29 Agosto 2020
"Talvez a resposta real é que Deus se alegra com as escolhas que fazemos. Que o mundo é cheio de incerteza, que ele ama o nosso desejo de fazer aquilo que é certo e que ama a nossa criatividade enquanto trabalhamos, junto dele, no nosso projeto de vida. Fazer uma boa escolha não significa que vamos evitar todo sofrimento ou que iremos prever todos as consequências. Significa que estamos usando os dons do intelecto e da vontade com os quais Deus nos presenteou e que, no próprio ato de usá-los, estamos glorificando-o", escreve Maura Shea, ex-professora de literatura e coordenadora do setor de alunos e ex-alunos do Instituto Witherspoon, em Nova Jersey. Escreve sobre literatura, educação e fé no sítio mysteriesandmanners.com. O artigo é publicado por America, 25-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Uma amiga minha estava em dúvida sobre se deveria visitar os pais no Dia das Mães. Sua colega de quarto estava voltando de um funeral em outra cidade, o que fez a minha amiga se preocupar com a possibilidade de contágio pelo coronavírus e, consequentemente, levá-lo para os seus progenitores.
“Acho que vou sair agora mesmo, antes da minha colega voltar”, disse ela. “Aproveito e fico lá a semana toda, até o Dia da Mães. Quero realmente ser uma boa filha”.
Mas, por experiências anteriores, a amiga sabia que às vezes ficar a semana inteira junto dos pais não lhe fazia bem emocionalmente. Ela queria ver a mãe, mas não ficar lá por tanto tempo.
“Gostaria muito de saber o que eu deveria fazer, qual a coisa certa”, falou.
Uma outra amiga minha está grávida e tem um filho de 2 anos. Ela e o marido não conseguiram ainda definir as fronteiras seguras quanto a visitar os pais dela, que querem estar em volta do neto neste período, e não se preocupam em contrair o vírus. Minha amiga tem medo de que os pais fiquem doentes.
“Por outro lado”, diz a amiga, “não quero continuar vivendo com medo. Sei que é importante para os meus pais ver Jack”. Qual a coisa certa a fazer?
Hoje, muitos de nós enfrentamos decisões parecidas e nos sentimos sobrecarregados com a sensação de querer fazer a coisa certa, mas também temos o medo de tomar o caminho errado.
Precisamos escolher muitas coisas: a saúde e a segurança, passar um tempo com os entes queridos, focar no trabalho, apoiar os negócios locais. Muitos de nós também nos sentimos chamados a anunciar a verdade na questão do racismo, participando via protestos e ativismo. Estas são coisas boas que bem podemos escolher, mas como e quando?
Penso que nós católicos, com a nossa ênfase no discernimento, às vezes temos a sensação de que deve haver uma resposta certa que Deus sabe e espera que descubramos.
Infelizmente, mesmo quando elevo a Deus, em oração, decisões difíceis como estas, percebo que raramente ele me dá uma diretiva clara. Frequentemente, parece que ouço o Senhor dizer: “Não tenha medo”. Mas estas palavras tranquilizadoras não se traduzem em algum curso imediato de ação.
Suspeito de que muitas vezes Deus quer, realmente, que eu escolha. Uma frase que não sai da minha cabeça: “A dignidade de sermos uma causa”.
Em algum lugar nas brumas distantes do tempo, na faculdade, provavelmente, li um escrito de São Tomás de Aquino sobre a relação entre a providência divina e o livre arbítrio. Aquino pensa haver uma distinção importante entre a causalidade primária (a causalidade de Deus) e a causalidade secundária, porém afirma que ambas são reais. Aqui, ele argumenta contra os que viam Deus como se esse estivesse manipulando o mundo como um titereiro controla as marionetes.
“[A] providência, que governa os inferiores pelos superiores, emprega certos seres médios; não por defeito do seu poder, mas pela abundância da sua bondade, que comunica a dignidade de causa, mesmo às criaturas” (Suma Teológica, I, q. 22, a. 3).
Com base na “abundância da sua bondade”, Deus concede a suas criaturas – em particular, a nós – a “dignidade de causa”.
Pensemos sobre isso. Ele nos deu a dignidade de sermos uma causa.
Por causa da criatividade divina, podemos ter criatividade também. Podemos produzir música e arte, jantares e relacionamentos. E somos realmente nós quem fazemos estas coisas. Não separados de Deus, mas com ele. A nossa causalidade secundária e a causalidade primária divina não estão em conflito. O que significa que podemos fazer escolhas. Escolhas reais.
Recentemente, perguntei a um padre quanto a ouvir as inspirações do Espírito Santo e saber quando devo agir sob uma inspiração que parece vir de Deus. Com gentileza e um sorriso, ele sugeriu: “Deus quer que cresçamos”. E acrescentou: “Quando São Paulo fala da maturidade plena em Cristo e da liberdade dos filhos de Deus, é isso o que ele quer dizer. Deus quer que vivamos em liberdade real. Quer que façamos escolhas”.
É claro que há momentos na vida em que fazer a coisa certa parece bem claro. E parte da confiança em Deus é crer que ele, de fato, nos dá as informações necessárias para que tomemos boas decisões.
Mas a paralisia católica em torno do discernimento não ocorre em momentos assim. Ela ocorre quando parece haver múltiplas escolhas certas e ficamos com medo de confiar em nossos próprios desejos ou em nossa capacidade de escolher com sabedoria.
Temos um precedente bíblico para ocasiões desse tipo também. Pensemos em Adão no jardim. Deus o deixa dar nomes aos animais. Que coisa poderosa, escolher um nome para uma outra criatura. No entanto, Deus confiou a Adão essa escolha, essa criatividade.
É conhecida a frase de Santo Agostinho: “Ame e faça o que desejar”. Ao amarmos, estaremos fazendo a vontade de Deus.
Deixando de lado o pecado, a imprudência para com o bem-estar do outro ou o egoísmo com respeito ao nosso tempo e nossos recursos, realmente pode haver um leque de escolhas dentro do reino da prudência para a minha amiga decidir quando visitar a família e para a minha outra amiga definir fronteiras junto aos pais. E Deus abençoaria quaisquer escolhas dentro deste leque de possibilidades. Na verdade, creio que ele iria se alegrar aqui – no exercício da causalidade propriamente delas enquanto ser humano.
Nestes casos ambíguos, geralmente nos sentimos paralisados porque, embora saibamos que não estamos escolhendo algo pecaminoso de forma consciente, mesmo assim vemos um leque de possibilidades e nos perguntamos sobre se há uma opção perfeita que talvez não estejamos percebendo. Porém, cheguei à conclusão de que a ideia de perfeição é um engano do “espírito maligno”, como diria Santo Inácio, que tenta nos afastar de tomarmos escolhas. Quando diz: “Sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu”, Cristo faz uma misteriosa comparação com aquele que, em sua liberdade misteriosa, sem imposição ou necessidade de nenhuma espécie, escolhe a partir da abundância de sua bondade para criar o mundo.
Nós também somos chamados à cocriação. Nós também somos chamados a exercer a nossa liberdade no amor.
Talvez a resposta real é que Deus se alegra com as escolhas que fazemos. Que o mundo é cheio de incerteza, que ele ama o nosso desejo de fazer aquilo que é certo e que ama a nossa criatividade enquanto trabalhamos, junto dele, no nosso projeto de vida. Fazer uma boa escolha não significa que vamos evitar todo sofrimento ou que iremos prever todos as consequências. Significa que estamos usando os dons do intelecto e da vontade com os quais Deus nos presenteou e que, no próprio ato de usá-los, estamos glorificando-o.
Isso não responde dúvidas específicas sobre quando será seguro visitar os nossos avós, se devemos nos juntar a uma manifestação pacífica, se podemos ir àquele retiro sobre a vida religiosa e o discernimento, ou ainda se devemos ir a um terceiro encontro. Mas é aqui que reside o ponto principal. Em muitos casos e mesmo em muitos casos de extrema dificuldade, Deus nos presenteou com a dignidade de responder.
Quando pergunta ao cego “O que quer que eu faça por você?”, Jesus realmente quer saber. Não é um conselho retórico. Ou quando diz: “E vocês, quem dizem que eu sou?”, ele quer que seus amigos lhe digam o que verdadeiramente pensam. Tudo bem que Pedro não tenha articulado perfeitamente a doutrina da Trindade, como mais tarde esclareceria o Concílio de Niceia. Jesus alegra-se com sua resposta, e com a nossa.
Portanto, rezemos. Conversemos com um amigo ou amiga. E, fundamentalmente, consideremos que Deus nos presenteou com a dignidade de sermos uma causa e se alegra com as nossas escolhas.
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O discernimento pode ser difícil, mas Deus alegra-se com nossas escolhas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU