29 Junho 2021
“Dizendo que o Papa Francisco 'não é liberal, nem conservador', não estou dizendo que não existem políticos liberais ou conservadores na Igreja Católica, onde 'haveria apenas católicos'. Uma declaração mais acurada deveria ser dizer que qualquer tentativa de católicos ou católicas viverem sua fé autenticamente e de acordo com os ensinamentos da Igreja não se encaixa facilmente em categorias políticas”, escreve James T. Keane, editor da revista America, dos jesuítas estadunidenses, em artigo publicado por America, 28-06-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Papa Francisco não é liberal!
Ele tampouco é conservador. De fato, como a maioria dos seus predecessores (e muitos de seus irmãos bispos), Papa Francisco não se estabelece coerentemente em qualquer lugar dos eixos da política estadunidense. E nós deveríamos estar felizes por isso.
Mas isso não impede a maioria de nós, incluindo muitos jornalistas, de rotulá-lo, em parte porque usando as palavras “liberal” e “conservador” salva espaço e energia intelectual. Por exemplo, em 20 de junho, um artigo no The New York Times começa com a seguinte sentença: “Papa Francisco e Presidente Biden, ambos liberais, são os dois mais notáveis católicos romanos no mundo”.
Eu suspeito que tanto o Papa Francisco quanto Joe Biden estariam contentes com a comparação (e Lady Gaga talvez sentiu inveja pelo “mais notáveis”), considerando que muitos pensam que Biden venceu a nomeação Democrata para presidente em 2020 pela posição de candidato centrista em um campo de liberais declarados. Similarmente, Papa Francisco foi considerado por muitos na sua vida, em sua própria ordem religiosa, a Companhia de Jesus, ser um tradicionalista e um pouco autocrata. A palavra da modo depois de sua eleição entre os católicos progressistas foi “cuidado”.
Caros leitores da America, talvez notem que o uso dos termos “liberal” e “conservador”, e mesmo “moderado”, em um contexto eclesial é a violação de um princípio editorial central estabelecido pelo nosso editor-chefe, Matt Malone, s.j., oito anos atrás. Nós tentamos não descrever a Igreja em formas que sugiram que os debates eclesiais são uma simples extensão da política secular estadunidense. Eu estou fugindo disso neste artigo porque eu estou negando o valor desses rótulos quando se referem ao papa.
É claro, dizendo que o Papa Francisco “não é liberal, nem conservador”, não estou dizendo que não existem políticos liberais ou conservadores na Igreja Católica, onde “haveria apenas católicos”. Uma declaração mais acurada deveria ser dizer que qualquer tentativa de católicos ou católicas viverem sua fé autenticamente e de acordo com os ensinamentos da Igreja não se encaixa facilmente nas categorias políticas estadunidenses.
Pensemos desta forma. Aqueles que chamariam o Papa Francisco de liberal devem notar que ele está veementemente se opondo à legalização do aborto, chamando-a de trágica injustiça e uma capitulação da “cultura do descarte” na qual fetos são chamados de “desnecessários”. Ele tem sido um crítico público da teoria de gênero e da cirurgia de readequação sexual, criticando qualquer ideologia que apague as distinções entre homens e mulheres ou promova a crença que “a identidade humana se torna uma escolha individual, a qual pode ser mudada com o tempo”. Ele reafirmou que o ensinamento do Papa João Paulo II de que a Igreja não tem autoridade para ordenar mulheres, e ele manteve em sua encíclica que homens e mulheres têm papeis e características distintas calcadas no sexo biológico. Ele surpreendeu durante anos com seu elogio pelo “gênio feminino” de mulheres e para sua descrição às mulheres da Comissão Teológica Internacional como “cereja do bolo”. E sob seu aval, a Congregação para a Doutrina da Fé decretou que padres não podem abençoar casais do mesmo sexo.
O que está acontecendo aqui? O Papa Francisco é um fã do jornalista Sean Hannity, da Fox News?
Ok, pense desta forma. O Papa Francisco criticou implacavelmente o capitalismo contemporâneo e escreveu em “Fratelli Tutti” que “[o] mercado, por si só, não pode resolver todos os problemas, por mais que sejamos solicitados a acreditar neste dogma de fé neoliberal”. Ele é talvez o defensor ambiental mais proeminente do mundo. Algumas de suas primeiras palavras sobre questões LGBTQIA+ após sua eleição foram chocantes para muitos repórteres: “Quem sou eu para julgar?” Ele repreendeu duramente Donald J. Trump por sua proposta de muro na fronteira com o México, chamando as políticas de imigração de Trump de “cruéis”. Ele rompeu com seus predecessores quando revisou o ensino da Igreja sobre a pena de morte, dizendo que a pena de morte “é inadmissível porque é um ataque à inviolabilidade e à dignidade da pessoa”. Ele deixou claro que apoia a saúde universal. Ele abriu a porta (ainda que apenas uma fresta) para a possibilidade de mulheres diáconas. No início de seu papado, ele disse que “[nós] não podemos insistir apenas em questões relacionadas ao aborto, casamento gay e o uso de métodos anticoncepcionais”.
O que está acontecendo aqui? O Papa Francisco é o último Bernie Bro (“mano de Bernie Sanders”, em tradução literal)?
Pode-se fazer as mesmas perguntas sobre nosso papa emérito, Bento XVI, conhecido entre os progressistas na Igreja Católica como “Rottweiler de Deus” durante seu mandato como prefeito da CDF, ele era amado pelos tradicionalistas católicos. Mas se esses tradicionalistas nos Estados Unidos eram Republicanos, provavelmente não gostaram (ou ignoraram) o fato de que ele foi o papa mais ecologicamente correto da história, muitas vezes chamado de “O Papa Verde” por seu apoio à legislação governamental e às políticas para conter devastação ambiental. Da mesma forma, aqueles que se lembram dele como um defensor da doutrina às vezes esquecem que ele também escreveu o seguinte:
“Sobre o papa como expressão da reivindicação vinculativa da autoridade eclesiástica, ainda permanece a própria consciência, que deve ser obedecida antes de tudo, se necessário, mesmo contra a exigência da autoridade eclesiástica. A consciência confronta [o indivíduo] com um tribunal supremo e último, que em última instância está além da reivindicação de grupos sociais externos, mesmo da igreja oficial”.
Leia de novo. Joseph Ratzinger escreveu isso em 1968. O que está acontecendo aqui? O Papa Bento XVI era realmente Hans Küng disfarçado?
Os exemplos dados acima são apenas a ponta do iceberg quando se trata da vasta divisão entre as percepções estadunidenses da política papal e eclesial e a realidade do que a Igreja ensina. Como seu predecessor, o Papa Francisco soará como o Hannity em um momento e como Sanders em outro. E para ele, e para muitos outros bispos, não há contradição nisso.
Isso ocorre em parte porque a Igreja Católica não é uma democracia, nem se assemelha a qualquer sistema governamental que não seja uma monarquia. A Igreja está operando dentro de uma estrutura legal, ética e teológica que existe mais ou menos em seu estado atual há 17 séculos. Questões de importância política tendem a ser interpretadas por meio de um cálculo diferente pelos líderes da igreja.
O Papa Francisco pode ter muito cuidado em ouvir as opiniões dos católicos de todas as esferas da vida, mas eles não vão reelegê-lo e não vão bloquear suas propostas legislativas; o mesmo é verdade para os não católicos com os quais ele interage no nível da diplomacia estatal. Seu discernimento – e o da igreja como um todo – pode ter uma “visão de longo prazo” em vez de se concentrar nas ramificações políticas imediatas. Para parafrasear o antigo slogan Nacional Hebraico, ele responde apenas a uma autoridade superior.
Também é verdade que as preocupações de um pontífice de uma igreja global são marcadamente diferentes das preocupações do estadunidense médio, político ou não. Os estadunidenses, católicos incluídos, são famosos em outros lugares por presumir que o mundo gira em torno deles. Uma piada comum entre os funcionários da Congregação para o Culto Divino e os Sacramentos do Vaticano é que eles recebem muitas reclamações sobre abusos litúrgicos locais – mais de 90% deles vindos dos Estados Unidos. Temos dificuldade em perceber que, para a maior parte do mundo, os principais “países católicos” são mais provavelmente Brasil, México, Filipinas e até mesmo a República Democrática do Congo.
Uma terceira – e talvez a mais pertinente – realidade é que nenhuma civilização, em nenhum lugar e em qualquer época, simpatizou inteiramente com os ensinamentos da Igreja Católica. Fazer isso seria impossível, e mesmo propostas políticas como o integralismo, que clamam por uma aliança mais estreita entre a Igreja e o Estado, muitas vezes parecem pouco mais do que nostalgia de uma cristandade há muito ultrapassada e muitas vezes esquecida.
Ainda, como qualquer historiador pode atestar, o catolicismo existe e prosperou historicamente nos Estados Unidos, não apesar de sua ausência de autoridade sobre a sociedade civil, mas por causa disto. O Estado não nomeia bispos, e os bispos nãos concorrem a cargos; os católicos são livres para praticar sua religião, e a maioria dos estadunidenses são livres para ignorar o que os bispos católicos dizem. Nós esquecemos do perigo que é o casamento entre Igreja e Estado, mesmo depois do século XX (Lembram do generalíssimo Franco na Espanha? Leram alguma coisa positiva sobre o catolicismo na Irlanda recentemente?), que resultou em uma perda correlativa de fiéis e um ganho de poder político.
Essa realidade, de que a Igreja e o Estado não podem e nunca irão se alinhar exatamente, não cria apenas uma desconexão entre o papa e a política moderna; isso afeta cada membro da igreja em todo o mundo.
A Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos se inseriu ruidosamente nas notícias políticas do país nas últimas semanas com seu plano de redigir um documento sobre a “coerência eucarística”, que pode ou não incluir diretrizes sobre como negar a comunhão de políticos pró-escolha, um movimento que obviamente afetaria candidatos políticos Democratas mais do que seus colegas Republicanos pró-vida. Mas o que é menos conhecido é que a Conferência Episcopal também vem clamando publicamente pela abolição da pena de morte há um quarto de século, uma posição contrária à de quase todos os políticos Republicanos, católicos ou não. Por quê? Porque a Igreja Católica não pensa (não deveria?) no aborto e na pena de morte como duas questões distintas: ambas são parte da trama de ser pró-vida desde a concepção até a morte natural.
Mais do que alguns críticos dos bispos dos EUA no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 chamaram a conferência dos bispos dos EUA de “o Partido Democrata em oração”, em parte por causa da inclinação para a esquerda dos bispos nas questões econômicas que atingiu seu ponto máximo com a publicação de 1986 de “Justiça Econômica para Todos”. Os bispos eram, é claro, tão contrários ao aborto legal na época quanto o são agora, embora certamente os proeminentes políticos católicos Democratas da época (incluindo Ted Kennedy, Geraldine Ferraro e Mario Cuomo) fossem pró-escolha. Talvez o aborto simplesmente não fosse uma prioridade para os bispos na época. Isso não significa que eles sempre concordaram com os Democratas.
Hoje em dia, os planos mencionados dos bispos dos Estados Unidos de encontrar uma maneira de censurar Biden, Nancy Pelosi e outros políticos católicos pró-escolha levaram o jornalista Michael Sean Winters a inverter a frase: agora é o arcebispo José Gomez e seus colegas com “o Partido Republicano em oração”. O arcebispo Gomez, como muitos de seus colegas bispos, era um adversário ferrenho das políticas de imigração de Trump, chegando até agora a chamar a questão da imigração de “teste de direitos humanos de nosso tempo”(quase a prioridade preeminente, pode-se dizer). Mas desde a pandemia de covid-19 e a eleição de Biden à presidência, a imigração pode parecer menos prioridade para os bispos no momento. Isso não significa que eles sempre concordam com os Republicanos.
Afinal, alguns papas são mais “liberais” do que outros, tanto no nível político quanto eclesial? Certo. Alguns bispos são mais “conservadores” em questões políticas e eclesiais do que outros? Sim. A Igreja deve ser ativa na política secular? Claro. Mas lembre-se de que quando você usa nossos rótulos políticos em relação ao Papa Francisco, ele não teria nenhuma ideia terrena do que você está falando.
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Papa Francisco não é liberal (tampouco é conservador)! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU