Seja o que for, se trouxer uma pessoa a Deus é sagrado – mesmo se você goste ou não. Artigo de James Martin, s.j

Vista para o Oceano Atlântico na Casa de Retiros Eastern Point, em Gloucester, Massachussets. Foto: James Martin, s.j.

26 Novembro 2020

“Sempre que ouço pessoas que desprezam elementos da vida espiritual, ou pior, zombam delas, fico triste. Eu imagino as pessoas ouvindo essas críticas e descobrindo que algo que elas prezam – um hino, uma igreja, uma obra de arte - é algo que os “especialistas” dizem que não deveriam gostar. Ou que pessoas “mais educadas” ou “mais perspicazes” ou “mais espirituais” não aprovam exatamente aquilo que as aproxima de Deus. O que quer que aproxime uma pessoa de Deus é sagrado”, escreve o jesuíta estadunidense James Martin, em artigo publicado por America, 24-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o artigo.

 

“Essa árvore é muito importante para mim”, disse-me um jesuíta idoso, há 30 anos atrás. Nós estávamos na Casa de Retiros Eastern Point, em Gloucester, Massachussets, de pé no amplo gramado com vista para o Oceano Atlântico. Era um dia de céu limpo e o sol refletia na água. Ele apontou para a uma árvore solitária, não muito alta, inclinada para um lado, um pouco maltratada.

 

Novo para a vida espiritual, eu não tinha ideia do que ele estava me falando. O que é uma “árvore importante”? Eu resisti à vontade de rir ou fazer uma piada.

 

Meu amigo explicou que em um retiro de muitos anos atrás ele teve uma experiência espiritual profunda enquanto ficava embaixo daquela árvore. Agora, toda vez que ele ia para Gloucester, ele olhava para a árvore e recordava-se do que aconteceu. Não apenas a experiência por si só, mas a árvore tornou-se “importante” para ele.

 

Para mim, parecia outra árvore qualquer. Também havia árvores mais altas, mais nobres e melhores ao nosso redor: do tipo que você pode pintar, tirar uma foto ou colocar em um cartão de Natal. Mas não para meu amigo. Para ele, era esta pequena árvore que carregava todo tipo de significado, que ele me disse que não poderia nem mesmo descrever adequadamente. Agora, toda vez que vejo aquela árvore, penso no meu amigo, que morreu há 15 anos.


Foto: Pixabay

Ultimamente, tenho notado uma tendência crescente das pessoas em criticar muitas dessas “árvores importantes” na vida espiritual. É difícil perder todos os artigos que dizem que esse estilo de arquitetura de igreja é enfadonho, banal ou errado; que esse tipo de hino é banal, bobo ou não suficientemente reverente; que este tipo de – faça a sua escolha: autor, livro, forma de oração, prática devocional, escola de espiritualidade – não é católico o suficiente. A arquitetura modernista da igreja é uma “maldição”. Músicas como “On Eagle’s Wings” (Nas Asas da Águia, em tradução livre, música utilizada por Joe Biden no discurso de vitória) são “teologicamente vagas”. E assim por diante.

 

De gustibus, é claro. Mas uma questão mais profunda e séria é a crítica ou mesmo a condenação de coisas que têm grande significado espiritual para os crentes individualmente.

 

Minha infância católica nas décadas de 1960 e 1970 nos subúrbios da Filadélfia foi repleta de coisas que muitas pessoas agora julgam não apenas antiquadas, mas ruins: arquitetura moderna que é muito branda, hinos folclóricos que são ultrapassados, estilos de presidir serem rejeitados. É fácil rir dessas coisas.

 

Isso é fácil. Mas também pode ser perigoso.

Vinte anos como diretor espiritual, acompanhando uma grande diversidade de pessoas em suas jornadas espirituais, me ensinou muitas coisas. Uma das mais importantes é esta: Deus encontra as pessoas onde elas estão (mesmo essa citação merece crítica, acredite ou não). O que move uma pessoa pode, também, deixar a outra fria. O que me parece um livro enfadonho, um poema descuidado ou um pôster pode ser a própria maneira como Deus encontra outra pessoa. Ao ver as muitas coisas que movem outras pessoas, aprendi a não julgar. O Espírito Santo sabe melhor do que eu.

 

Nos últimos anos, ajudei a liderar peregrinações anuais à Terra Santa com mais de 100 pessoas. No final de cada dia, nos reunimos para compartilhar nossas experiências sobre o que nos moveu espiritualmente. É sempre uma fonte de admiração, até mesmo diversão, como diferentes eventos, lugares e, sim, igrejas e hinos, afetam as pessoas de forma tão diferente. “Fiquei tão comovido com a Igreja da Natividade!”, uma pessoa dirá. “Não fez nada por mim”, responderá outro. “Muito barulhento!”, se Deus encontra as pessoas onde elas estão, por que criticar os lugares onde Deus faz isso?


Foto: PxHere

A regra de reverência aplica-se a tudo na vida espiritual. Você gosta de rezar o Rosário? Eu também. Mas não julgo as pessoas que não o fazem (Santa Teresa de Lisieux disse que recitar o Rosário era tão difícil para ela quanto um “instrumento de penitência”). Tampouco digo que outras práticas devocionais não sejam tão “dignas”. Você gosta de missas? Eu também (minha paróquia da Igreja de Santo Inácio de Loyola em Nova York tem belas missas solenes). Mas eu não critico as liturgias nas “Missas em família” ou “Missas para jovens adultos”. Você gosta dos hinos dos Jesuítas de St. Louis? Eu também (e eu adoro “On Eagle’s Wings”). Mas não tento exaltá-los em relação a outros hinos.

 

Sempre que ouço pessoas que desprezam elementos da vida espiritual, ou pior, zombam delas, fico triste. Eu imagino as pessoas ouvindo essas críticas e descobrindo que algo que elas prezam – um hino, uma igreja, uma obra de arte - é algo que os “especialistas” dizem que não deveriam gostar. Ou que pessoas “mais educadas” ou “mais perspicazes” ou “mais espirituais” não aprovam exatamente aquilo que as aproxima de Deus.

O que quer que aproxime uma pessoa de Deus é sagrado – seja um hino folclórico como “All That I Am”, cantado por uma irmã com um violão, ou “Tantum Ergo Sacramentum”, cantado por um coro de mosteiro. Quer se trate de uma igreja de tijolos louros da década de 1960 com vitrais abstratos ou da catedral de Chartres com janelas altas que você pode encontrar em um livro de história da arte. Quer seja um santinho desbotado do Sagrado Coração que estava pendurada na cozinha de sua avó ou uma obra-prima de Caravaggio que você viu uma vez em uma Igreja em Roma. Seja um livro de Richard Rohr ou Scott Hahn. Todos os caminhos para Deus devem ser reverenciados.


Foto: PxHere

Portanto, sinta-se à vontade para gostar ou não gostar do que quiser em sua vida espiritual. Mas não se sinta à vontade para dizer a outras pessoas do que elas devem gostar ou não gostar. Porque o que você está fazendo é dizer como o Espírito Santo deve operar, e isso nunca é uma boa ideia.

Como um noviço jesuíta, eu estava cheio do excesso de confiança, porque o ingresso em uma ordem religiosa às vezes insufla uma pessoa. Mas fico feliz que, só daquela vez, indo contra meu orgulho, eu não ri quando meu amigo me falou sobre sua árvore favorita ou disse que ele deveria preferir outra. Ou enumere as razões pelas quais sua árvore não se equiparava a outra árvore mais alta e melhor a poucos metros de distância. A expressão em seu rosto quando viu aquela árvore me calou.

E agora, quando eu volto àquela Casa de Retiros, eu vejo aquela árvore, e ela é importante para mim, também.

 

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