Por: Jonas | 18 Outubro 2012
Miguel Anxo Pena é o bibliotecário da Universidade Pontifícia de Salamanca. Acostumado a trabalhar com as obras e os manuscritos de grandes autores do século XVI, afirma que ainda são atuais. “Suárez e Vitoria continuam sendo referências, e não apenas para o mundo das ciências eclesiásticas”. O autor de “La Escuela de Salamanca: de la monarquía hispánica al orbe católico” assegura que os célebres doutores da história Pontifícia de Salamanca teriam muito a contribuir, inclusive sobre a conjuntura econômica que estamos vivendo.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 09-10-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Com esse nome e esse sobrenome, evidentemente é galego.
Sim, de Vigo. No momento me pediram para vir aqui, num procedimento de responsabilidade que compete a alguém assumir a partir do âmbito docente, sempre muito afim ao mundo do livro. O reitor propôs tornar-me responsável deste trabalho durante algum tempo.
Estudou aqui?
Sim, sou antigo aluno da universidade e professor da Faculdade de Teologia e Direito Canônico.
Você é religioso?
Sim, sou religioso capuchinho.
Você sente a presença de Suárez, Vitoria e outros grandes nesta biblioteca?
Sim. Não apenas na biblioteca, mas em toda Salamanca, o pensamento marco do século XVI, com essa abertura e essa interdisciplinaridade, torna-se uma referência. De certo modo, é o papel da Pontifícia ser a garantidora dessa tradição, do que seriam as ciências humanas. Temos alguns documentos que favorecem a presença de toda esta tradição, como as lições de Vitoria, o manuscrito da Summa... documentos daquela época e anteriores. A biblioteca é uma instituição muito ampla, que acolhe o arquivo histórico da universidade e o arquivo geral. Um dos grandes fundos provém do Colégio de São Vicente, o mosteiro dos beneditinos. É uma tradição de documentos que, desde o século XIII, temos conservado.
Antes da fundação da própria universidade?
Não. A Universidade de Salamanca é mais do que o lugar da fachada plateresca. Há uma série de colégios e centros ligados à universidade, onde num primeiro momento estariam dominicanos e franciscanos, e depois outra série de instituições. É uma federação.
As ordens religiosas marcaram os inícios da Universidade?
Sim. Em primeiro lugar, franciscanos e dominicanos, e depois o selo jesuítico. Porém, foram confrontados. É necessário ver como foi construído este edifício, deixando os dominicanos abaixo, ao mesmo tempo em que a torre da catedral fica parelha às torres da clerezia. Era uma questão de imagem, não apenas um grande edifício e uma grande estrutura.
Ou seja, o marketing já funcionava na época?
Sim. A Universidade marcava algumas horas para as lições, e era assinalado que nenhum centro, vinculado à Universidade, podia explicar a mesma coisa. Os jesuítas começavam um semestre antes, com aquilo que ia ser explicado na universidade. Assim, captavam um modelo de alunado potencial muito forte.
O que Vitoria ou algum dos grandes de Salamanca pensariam hoje, vendo pelos corredores estudantes negros, gente da América Latina...?
Acredito que não seria um problema. Podemos pensar que, em pleno século XVI, Salamanca teve um reitor proveniente do México. O reitor sempre era um estudante, que também era leigo. Uma realidade relacionada. A internacionalização já estava presente na época de Suárez e Vitoria.
Então, há certas chaves que continuam atuais?
Sim, eu acredito que não saem da moda. E por isso estes autores continuam sendo uma referência. E não apenas para o mundo das ciências eclesiásticas, mas também para o econômico. Em grande parte, por exemplo, Adam Smith vive à custa do pensamento salmantino, ou seja, está vivo. É uma realidade presente, por sua vez uma tradição que somos obrigados a manter, a cuidar e a enriquecer.
Dá a sensação de que resiste bem a passagem do tempo.
Há um grande desafio, que é unir essa história ao presente. Isto requer personalização na formação, acompanhamento atento e personalizado de nossos alunos, e formação interdisciplinar. Na filosofia, no direito, na história, em teologia... porque são campos que estão estreitamente vinculados, embora depois possam parecer que são independentes.
Para ser competitivos precisam oferecer um produto especial, original. Qual?
Sim, sem dúvidas temos que oferecer um produto diferente, mas nossa tradição é original e distinta em si. Em Salamanca contamos com a vantagem de ter bibliotecas antigas onde estão todos os livros que eram conhecidos nesse momento, e grande parte dos manuscritos.
Pode continuar presumindo o oferecimento de pensadores ou o nível de intelectuais, teólogos, etc., caiu como em todas as partes?
As gerações terminam e outras começam. Eu acredito que em Salamanca, e na Pontifícia em especial, está surgindo uma geração para ganhar destaque. Contudo, isso leva seu tempo. Eu estou convencido de que temos gente de grande valor que fará uma contribuição significativa, tanto no marco intelectual como no eclesial.
Quer dizer que a geração intermediária falhou?
Não sei. Toda universidade tem uma estrutura muito hierárquica, e enquanto alguém está no posto, não há lugar para outro. O reconhecimento depende um pouco dessa função institucional. Porém, não há dúvidas de que, neste momento, o corpo docente que está sendo formado assume seus desafios e suas responsabilidades no mundo intelectual sem nenhum problema, e de forma significativa. Na Pontifícia, outro desafio que temos é o do diálogo com outras universidades espanholas, no mundo da pesquisa. Ou seja, estar presentes em congressos, dialogar sem nenhum tipo de medo e com a seriedade de um trabalho objetivo.
Em seu livro “La Escuela de Salamanca: de la monarquía hispánica al orbe católico”, você reúne toda a história da USPA?
Bem, não é toda a história, é uma leitura. É um trabalho historiográfico que foi parte de minha tese de doutorado, no qual tento destacar como os temas que já foram estudados permitem, não obstante, outras leituras. O conceito “Escola de Salamanca” evoluiu no tempo e, inclusive, foi manipulado. Portanto, temos que fazer uma leitura autocrítica dos argumentos. Quando se opta por uma opção, isto não é ingênuo. Esse é o delineamento do trabalho.
De todas as figuras que circularam pela Pontifícia, com quem você ficaria?
Entre esses autores, para mim há uma figura que é muito relevante: Domingo de Soto. Francisco de Vitoria é o autor mais conhecido, mas Domingo de Soto foi o que deu forma atenta e calada a uma série de documentos e apreciações nesse jogo de forças. Soto escreveu um “tractatus” onde colocou em diálogo a teologia e o direito, o que se converteu numa referência ao longo da história. Portanto, parece-me que é um autor que fica num segundo nível, sendo que é um dos grandes. Aqui, e em diferentes lugares de Salamanca, suas obras são conservadas.
Além da história, sua outra vertente é a teologia. Fez a tese sobre o quê?
Um tema muito ligado ao pensamento hispânico: a escravidão negra no século XVII. Em concreto, há capuchinhos que promoveram a liberdade dos negros nas índias ocidentais, na América. Isto fez com que sofressem o cárcere eclesiástico e civil, e a lutar no reconhecimento do negro como homem. É o primeiro movimento da história que faz isto, embora seja bastante desconhecido. Em relação à liberdade dos negros, sempre apresentamos o tópico dos ilustrados franceses, mas, por exemplo, Voltaire tinha escravos para seu serviço pessoal. Estes homens lutaram pela liberdade dos negros e foram presos por isso. O mais interessante é que promovem dois tratados nos quais declaram o negro como homem (portanto, até aquele momento estavam sendo considerados bárbaros, não humanos). E, portanto, não tinham direitos.
Contudo, nessa época, havia dúvidas se eles tinham alma?
A questão não era a alma, talvez isso seja um tópico que nós utilizamos hoje para rirmos do tema. O caso é que apenas eram objetos de deveres, não de direitos. Isso é o mais importante, porque em termos de direitos humanos é equivalente a avançar uns 80 anos. Uma coisa é a libertação daquele que é escravizado, outra é a condenação de uma etnia pelo simples fato de ser negra. Isso é muito mais profundo.
Essa libertação continua em marcha?
É claro, de múltiplas maneiras.
Você também é especialista em São João de Ávila?
Aproximei-me desse tema colaborando em sua proclamação como Doutor da Igreja.
Porque demorou tanto ser proclamado doutor?
É difícil resumir, mas há uma série de temas que me parecem importantes: no mundo universitário, João de Ávila é um homem preocupado com a educação, que inclusive chegou a desenvolver um método próprio. Gerou uma estrutura de colégios para formar as pessoas sem recursos, que não tinham outras possibilidades de formação. É muito interessante o fato de que tenha gerado uma rede institucional de colégios independentes, em que cada um tinha uma responsabilidade e respondia por ela. Isso foi muito importante numa época e num contexto concreto, como era o de Andaluzia. Isto é uma referência interessante para nosso presente.
Por outra parte, João de Ávila é um homem que chega a todos: ricos, pobres, homens mais e menos cultos. Isto é o almejado em nosso presente: que sejamos capazes de se conectar com toda a sociedade, com a linguagem dessa sociedade e com as preocupações da sociedade. Santa Teresa chamou o momento que ela vivia de “os tempos intensos”. Temos expressões de São João de Ávila dizendo o mesmo, que são tempos difíceis. A menção de que esta era uma época obscura, foi feita em todos os tempos. É preciso saber responder crítica e objetivamente às necessidades de cada momento histórico.
Ele também mereceria ser proclamado patrono do clero?
Oxalá! Ele é uma figura ampla e múltipla, como o clero tem que responder a múltiplas necessidades, bastante diferentes. Será difícil encontrar uma figura que tenha respondido a isso tão facilmente.
O que você está pesquisando atualmente?
Estamos trabalhando sobre um manuscrito de Vitoria, também trabalhando com a universidade pública, e reconstruindo o que era a Universidade Pontifícia dos séculos XIII e XIV. Trabalhamos muito o século XVI salmantino, mas a Universidade começa em 1218, assim necessitamos conhecer a etapa prévia. Essa também é uma etapa eminentemente pontifícia, e isto às vezes é esquecido.
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“Suárez e Vitoria continuam sendo referências, e não apenas para o mundo das ciências eclesiásticas”, afirma Miguel Anxo Pena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU