As identidades de Jesus no Novo Testamento

Foto: Cathopic

09 Agosto 2021

 

"A obra de Penna é um pequeno livro denso, que destaca de forma sintética a riqueza da personalidade de Jesus, que se tentou expressar com uma variedade de títulos e de temáticas que abraçam o Antigo Testamento, o Judaísmo e a cultura helenística. Por último, as fórmulas originais do final do século I concorrem para delinear de forma inédita a figura de Jesus, que certamente foi "o judeu que morreu cedo demais", mas também muito mais", escreve Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 04-08-2021, comentando o livro Le molteplici identità di Gesù secondo il Nuovo Testamento [1], de Romano Penna. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Identidade e interpretações

 

Sobre a identidade do “Judeu que morreu cedo demais” (F. Nietzsche) se desenvolvem nos primeiros vinte anos da Igreja primitiva muito mais interpretações do que aquelas desenvolvidas nos sete séculos seguintes. Uma verdadeira "rosa dos ventos" de títulos, desenvolvida primeiro no âmbito judaico-cristianismo e depois cada vez mais independentes dele, pode ser encontrada nos textos do NT. É a investigação que o emérito de Exegese do Novo Testamento da Faculdade Lateranense e ainda professor em muitas faculdades teológicas italianas quis realizar de forma sintética, mas exaustiva.

 

A teologia cristã primitiva foi essencialmente uma cristologia, ou seja, a busca para enquadrar a figura de Jesus no âmbito das categorias bíblicas disponíveis no Antigo Testamento. Mas Jesus não é uma figura que pode ser encapsulada em uma definição pura e simples. É preciso aceitar o fato de que a verdade existe na diversidade. A unicidade do significado não exclui uma multiplicidade de significantes e a verdade por sua vez nos é dada conhecer apenas como interpretação, além do mais, variegada.

 

A atividade de Jesus na Galileia teria sido pequena, reduzida ao âmbito local, se o grande acontecimento do "terceiro dia", a sua ressurreição, não tivesse intervindo. Por isso, Penna afirma que os nascimentos do Cristianismo foram dois: o primeiro, quando Jesus começou a pregar publicamente o reino de Deus e a realizar sinais e prodígios de salvação; o segundo, quando os discípulos de Jesus, com base em uma experiência pessoal, anunciaram sua ressurreição/exaltação. O "querigma pascal representou um verdadeiro big bang, que não só desencadeou um empenho de testemunho e de anunciação evangélica antes impensável, mas deu origem a toda uma série de hermenêuticas cristológicas igualmente originais" (p. 10).

 

 

A vertente judaico-cristã

 

Penna primeiro analisa a vertente hermenêutica exclusivamente judaico-cristã. O judaico-cristianismo ou "nazareísmo" representa a primeira fase da fé pascal e é encontrado em alguns textos dos Evangelhos sinópticos, incluindo o relato pré-marciano da Paixão (Mc 14,43-15,47) e em alguns relatos tanto dos Atos como de Paulo. É uma perspectiva cristológica por si só, que de fato não terá relevância dentro dos escritos do NT.

 

Uma primeira qualificação judaica é a de Jesus como "Emanuel", típica de Mateus. O “Filho do homem” não pertence à linguagem da fé da Igreja, mas está presente em Dn 7,13-14 e nos livros de Enoque, onde, além dos títulos de Justo e Eleito, assume também a qualificação de messias sobre-humano. Ele existe junto a Deus desde antes da criação e tem a tarefa escatológica de realizar o grande juízo em nome de Deus. Sua frequência na boca de Jesus denota que não era uma figura desconhecida. Nos Evangelhos essa figura virá no fim dos tempos, mas tem o poder de remir pecados desde agora e terá que enfrentar o sofrimento (uma característica menos conhecida que e que podia despertar incompreensão). Com essa "qualificação indeterminada, Jesus modifica as concepções messiânicas da época: isto é, mesmo sem usar sempre um título adequado, ele ainda alude ao papel personalíssimo que sabia ter que desempenhar para implementar o plano de Deus" (p. 16).

 

Na fonte dos ditos ("Q"), que reúne os ditos de Jesus mencionados em comum por Mateus e Lucas, aparecem os títulos de "Mestre" e "Profeta". A cristologia de Q tem uma dimensão sapiencial e profética. Jesus aparece como um sábio que pede aos seus discípulos um comportamento ético exigente e particular. Ele é o mestre da comunidade, com traços comuns com a Sophia que, na tradição sapiencial, encontra também a rejeição.

 

O título "Profeta" aparece apenas quatro vezes, mas Jesus aparece como aquele que, com João Batista, açoita "esta geração" incrédula e é rejeitado. Os títulos cristológicos de Q (além da ausência quase total de Profeta e de Cristo) são "filho do homem", "o que vem", "filho de Deus", "Senhor", "sabedoria". Todos têm um caráter funcional em relação à missão de Jesus e um aspecto escatológico.

 

Como Justo sofredor Jesus é apresentado no relato pré-marciano da Paixão. Nele faltam tanto as confissões cristológicas explícitas quanto a interpretação soteriológica dos sofrimentos e da morte de Jesus. A frase do centurião "verdadeiramente este homem era (um) filho de Deus" não deve ser enfatizado.

 

 

O relato não desenvolve uma teologia crucis, mas tem uma cristologia específica que pode ser qualificada como cristologia do justo sofredor e se baseia na definição do relato como passio iusti. Jesus realiza um tipo, exemplifica um esquema geral (cf. Sl 22; Is 53 e Am 8). No judaísmo da época, a figura do Servo sofredor não fazia parte das expectativas messiânicas. À figura do Servo também pertence a definição de "O Justo" e "O Santo" presente apenas nos Atos. "O Santo" não tem uma tradição messiânica no Judaísmo, enquanto aquela de "O Justo" sim (Is 53,11; Enoque Etíope 38,2).

 

Um traço de adocionismo pode aparecer no versículo prepaulino de Rm 1,3b-4a, segundo o qual Jesus se torna o Filho de Deus somente com a ressurreição. Paulo o integra com a afirmação de que tal era antes mesmo da encarnação.

 

Os títulos judaico-cristãos não são retomados nas outras vertentes hermenêuticas do NT; são retomados no século II para depois desapareceram no século IV.

 

O patrimônio comum da fé cristológica

 

O patrimônio comum da fé cristológica começou com a ressurreição ou ressuscitação de Jesus e depois refletiu sobre o valor único de sua morte, à qual foi reconhecido um valor soteriológico ("Cristo morreu por nossos pecados", 1 Cor 15,3). “O valor reconhecido à sua morte é o fruto da fé na sua ressurreição, com a qual Deus vindicou o crucifixo para si (Atos 2,36)” (p. 29).

 

Penna examina o título de "Cristo", que só pode ser explicado com base na tradição judaica e, em particular, na descendência davídica. O estudioso lembra o fato de que "um justo tenha sido designada como Messias com base na ressurreição dos mortos é absolutamente desprovido de analogia" (p. 30, cit. M. Hengel).

 

Segue-se a análise da qualificação de Jesus como "Senhor" (cf. o arcaico Atos 2,36 e Fl 2,6-11). Distinguindo Deus como ho Theos e Jesus como ho Kyrios (cf. 1Cor 8,6) a dignidade particular de Cristo é evidenciada, sem afetar o monoteísmo do Shema'. O título coloca Jesus no nível da divindade. A esse título será posteriormente associado o domínio cósmico universal (Atos 10,36), o eclesiológico ("Senhor nosso”) e o escatológico como o Senhor vindouro, que o Antigo Testamento atribuía por si ao Deus de Israel (cf. 1Cor 1,8).

 

Romano Penna, Le molteplici identità di Gesù secondo il Nuovo Testamento (Piccola biblioteca teologica 138), Claudiana, Torino 2021, pp. 80, € 10,00, ISBN 978-88-6898-319-2 (Foto: Divulgação/Editora Claudiana)

 

“A condição de Filho de Deus [...] foi percebida e confessada pelos seus discípulos certamente a partir da Páscoa. Não é certo que o tenham feito durante a sua vida terrena; aliás, pode-se considerar provável que, ao nível de Jesus, nunca o tenham proclamado como tal” (p. 33).

 

O Quarto Evangelho tem um comportamento linguístico diferente e abunda no título de "Filho/Unigênito" (este último apenas no corpus joanino). O "significado cristológico dos textos joaninos, embora possa ser colocado em um contexto de tradição judaica, é, no entanto, original. De fato, afirma-se a identidade de natureza entre aquele que envia/Pai e o enviado/Filho” (p. 34).

 

Falar de fé de diferentes maneiras

 

Demos uma exemplificação da maneira de proceder de Penna, rico em dados, citações, avaliações. Impossível resumir, exceto brevemente.

 

No cap. 3 ele estuda alguns títulos e temáticas que coexistiram de forma magmática nas primeiras comunidades e que depois explodiram de forma diferente e, ao que parece, também contrastada.

 

É estudado o significado cristológico do tema da Sabedoria (cf. 1 Cor 1.30), que teve seu ápice na tradição pós-paulina, especialmente nos hinos que denunciam uma origem culto-litúrgica. A definição de Jesus como Sabedoria é jogada no registro ontológico (Jesus como imagem do Deus invisível) e dinâmico (Jesus mediador ativo da criação de todas as coisas). Este aspecto representa um desenvolvimento cristológico sucessivo ao estágio mais arcaico.

 

A qualificação cristológica expressa com a metáfora do Cordeiro é de origem e conotação judaica. Os primórdios estão em 1Cor 5,7; depois se passa a At 8,33 e a 1Pd 1,19 para chegar a Jo 1,29,36. Sua tematização ocorre sobretudo no Apocalipse. A metáfora contém a ideia de purificação, para alcançar com o Apocalipse a dimensão de um sacrifício redentor e do Vitorioso atual (Ap. 5,6) e do Esposo escatológico (19,7.9. 21,9).

 

 

Rm 3, 25 expressa a temática de Jesus como instrumento de misericórdia, por meio do qual se realiza a redenção/expiação realizada pelo Pai. Essa perspectiva também está presente em Atos 20,28, Mt 26,28, Ef 5,2 (nesta última passagem os termos do culto de oferenda e sacrifício são aplicados à morte de Jesus). Paulo frequentemente emprega a preposição hyper/a favor de, mas personalizando os destinatários da redenção (nós-vós-todos-os ímpios). Ele dificilmente conecta isso com o impessoal "pelos pecados". Paulo nunca qualifica a morte de Jesus como sacrifício, mas a partir do âmbito profano a define como resgate, libertação, redenção, reconciliação.

 

O tema de Jesus como sacerdote é típico da Epístola aos Hebreus. O sacerdócio de Cristo é existencial e permite o acesso de todos ao Pai com a purificação das consciências aqueles que lhe obedecem. Jesus é um sacerdote misericordioso para com os irmãos e digno de fé para com o Pai (Hb 2,17). Jesus raramente é apresentado como Juiz (At 10,42; 17,31; 2Tm 4,8; Tg 5,9). Na maioria das vezes, aparece como Intercessor 1Ts 1,10; 5,9; toda a Epístola aos Hebreus; cf. 4,16). Jesus intercede por nós também de acordo com Rm 8,34; Hb 7,25 (cf. Rm 8,37). 1 Jo 2,1 apresenta Jesus como nosso parakletos junto ao pai.

 

Superação da Torá

 

Foi Paulo quem advertiu que em Jesus a configuração sociorreligiosa do Judaísmo era desestabilizada. A Torá era superada. Ele via que a Torá estava sendo posta em perigo como fator determinante da identidade judaica: “se, por um lado, o Messias estava agora positivamente conectado com aqueles que ignoravam a Lei e com os pecadores, evidentemente a Torá não era mais necessária; se, por outro lado, para ser justos diante de Deus, era preciso acreditar em Jesus, a Torá não era mais suficiente” (p. 46). O Messias e a Torá eram colocados em dois polos no mínimo paralelos, senão alternativos. Ao atribuir a Jesus "o conceito de Sabedoria pré-existente com sua vinculada função mediadora, a função de ordenação da Torá deve agora ser considerada superada" (p. 47). A comunidade cristã pode não ter percebido imediatamente as implicações da mensagem sobre a relação Jesus-Torá. O fariseu Saul reconheceu que aquela mensagem agora atribuía um papel central ao Messias mais que à Torá e, portanto, realizou passos decisivos para salvaguardar o Judaísmo daquele perigo. O que ele escreveu mais tarde em Rm 10, 4 é significativo: “Fim /telos [“ o fim ”?; “a finalidade”?] da Lei é Cristo”.

 

Fundamento e primazia

 

Jesus também foi definido como "Fundamento/Themelios" e "Cabeça/Kephalē", por ser base e vértice. 1Cor 3,10-14 o apresenta não como um "fundador" (relegado ao passado), mas como constante "fundamento" da comunidade, "pedra angular".

 

A metáfora de Cristo, Cabeça, é colocada em um plano eclesiológico e é exclusiva de Colossenses e Efésios. No plano fisiológico, Jesus Cristo é visto como cabeça que tem função vital para o corpo humano, no nível "político" com função de comando como líder de um conjunto. Cristo é cabeça da Igreja na medida em que lhe dá energia e vida e é cabeça no sentido de autoridade cosmológica, na medida em que está acima de todo o universo (Cl 1,16; Ef 1,10) e, principalmente, de todos os poderes ímpios (Cl 2,10.15; Ef 1,21). Em Ef 1,22 afirma-se que Deus "o deu à Igreja como cabeça de todas as coisas", no sentido que é a Igreja que reconhece Cristo como pantokràtor de quem nada nem ninguém se subtrai e o admite como parte da sabedoria cristã (sobre isso, Ef 1,8 s.)" (p. 48).

 

Após a Páscoa, Jesus foi visto junto como "Aquele que vem/ho erchomenos"(Ap 1,7; 2,5.16, etc.) assim como o Esperado por ser o libertador definitivo (1Ts 1,10; 5,9),"bem-aventurada esperança"(Tt 2,13): a vida cristã se desdobra toda na espera de sua vinda e Jesus é invocado com a fórmula aramaica /"Senhor Nosso, venha" (1 Cor 16,22; cf. Ap 22,20 [corrige Ap. 16,22!]) (p. 49).

 

As expressões mais raras da fé cristológica

 

No c. 4 de sua obra, Penna estuda as expressões mais raras da fé cristológica. São "sete definições de Jesus que, em relação ao Judaico-Cristianismo primitivo, são acessórias e substancialmente estranhas a ele [...] elas não pertencem à primitiva ‘rosa dos ventos’ da hermenêutica Judaico-Cristã, mas são acrescentadas como perspectivas novas ou, pelo menos, originais” (p. 51).

 

Novo Adão” pode resumir a temática paulina de Rm 5,12-21. O tratamento realizado por Paulo neste texto não é "adamológico", mas parte da ressurreição de Cristo para afirmar a ressonância própria da obra redentora realizada por Cristo em relação à morte e ao pecado. É Cristo quem atrai Adão para si, e não vice-versa. As noções de Pecado e Lei contidas no texto pertencem, a primeira à tradição enóquica (Pecado como dado universal, independente da vontade do indivíduo e anterior à transgressão de qualquer preceito), a segunda recebe uma avaliação negativa por não garantir a salvação escatológica se permanecer alternativa a Cristo.

 

O título "Salvador" aparece nos últimos textos do Novo Testamento. O Messias nunca é definido como tal, mesmo em escritos extra-bíblicos. Lucas o utiliza uma vez em sentido teológico e três em sentido cristológico. Raramente aparece em João. Encontra-se nas mais recentes cartas paralelas Judas-2Pd, tanto no sentido teológico como sobretudo cristológico (cf. 2Pd 1,1.11; 2,20; 3,2.18). O título é particularmente típico das cartas deuteropaulinas: além de Ef 5:23, é encontrado dez vezes nas Pastorais (1Tm 1,1; 2,3; 4,10; 2Tm 1,10; Tt 1,3-4; 2, 10,13; 3.4.6).

 

 

Observações semelhantes se aplicam ao uso cristológico do verbo “rhyomai/redimir”. No NT tem uso teológico e somente em 1Ts 1,10 tem claramente um sentido cristológico. Em outros lugares paulinos é Deus quem intervém "mediante Jesus Cristo nosso Senhor" (Rm 7,25; provavelmente também 11,26). O título pertence aos estratos mais recentes do NT e tem uma semântica substancialmente teológica. A aplicação a Jesus nas Pastorais ocorre quatro vezes (2Tm 1,10; Tt 1,4; 2,13; 3, 6), enquanto nas restantes seis recorrências tem significado teológico.

 

A função de Jesus como "Mediador/mesitēs" é atribuída a Jesus em 1Tm 2,5, talvez em 1Cor 3,23 e especialmente em Hb com termos sacerdotais em conexão com a sua morte (Hb 8,6; 9,15; 12,24: com "o sangue purificador"). A colocação intermediária entre os homens e Deus faz de Jesus um mediador, um conceito que anda de mãos dadas com o de sacerdote e reconciliador. A função mediadora de Jesus é típica de Hb, em que Jesus é o mediador "de uma aliança melhor/nova" (Hb 7,22; 8,6; 9,15; 12,24), tanto porque ele evita os sacrifícios rituais, quanto porque realiza uma comunhão mais pessoal com Deus inscrita nos corações.

 

Jesus também é visto como "Primogênito entre muitos irmãos" (cf. Rm 8,9) e "Primogênito" (Lc 2,7). O título expressa a finalidade e o resultado de uma predeterminação divina, implica um componente de predileção, uma relação de fraternidade estabelecida entre os cristãos e o fato de que "a intenção original de Deus, seu projeto, é criar nada mais que uma comunhão e precisamente uma família, tornada concretamente possível pela filiação única de Jesus Cristo e pela participação nele por parte dos cristãos” (p. 57). Os cristãos são irmãos por uma adoção que os coloca em uma intimidade insuspeitada com Cristo e com seu Pai.

 

Jesus também recebeu o título de "Amem" (Ap 3,14), com o significado de "o fiel, o confiável".

 

Ele também é o Logos, um título usado por João. Ele vai muito além dos títulos tradicionais e enuncia definições originais muito fortes. O Logos era Deus, ele compartilhava a divindade do Theos/Deus, é mediador de toda a criação e se tornou carne. Aproximar "Logos" de "carne" parecia escandaloso na época.

 

Um tema típico joanino afim é o do Revelador celestial, com a temática do envio, descida, ascese-retorno, visão e escuta o Pai, verdade comunicada, luz e iluminação, rejeição.

 

Em João estão presentes alguns "eu sou" acompanhados por predicado e quatro vezes em forma absoluta (Jo 8,24,28,58; 13,19). Estamos "diante da expressão de uma ontologia cristológica, a mais elevada do Novo Testamento" (p. 61) junto com a de Deus/Theos. Os textos com a divinização de Jesus não passam de um par (Jo 1,18; Tt 2,13).

 

Ao âmbito da divindade de Jesus pertence também a ligação entre cristologia e cosmologia que vai além dos textos sobre a mediação de Cristo/Logos na criação primordial (em 1Cor 8,6b; Hb 1,2; Jn 1,3; Ap 3,14) e, além disso, afirma que ele "todas as coisas traz/sustenta com a sua palavra poderosa" (Hb 1,3). A expressão mais icônica se encontra na Deuteropaolina Epístola aos Colossenses, no hino cristológico de Cl 1,15-20; cf. sobretudo 1,17: "todas as coisas subsistem nele". Em Colossenses acrescenta-se a um dos picos da cristologia do Novo Testamento, que vai muito além de uma perspectiva cristológica judaizante. A matriz cultural pode ser vislumbrada na Bíblia (cf. Sr 43,26 a respeito do próprio Deus, por sua palavra tudo está unido), mas a melhor explicação vem de uma concepção platônica e estóica sobre a admirável unidade do cosmos, que também passou ao judaísmo helênico (cf. p. 63). “Cl 1,17 apresenta uma cristologia cósmica, que diz respeito a um juízo qualitativo sobre o ser e, portanto, sobre a composição do mundo. Como tal, vai além de uma cristologia não só de pura mediação primordial [...], mas também do binômio Alfa e Ômega, que expressa uma perspectiva dinâmica de um devir pelo menos histórico-salvífico, senão também cosmológico (cf. Ap. 1,17; 22,13) "(p. 64). Numa possível polêmica contra a veneração angélica, com isso o primado sobre o universo está reservado apenas a Cristo (cf. Cl 1,18c: "para que tenha primazia sobre todas as coisas"; cf. também Ef 1,10.20-22) .

 

O Deus de Jesus Cristo. Consequências trinitárias

 

Um Jesus concebido segundo as categorias do NT agora confessava em termos cristológicos o Deus da fé israelítica original. Deus é " Pai nosso" tanto quanto é de todos. A mediação de Jesus Cristo agora é determinante para o acesso a Deus. “O fato é que ele é seu Filho como nenhum outro, segundo o que sugerem tanto as fórmulas da missão (cf. Gl 4,4; Rm 8,3) como as da doação (cf. Rm 5,10; 8,32)" (pág. 65).

 

O Espírito Santo do AT é agora qualificado como "Espírito de Deus" e, ao mesmo tempo, "Espírito de Cristo", "do Filho", “de Jesus Cristo”. O Espírito é enviado tanto pelo Pai (cf. Jo 14,16) como pelo próprio Jesus (cf. Jo 15,26). Assim entendemos as fórmulas triádicas ou ternárias, senão também trinitárias, presentes no NT.

 

Um fator que une e tipifica todas as três pessoas é agapē/amor (para o Pai cf. 1 Jo 4, 8-10; para o Filho Jesus cf. Gl 2,20 e para o Espírito Santo cf. Rm 5,5 segundo o qual "o amor de Deus foi derramado em nossos corações"). Nenhum dos Três "está sem o outro, tanto se interpenetram um no outro para, paradoxalmente, formar uma Unidade densa e transbordante" (p. 67).

 

 

Penna conclui que, em todo caso, “não está em discussão o monoteísmo judaico, cujo distanciamento do paganismo é compartilhado, com as devidas diferenças. Claro, de um Deus tão diferente foi possível falar apenas porque houve o homem histórico Jesus que, com sua incomparável identidade, por assim dizer, colocou em crise a ideia tradicional do próprio Deus. E é como dizer que agora, na concepção cristã de Deus, existe um Homem e que não se pode pensar em Deus sem pensar neste Homem (senão em todo homem). Portanto, como diz Pascal, realmente ele não é o deus dos filósofos” (p. 67).

 

A obra de Penna é um pequeno livro denso, que destaca de forma sintética a riqueza da personalidade de Jesus, que se tentou expressar com uma variedade de títulos e de temáticas que abraçam o Antigo Testamento, o Judaísmo e a cultura helenística. Por último, as fórmulas originais do final do século I concorrem para delinear de forma inédita a figura de Jesus, que certamente foi "o judeu que morreu cedo demais", mas também muito mais.

 

Nota

 

Romano Penna, Le molteplici identità di Gesù secondo il Nuovo Testamento (Piccola biblioteca teologica 138), Claudiana, Torino 2021, pp. 80, € 10,00, ISBN 978-88-6898-319-2. Identidade de Jesus.

 

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