04 Mai 2020
“Um farisaísmo católico equivaleria a um catolicismo não cristão. Parece inegável que o farisaísmo é a grande tentação de um certo catolicismo”, escreve o teólogo espanhol José I. González Faus, s.j., em artigo publicado por Religión Digital, 01-05-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Durante esses dias de confinamento, e por parte de dois ou três bispos, alguns poucos padres e um grupo de leigos de todo mundo, assistimos a uma recusa às normas do confinamento, exigindo a abertura dos templos e a assistência da missa, como um direito da liberdade religiosa e como obediência a um mandamento divino que obriga a celebrar a eucaristia em dias de preceito. Não duvido da boa-fé e boa vontade dessas pessoas. Por isso quero lhes propor essas reflexões.
Tenhamos em consideração que o confinamento não era somente pela própria saúde, mas sim, sobretudo, pela saúde dos demais. Pois bem, poucos dados são mais garantidos da vida de Jesus que o que ele fazia cura nos dias de preceito (o “Sabbat” muito mais sagrado para os judeus do que pode ser o domingo para nós). Essa foi uma das causas que motivaram a condenação de Jesus por blasfêmia. E a razão que davam contra ele parece bem válida: “tens seis dias para vir curá-los, não há razão para fazê-lo em dia de preceito”.
Ao que Jesus respondia perguntando: “pode se fazer o bem em dia de preceito?”. Ou “esta mulher também é filha de Abraão e passa 18 anos encurvada; tem, portanto, o direito de não esperar mais”. E em definitivo: “o dia santo foi feito para o homem, não o homem para o dia santo”. Esses que pregam desobedecer o confinamento para poder ir à missa, não deveria se perguntar se estão colocando o dia do preceito acima do homem?
Sabe-se ainda que o quarto evangelho, que fala tanto da eucaristia (em seu capítulo 6), não narra a sua instituição, mas sim busca dois recursos para lhe dar o verdadeiro sentido: o primeiro é o lava-pés, justamente naquela Santa Ceia. O segundo está nas palavras de Jesus no mesmo capítulo 6: antes de “comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem” é necessário (valha-se a expressão) “engolir Jesus”, isso é: aceitá-lo e segui-lo até o final e com todas suas consequências. E não é que alguns preferem “dar culto a Deus” ao seu modo, a seguir Jesus? Aí estaria o farisaísmo.
Finalmente pode valer a pena uma leitura lenta de todo o capítulo 23 de São Mateus, que é ao mesmo tempo uma pérola cristã e uma pérola literária: “Ai de vocês, fariseus, hipócritas...”. E deixar-se empapar por todas as descrições de farisaísmo que faz esse capítulo.
Aqui temos o que ousei chamar de justiça própria católica e que equivale a “catolicismo não cristão”. Esta última expressão é de Fernando de los Ríos, da Institución Libre de Enseñanza (que, entre parênteses, foi fundada por católicos fervorosos como Giner de los Ríos e Gumersindo Azcarate). Se for uma expressão muito dura, podemos falar de um “judaísmo ainda não cristão”: que substituiu o seguimento a Jesus pelo Sumo Sacerdote, o Templo e a Lei, que estão acima do amor fraternal universal, sobretudo daqueles que menos irmãos parecem ser.
De qualquer forma, parece inegável que o fariseu é a grande tentação de um certo catolicismo. O que é paradoxal, pois o catolicismo significa precisamente o universalismo. Mas aqui está uma particularidade absoluta. Portanto, não quero que essas linhas sejam um ataque, mas apenas uma reflexão fraterna. Aqueles de nós que já os compartilham podem nos ajudar a perguntar qual pode ser o nosso próprio fariseu, porque um dos ensinamentos mais excelentes de Jesus é exatamente isso: que todas as grandes causas estão ameaçadas por algum fariseu.
Lembremo-nos da frase de Jesus para a mulher samaritana: Deus não deve ser adorado aqui ou ali, mas “em espírito e verdade”. Portanto, sempre há a tarefa de dedicar um longo tempo de oração para nos abrirmos ao Deus que nos cerca, pedir luz e força ao Espírito que está profundamente dentro de nós e contemplar um pouco o caminho de Jesus que tantas vezes esquecemos. E será uma magnífica maneira de santificar o dia do Senhor.
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Farisaísmo católico? Empenhar-se em ir à Missa em tempos de confinamento? Artigo de José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU