência de ler, por amizade aos Carmelitas, todas as acusações contra Teresa de Ávila, depois de morta, por um inquisidor que, aliás, as baseava nas palavras de um delator. Este dizia aos inquisidores: 'é que eu estou arriscando minha salvação eterna, seu eu não denunciar Santa Teresa e vocês não a condenarem'. Hoje em dia, gostaria de saber, nesse além, o que deve pensar esse pobre delator de que aquela Teresa herege é doutora da Igreja.
Precisamos saber uma coisa que a própria Teresa dizia, que é muito bonita: a verdade sofre, mas não perece. E se realmente temos a verdade, pouco a pouco, o caminho vai se abrindo. Isso acarretará mártires, acarretará perseguidos, mas a longo prazo... Olhe para outro contexto, agora muito diferente, todos os teólogos que Pio XII condenou foram os teólogos convidados por João XXIII a participarem do Concílio Vaticano II como assessores dos bispos.
Voltamos ao presente. O Papa Bergoglio, jesuíta como você, nos convidou a realizar a primeira Assembleia Eclesial da América Latina e o Caribe, que conta, previamente, com um importante “Processo de Escuta” do que diz o Povo de Deus hoje. O que significa escutar no atual contexto? Com o que e como devemos escutar?
Boa pergunta e com difícil resposta. Em primeiro lugar, escutar não significa somente ouvir, porque eu posso estar distraído enquanto ouço. Significa ouvir sem nenhum preconceito prévio. Porque quantas vezes pode acontecer com você, comigo, quando vemos o outro, de o medirmos. Esse é dessa corrente, esse é daquela, esse não sabe sobre isso, esse não sabe daquilo. E tudo o que ouvimos vamos rotulando de certa maneira. Portanto, ouvir sem rotular.
Depois, trata-se de ouvir a todos. Perceberemos que até o mais distante de nós pode ter algo de verdade. Isso é uma coisa importante. Escuta-se para dialogar. Mas o que significa diálogo? Diálogo é uma palavra grega: dia, que significa atravessar, e logos, que é a palavra.
Portanto, que a palavra do outro me atravesse e eu a receba e que algo dela permaneça em mim. Pode ser 1%, 5% ou talvez 90%... não sei. Mas deixar-se atravessar pela palavra do outro. E, portanto, ver o que pode existir de verdade em tudo aquilo que me parece condenável.
Por outro lado, se escutarmos a todos, perceberemos a existência da pluralidade de opções. Como a realidade é muito plural, cada um se fixa em um aspecto ou em outro e isso transformamos em toda a verdade. A grande tarefa da verdade, e por isso nunca a possuímos, é que nela cabem todos os aspectos da realidade.
Gosto de dizer que uma meia verdade provoca mais dano do que uma mentira. Porque a meia verdade se expõe como verdade e lá vamos nós. Cito muitas vezes o grande Pascal, o grande pensador francês, que disse uma coisa que eu gosto muito: 'As heresias não foram heresias pelo que diziam, mas porque não davam espaço em sua verdade a outras verdades'.
Que Jesus era Deus, e não se dava espaço para a humanidade. Que Jesus era homem, e não se dava espaço para a divindade, dito de um modo mais global. Mas sempre é verdade. Cada verdade precisa ser completada, ponderada, suavizada, por outras verdades, por outros aspectos da realidade. Isso é o fundamental da escuta: deixar-se atravessar e escutar a todos.
Essa Assembleia Eclesial da América Latina faz parte do projeto de sinodalidade do Papa Francisco. Que valor atribui a esse processo sinodal? Para onde vamos? Você acredita que, em pouco tempo, conseguiremos a sinodalidade na Igreja com todo o povo de Deus?
Boa pergunta. De entrada, que valor lhe atribuo? Muito. Onde podemos chegar? Não sei.
Boa resposta, mas no fundo... que relação há entre sinodalidade e democracia?
Na Igreja, muitas vezes, foi dito uma coisa que é, ao mesmo tempo, uma grande verdade e uma grande heresia: 'a Igreja não é uma democracia. Por que a Igreja não é uma democracia? Porque ela não escreve para si mesma uma constituição política, porque o evangelho a confere. A Igreja depende da Palavra de Deus, não do que ela quer de si mesma'.
Por que todas essas perguntas e afirmações são uma grande mentira? Porque a Igreja é muito mais do que uma democracia, é uma koinonia, outra palavra que é fundamental, koinonia, comunhão, de onde vem a palavra comunismo, que tanto odiamos (risos). Bem, é o que mais vezes o Novo Testamento da Igreja pede: estar em comunhão. E se isso é estar, agir em comunhão, é a sinodalidade. Estamos juntos e atuamos juntos, as duas coisas.
Nesse momento, depois do Concílio Vaticano II, insistiu-se muito na Igreja como comunhão, como koinonia, mas não se insistiu tanto no que agora se diz: precisamos caminhar juntos.
Penso que quando Bergoglio, ou Francisco, diz isso, provavelmente, quer retomar muitas coisas do que me parece, porque sobre isso conheço menos, que aconteceu na Assembleia de Aparecida. Então, caminhar juntos, mas caminhar todos juntos. E é isso o que é difícil. Porque quando vemos que somos uma maioria, os mais fortes, andamos mais depressa, deixamos gente para trás.
É preciso buscar que a realidade cristã seja para todos, conforme a medida de cada um, mas para todos. Então, eu acredito que a sinodalidade é um caminho aberto. E gostaria que funcionasse bem. Por isso, pediria aos que trabalham ou às que trabalham, que não sejam impacientes. Que procurem fazer como Jesus. Quando aparecia, todos corriam atrás dele. Não, paremos, paremos a comitiva, para escutar, porque, caso contrário, as coisas podem se deformar.
O caminhar juntos sofre barreiras quando não se admite que as mulheres tenham acesso a certos ministérios que ajudariam nisso: caminhar juntos e juntas. Você concorda?
Isso dependerá dos temas que a caminhada vai nos pedindo. É claro, suponho que no Chile também, mas na Europa um dos pontos hoje fundamentais nas reivindicações femininas é o ministério da mulher. Digo ministério, não sacerdócio, porque nem eu sou sacerdote. O sacerdote é Cristo. Eu sou um membro da Igreja, um seguidor da Igreja, um presbítero, um padre, mas eu não me considero sacerdote. De qualquer modo, tenho o sacerdócio de todos os cristãos.
Note, o Novo Testamento nunca usa a palavra sacerdote para os ministros da Igreja, nunca. Chama-nos de presbíteros, servidores, aqueles que trabalham para vocês. E as únicas vezes em que aparece a palavra sacerdote é para o povo sacerdotal, é todo o povo. Que isso fique claro.
Mas vamos lá, feito esse esclarecimento, o ministério da mulher. Eu não sou especialista, porque hoje todas as coisas têm tantas especialidades, que ninguém se atreve a falar. Apesar de tudo, a sensação que eu tenho é a seguinte: biblicamente, não há obstáculos para o ministério presbiteral da mulher.
Sobretudo, caso busquemos fazer o que os evangelistas fizeram ao escrever os evangelhos, que não é somente o que disse Cristo então, mas o que diria Cristo agora. E aí, alguns evangelhos se permitem acrescentar alguma palavra que Cristo não disse, mas que pensam que a diria agora. Portanto, a pergunta é, no caso do ministério da mulher, a pergunta não é o que Jesus fez então, mas o que Jesus faria agora. Parece-me que nisso não há dúvida.
Por outro lado, vejo que o Papa tem as mãos amarradas, pois João Paulo II, que nisso cometeu um grande erro, quis fazer uma definição dogmática disso, que Ratzinger parece tê-lo impedido, mas produziu aquele documento, em 1994, que dizia que isso era uma coisa já decidida, significada, acabada. E isso, apenas com vinte e poucos anos, acredito que ainda ata as mãos de Bergoglio.
Portanto, eu me atreveria a pedir um pouco de paciência, muito estudo e, sobretudo, o que disse algumas vezes: tomara que o Papa convoque todas as igrejas a um ano, a dois, de oração, para que cumpramos a vontade de Deus nesse ponto. Há um pedido que costuma sempre ser atendido, que é quando pedimos ao Senhor 'que eu cumpra a sua vontade'.
O tema do rosto de Deus é um eixo central em seu pensamento. 'Puebla' falou dos rostos sofredores de Cristo e 'Aparecida' foi na mesma linha. Na Assembleia Eclesial, fala-se em novos rostos gerados pela pandemia e o capitalismo.
Em primeiro lugar, Deus não tem rosto.
Bom, foi você, um grande estudioso do tema, que disse.
Sim, tenho um livro que se chama El rostro humano de Dios. Na segunda ou terceira edição, acrescentei um epílogo que se intitulava O Deus sem rosto. Se você tem a primeira edição e a terceira, aí está esta diferença. Por que digo isso? Porque se você notar, a bíblia fala de Deus, sobretudo das atitudes de Deus para com os outros. Isso é o fundamental. Claro, a atitude pode ser chamada de rosto de Deus, vale, mas acima de tudo é como Deus se comporta comigo.
Se fizéssemos um pequeno catálogo dos atributos de Deus, a única coisa que pode nos dizer é que Deus é infinito. Não mais. E quando entramos no infinito, não sabemos mais nada, temos que nos silenciar, porque tudo o que dissermos terá mais mentira do que verdade. De repente, é preciso salvar a menor mentira da maior mentira.
As experiências religiosas nos falam de Deus, no meu modo de ver, em três ou quatro grandes mudanças.
No oriente, é sobretudo o Deus dentro de mim, o que dizem os hindus, meu eu o Deus, que depois é ponderado, mas isso, com os cristãos, poderíamos dizer que é o Espírito de Deus em mim. O mais fundo em mim, o mais profundo de mim, é o Espírito Santo.
Em tudo o que foi o continente Ameríndio, Deus esteve muito presente como o Deus da natureza. Para mim, cabem os textos dos céus proclamam a glória de Deus, etc. E no que foi o ocidente cristão, esteve muito presente como o Deus da história. E o Deus da história é, no Antigo Testamento, o Deus Criador e Libertador. E no Novo Testamento, o Deus Amor.
Tudo isso são atitudes de Deus para conosco. E isso é o que devemos saber buscar. E quero acrescentar que essas três dimensões que defini como uma espécie de mapa, necessitam-se. Porque, note, um Deus no mais profundo de mim é uma grande verdade, mas se esqueço a história, ocorre o que está acontecendo na Índia, com os cristãos sendo perseguidos por ajudar os párias.
Um Deus na natureza é uma grande verdade, tanto que para o problema ecológico muito teria que ser recuperado daqui, mas se fico só com o Deus da natureza, não existe progresso e posso acabar como nesse mundo do altiplano boliviano, aos 4.000 metros de altura, onde parece que a natureza foi mais forte do que o ser humano e aí não houve progresso.
E se o Deus da História dispensa o da natureza, comete todo o pecado ecológico em que caímos. E se dispensa o do Oriente, então, a história se torna um projeto meu. São três coisas que precisam ser unidas.
Mas qual é o rosto? Como eu o vejo? Como eu o percebo?
Vamos colocar nele mais adjetivos do que qualificativos.
Um rosto amoroso, um rosto libertador e um rosto criador, no sentido de que faz você acreditar que Deus não cria fabricando, como nós. Na Bíblia, gosto muito quando se fala da criação, isso é notado por todos os exegetas. A Bíblia tem a intuição de reservar para Deus um verbo, que traduzimos por criar, que só é utilizado para a ação de Deus.
Por quê? Porque nós, homens, fazemos fabricando com um material prévio, pois eu farei com uma estátua de Michelangelo ou com uma música de não sei quem. Mas Deus faz fazendo com que as coisas sejam feitas. O que dá lugar a uma grande autonomia deste mundo, que também é uma coisa que vamos aprendendo com a história.
E é aí que superamos o Antigo Testamento e todas essas religiosidades que acreditam que o que aconteceu comigo foi enviado por Deus. Por favor, não. O que aconteceu comigo veio da trama das coisas históricas. Deus permite, na medida em que não intervém fazendo um milagrezinho, porque, caso contrário, estaria fazendo milagrezinhos a cada cinco minutos, mas Deus faz fazendo com que as coisas sejam feitas.
Além disso, o Deus Libertador é fundamental. Na mensagem que devemos receber do Antigo Testamento, e dos evangelhos, a libertação se mantém, mas é uma libertação a partir do amor, como Jesus, que, por misericórdia, transgredia o sábado e curava. E por misericórdia ou por igualdade não lavava as mãos, etc.
Como podemos discernir hoje, em nossas realidades, que Deus ‘faz fazendo com que as coisas sejam feitas’, conforme você afirma?
Com a oração que eu dizia antes. E uma oração que recomendo muito é: “Espírito Santo, venha a mim, de mil maneiras. Enche-me de Ti e esvazia-me de mim. Que eu conheça esta situação com o Espírito dentro de mim”. E então, uma vez que eu tento estar em comunhão com o Espírito, meu pedido é: “ensina-me o que tenho que fazer”. Que eu saiba qual é a vontade de Deus.
Depois, “dá-me força para agir assim”, porque certamente na hora da verdade, recuarei, falharei. “E além de me dar força, faça com que eu aja com desejo”, porque assim não serei um reprimido e um violento, mas, ao fazer isso com gosto, não invejarei os outros, nem me tornarei um fariseu, como aconteceu com os fariseus que cumpriam tudo, mas por obrigação e acabaram se sentindo superiores.
Esse é um pequeno detalhe sobre a oração, que vai nessa direção, pois acredito que o grande esquecimento da igreja ocidental, e a causa de muitas falhas dela, é justamente o esquecimento do Espírito Santo.
Você passou muitas vezes pela América Latina e conheceu de perto a Teologia da Libertação. Qual é a sua visão sobre ela?
Quando me classificam entre os teólogos da libertação, costumo dizer que me prestam uma honra que não mereço. O que procurei ser é uma espécie de ponte entre a teologia latino-americana da libertação e a teologia europeia, que também teve alguns arrebates, não se chamou teologia da libertação, mas, sim, a teologia política de Metz, e todas essas coisas.
Parece-me que a teologia da libertação foi um desses grandes dotes ou grandes graças, com um pouco de humor, se preferir, porque Deus tem seu sentido de humor. Assim como dizia Jesus, as coisas do Reino são vistas pelos pobres e os simples, mas não pelos ricos. Sendo assim, o que o mundo necessitava sobre o reino foi visto pela teologia da libertação, a dos pobres, a dos países terceiro-mundistas, etc., e não tanto pela teologia europeia. Nesse sentido, totalmente ao lado da teologia da libertação.
Mas como disse antes, não há nada que não nasça sem algum defeito, sem algum problema, sem algum perigo. E, por exemplo, uma crítica que pode ser feita à teologia da libertação é esta: nasceu com muita segurança histórica. Parecia que em vinte anos, tudo seria muito bonito. E não, não foi assim.
Nesta manhã, comentava com uma amiga nicaraguense, que está passando muito mal, uma conversa que tive, nos anos 1980, na Nicarágua, durante a Campanha de Alfabetização. Lembro-me de um jovenzinho, que deveria ter 17 anos, com ilusão ao me explicar o que iria ser a Nicarágua e como tudo caminharia bem. Eu lhe dizia: certo, mas cuidado, porque os Estados Unidos têm muito poder. Cuidado, porque os contras ainda estão aqui. Cuidado, porque os nove capitães precisam saber se entender. Ia lhe dizendo coisas assim. E, ao final, o jovenzinho se cansou e me disse: 'você é um ponderador! Você é um ponderador!'. De que pondero muito.
Hoje, pergunto-me sobre esse garoto, que já deve ter 55 anos, como deve ter vivido todo o drama nicaraguense. Ou seja, Deus quer que não existam pobres, isto é uma grande verdade. Isso significa que amanhã não haverá pobres? Isso depende de nós. Deus fará isso através de nós. Ganhamos consciência, ganhamos algumas coisas, evidentemente, uma parte da igreja aparece como muito próxima dos pobres. E não só no plano da caridade, no plano do cuidado, mas também no plano da mudança de estruturas.
Havia lá um teólogo protestante, suíço, que eu cito algumas vezes, que disse: 'o cristianismo tem uma grande caridade, mas sempre foi a caridade da enfermeira, agora nos puxa pela caridade do médico'. A enfermeira é muito necessária, cuida e traz alívio, e eu que estive hospitalizado sei muito bem, mas o médico elimina a sua doença.
E é isso o que a Igreja recuperou com grandes resistências, porque no Chile é provável que existam, em tudo o que resta de ranço pinochetista. Na América do Norte existem. Na Espanha também. E a grande dificuldade de Francisco é justamente, muito mais do que parece, a oposição silenciosa que está tendo.
Uma coisa é a vontade de Deus, e outra coisa é depois de amanhã, pela manhã, o mundo será (...). Pois não. É possível criticar isso. É possível criticar também, o que em parte é compreensível, que às vezes de tanto atender à mudança de estruturas, que era fundamental, nós nos esquecemos um pouco do que é a atenção às pessoas concretas.
Vivi na América Central e no México. Tantos homens que, além de mais ou menos pobres, eram autênticos alcoólatras, que não sabiam como se livrar do álcool. E nós os deixamos um pouco de lado. Fomos para o futuro e esquecemos a dor deste presente. E é aí onde muitas seitas norte-americanas fizeram o que os católicos não fizeram. Ajudar na saída do alcoolismo, a não maltratar sua esposa. Uma pena é que depois, em troca disso, essas seitas evangélicas norte-americanas são de um conservadorismo impressionante, defendendo o sistema capitalista, defendendo a propriedade privada exageradamente. A vida é complexa assim.
Estamos próximos de um Concílio Vaticano III?
Não sei. Algo é necessário, mas não sei. O Vaticano II já foi muito difícil, pelo grande número de bispos. Hoje, onde você coloca 3.000 pessoas? (risos). Talvez, chegar a um tipo de Concílio que seja um pouco como o Sínodo, esse, famoso, mas mais amplo e com um poder que seja deliberativo, não só consultivo.
É assim que eu imagino um Concílio. Porque, caso contrário, não sei como uma assembleia de 3.000 pessoas pode se entender. Mas essa é uma dificuldade puramente prática. Provavelmente, em breve, a Igreja precisará de algum complemento conciliar ao Vaticano II.
Agora, antes disso, é necessário que vá sendo preparado entre os leigos, entre a teologia, entre as comunidades cristãs, porque o Vaticano II pôde ser o que foi porque houve uma etapa prévia, pouco conhecida, de grandes teólogos, do movimento litúrgico, que se chamou de movimento patrístico, do movimento bíblico, e assim já havia um material que permitiu ter instrumentos para trabalhar.