“A abertura ao Mistério pode assumir a forma de um apelo ao meu íntimo, uma consciência da minha situação de dependência (mas dependência do amor), uma oferta de liberdade plena e um apelo ao amor mais desinteressado, sobre todos aqueles em quem a autonomia e o pecado da criação impedem o aparecimento da vontade amorosa do Criador (portanto, na vida de Jesus, os enfermos, os pobres e oprimidos foram os verdadeiros protagonistas)”, escreve o teólogo jesuíta José I. González Faus, em artigo publicado por Religión Digital, 28-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Qualquer acompanhante espiritual deve ter recebido várias vezes a pergunta de como fazer uma oração. Antes que uma resposta, estas linhas querem ser um convite. Dizem que a oração é algo como o respiro da alma. Talvez porque seja útil começar pela respiração do corpo: porque respirar é a atividade mais importante e mais inconsciente de todas as que fazemos. Vamos começar por fazê-la conscientemente.
Uma postura cômoda, mas não relaxada, mais vertical; tomar consciência do movimento de inspirar e expirar: lentos e até o fundo dos pulmões. Este movimento de repetir uma e outra vez, sem palavras. Na verdade (como dizia Jesus), na oração sobram as palavras, se são necessárias é somente para evitar nossas constantes distrações. Porém, a meta é um silêncio cheio, não um silêncio vazio. E que acabará sendo apenas silêncio exterior, mas não interior.
Tentemos preencher esse silêncio de pequenos mantras que procurem ser expressões de afetos e necessidades pessoais, bem breves e ditas lentamente (Te amo, quero te amar, obrigado, necessito tua ajuda, quero confiar em ti, diga-me o que devo fazer... ou alguma prece do Pai-Nosso).
Esse será o começo de um mero exercício que teria que procurar converter em hábito: os hábitos tornam fácil o que antes era difícil. Torna-se custoso, tenhamos em conta que a melhor definição da oração não é a de “falar com Deus”, mas sim de “buscar Deus” (Inácio de Loyola não temia dizer que de cem pessoas que dizer ter muita oração é provável que noventa não tenham). Portanto: convertamos a sensação de tempo perdido ou de distrações em uma demonstração prática de que isso de encontrar Deus me importa tanto que estou disposto a gastar todo o tempo e todo o esforço que precisar. Recordando a “Quimera do Ouro” de Chaplin, façamos nós uma autêntica “quimera de Deus”.
Quando essa respiração silenciosa (ou quase silenciosa) se torna um hábito, é muito provável que nos deixe com uma sensação profunda do mistério que nos cerca. Ao contrário do que é um mero “enigma”, o verdadeiro mistério continua a ser tanto mais mistério quanto mais se aprofunda nele: porque o mistério é infinito. Aquilo que chamamos de Deus é o Infinito. Por isso, quando queremos encerrá-lo em nossos esquemas ou ideias, o falsificamos e o tornamos um ídolo.
Essa percepção do Mistério que nos rodeia nos deixará com uma sensação de paz. De profunda paz. Então não iremos mais orar como quem vai a um exercício pesado e inútil, mas procurando essa paz. E essa busca já é um exercício de afeto não expresso.
Então, de acordo com diferentes tradições, mas válidas para todos, essa sensação do Mistério pode desdobrar-se de diferentes maneiras.
4.1
Para as tradições orientais, o Mistério está “dentro de mim”, na parte mais profunda de mim: descer até essa profundidade do meu ser equivale a encontrar o melhor de mim mesmo; E é isso que a oração cristã pede quando diz "Venha, Espírito Santo".
4.2
A tradição judaica sabe muito bem que o Mistério é o Criador e o Libertador. Criador significa que ele é a Fonte de tudo, mas de uma forma que é incompreensível para mim e não da maneira que posso fazer as coisas. Os teólogos debateram se seria melhor chamar Deus de Causa ou Fundação. E essa discussão, que não tem resposta, serve para mostrar que a ação de Deus é diferente de qualquer coisa que possamos imaginar: o acerto da Bíblia às vezes é comentado quando usa um verbo (barah) para a criação de Deus que nunca foi usado para obras humanas. As línguas latinas queriam torná-lo mais compreensível usando a palavra “criar” para obras de arte: como quando algum Mozart pega uma melodia e acordes que não estavam em lugar nenhum “do nada” ou Michelangelo tira um Moisés de um bloco de mármore onde aquele personagem não estava. Mas a intuição bíblica é ainda melhor.
Libertador significa que temos algo ou muita escravidão não reconhecida dentro de nós. O livro do Êxodo nos diz que os hebreus no Egito reclamaram da escravidão externa à qual o Faraó os sujeitou. Mas, contra todas as probabilidades, quando Deus chama Moisés para tirá-los do Egito e libertá-los, uma das objeções que Moisés faz é esta: “Senhor, eles não vão querer” (6, 12). Na verdade: é mais fácil para nós negar a escravidão externa do que buscar nossa liberdade interna.
4.3
Por fim, a tradição cristã acrescenta algo incrível a essas experiências do Mistério: que esse Mistério é Amor. Tanto que, por amor ao ser humano, e para nos aproximar plenamente a Ele, veio para viver o nosso a própria vida, tirando a fragilidade humana e expondo-se à nossa maldade, naquele “Impregnado” (ou “Ungido” = Cristo) de Deus, que foi Jesus de Nazaré.
Então a razão e as culturas humanas tentaram explicar isso e falavam de subsistência e natureza: uma língua que hoje nos escapa, mas era inevitável na cultura grega (e que deu origem a essa estranha expressão de “união hipostática”). Com certeza, se o cristianismo tivesse sido implantado na Índia, eles teriam falado de “advaita” ou “não-dualidade”: uma expressão que costumamos distorcer de nosso orientalismo barato, mas que vem nos dizer que somos apenas uma pretensão de advaita e que Cristo é a plenitude dessa não-dualidade que faz com que não sejamos (como acreditava Sartre) “uma paixão inútil”.
Resumindo: a abertura ao Mistério pode assumir a forma de um apelo ao meu íntimo, uma consciência da minha situação de dependência (mas dependência do amor), uma oferta de liberdade plena e um apelo ao amor mais desinteressado, sobre todos aqueles em quem a autonomia e o pecado da criação impedem o aparecimento da vontade amorosa do Criador (portanto, na vida de Jesus, os enfermos, os pobres e oprimidos foram os verdadeiros protagonistas).
Com esses contextos de fundo, todo esse hábito de respiração serena e profunda preencherá o silêncio com sensações afetivas e estados de ânimo que talvez necessitem alguma palavra para não nos distrairmos, como disse antes, porém sabem bem que toda nossa linguagem, por mais elaborada que nos pareça, não passa de algo assim como os sons que um bebê emite quando começa a falar e que somente sua mãe pode entender.
Tudo o que foi dito antes não foi mais que a afinação dos instrumentos que ouviremos em um concerto. Ficam agora as diversas partituras a serem seguidas: refletir sobre uma palavra de Jesus, ou imaginar uma cena evangélica, ou contemplar desde nossa interioridade a enorme maldade e o imenso sofrimento que há em nosso mundo, ou debulhar as palavras de alguma oração oral composta por outrem, ou simplesmente seguir estando degustando dessa sensação de Mistério. Aqui já não posso descrever mais estes caminhos que se poderá encontrar com facilidade quando esteja afinado com seu instrumental.
Mas gostaria de concluir com outra observação: o título que dei a essas reflexões é uma paródia do complicado “Convite à Valsa” de C. M. von Weber, que Berlioz posteriormente orquestrou e tornou mais acessível a nós, leigos. Ora, o título alemão da obra de Weber era propriamente um “convite à dança”, mas seus compassos têm aqueles harmônicos de placidez e sugestão, tão típicos da valsa, onde parece que, mais do que bailar, se era bailado; e suponho que é daí que vem o título espanhol. Queria dizer com aquela paródia que a oração pode se tornar uma espécie de descanso, plácido e sugestivo como a dança.
Sim. Mas uma dança que, na nossa situação de Aliança, nos leva à esperança e, de imediato, àquele esforço de “lavrar”.