15 Junho 2021
Quando o cardeal Reinhard Marx publicou a sua notável e inesperada carta de renúncia como arcebispo de Munique e Freising no dia 4 de junho, os repórteres de religião, teólogos e membros da hierarquia buscaram tentar entendê-la. Alguns escritores apressaram-se estupidamente a oferecer análises. Mas uma coisa emergiu dessas discussões: todos pensavam que o Papa Francisco teria necessariamente de aceitar a renúncia.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicada em National Catholic Reporter, 14-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na semana passada, Francisco não aceitou a renúncia do cardeal. Novamente, ele nos surpreendeu. Não apenas isso, a sua resposta ao cardeal alemão foi tão espiritualmente rica e provocadora em sua compreensão da fonte da autoridade episcopal, que poderia muito bem servir de ponto de partida para a discussão que os bispos dos Estados Unidos terão no seu encontro no fim desta semana. A visão do papa ainda pode salvar a Conferência Episcopal dos seus piores instintos.
A renúncia de Marx, como explicou o cardeal, foi motivada pela sua necessidade de assumir a responsabilidade pelo manejo “catastrófico” da Igreja na crise dos abusos sexuais do clero. Embora ele mesmo não tenha sido acusado de encobrir os abusos, Marx disse que pretendia renunciar “para deixar claro que estou disposto a assumir pessoalmente a responsabilidade não só por quaisquer erros que eu possa ter cometido, mas pela Igreja como uma instituição que eu ajudei a formar e a moldar ao longo das últimas décadas”.
Ao recusar a renúncia, o papa concordou com Marx que a má gestão das acusações de abuso sexual pela Igreja era uma “catástrofe” e refletiu sobre a necessidade de evitar remédios simplistas.
Ele escreveu: “A política do avestruz não leva a nada (...) os sociologismos, os psicologismos não servem”. Ele advertiu contra o fato de confiar em esforços para proteger a reputação da Igreja ou de considerar muito o que a mídia pensa.
Ele usa a palavra espanhola “fecundo” para dizer que “assumir a responsabilidade” pela crise é o único caminho fecundo para seguir em frente. [...]
A parte mais poderosa da carta, no entanto, concentra-se nas palavras de São Pedro a Jesus no Evangelho de Lucas (5,8). Tendo duvidado da instrução de Jesus para lançar as redes, e vendo então a enorme pesca de peixes que haviam feito, Pedro diz ao Senhor: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador”. Francisco chama essas palavras de uma “herança que o primeiro papa deixou aos papas e aos bispos da Igreja”.
Francisco voltou a essa passagem na conclusão dessa carta extraordinária:
“Se te vier a tentação de pensar que, ao confirmar a tua missão e ao não aceitar a tua renúncia, este bispo de Roma (teu irmão que te ama) não te compreende, pensa naquilo que Pedro sentiu diante do Senhor quando, ao seu modo, ele lhe apresentou a renúncia: ‘Afasta-te de mim, porque sou um pecador’, e escuta a resposta: “Apascenta as minhas ovelhas’.”
Na verdade, no Evangelho de Lucas, Jesus continua dizendo a Pedro que ele se tornará um pescador de homens, e a frase “apascenta as minhas ovelhas” é encontrada no fim do Evangelho de João. Mas não importa. O ponto é claro: o mandato apostólico – e único guia verdadeiro para um bispo ou para qualquer cristão – é começar com o autoconhecimento de que eu sou um pecador e voltar-me para o Senhor, o único que traz o perdão dos pecados.
Na quarta-feira, os bispos dos Estados Unidos iniciarão uma reunião de três dias via Zoom. Eles também estão em crise. Sim, assim como a Igreja na Alemanha, as feridas autoinfligidas do abuso sexual do clero roubaram dos bispos grande parte da sua autoridade moral. Mas o seu problema imediato não é esse. Também não é o fato de que um católico na Casa Branca não apoia a criminalização do aborto. Nem que alguns católicos não entendem os pontos mais delicados da teologia eucarística.
Não, o problema que os bispos dos Estados Unidos enfrentam é que eles estão se agarrando pelo pescoço.
Na sua próxima reunião, eles não podem realmente começar a curar as divisões que surgiram. As videoconferências via Zoom são inadequadas para o tipo de comunicação interpessoal essencial para superar o estranhamento.
Portanto, a proposta de Dom José Gomez, presidente da Conferência, de dar continuidade à votação sobre a redação desse polêmico documento sobre a Eucaristia, como se uma reunião via Zoom não fosse realmente diferente de uma reunião regular, e como se as divisões que essa questão expôs não fossem mais conspícuas e profundas do que qualquer outra na memória recente, é um exemplo de brincar de avestruz.
Os bispos precisam se sentar juntos, cara a cara, em grupos pequenos e maiores, e trabalhar essas divisões. Será um trabalho árduo, o tipo de trabalho árduo que os bispos realizaram quando redigiram uma carta pastoral sobre a paz nos anos 1980. O tipo de trabalho árduo que os bispos realizaram quando redigiram uma declaração sobre a questão da Comunhão e os políticos em 2004.
Como indiquei recentemente, esses documentos surgiram de uma discussão que começou quando os bispos expressaram pontos de vista muito divergentes, mas os votos finais sobre os textos foram de 238 contra 9 e de 183 contra 6 respectivamente.
Os bispos dos Estados Unidos enfrentam uma escolha: eles querem um diálogo de verdade, que exigirá esperar até que possam se encontrar pessoalmente em novembro, ou querem forçar a questão e dividir ainda mais a Conferência? O Vaticano deixou claro que deseja um diálogo genuíno, não uma ligação via Zoom, como eu espero que o discurso do núncio deixe claro.
Um número significativo de bispos escreveu a Gomez pedindo um adiamento. Se ele der continuidade, não terá ninguém para culpar a não ser a si mesmo por ceder aos guerreiros culturais que estão colocando a política à frente da teologia e que estão dispostos a romper a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos para alcançar seus objetivos.
Os bispos dos Estados Unidos deveriam ler a carta do papa a Marx – e reler a carta de Francisco a eles quando começaram seu retiro em 2019, que tocou em alguns dos mesmos temas. O papa entende que a unidade entre os bispos é um sinal de discernimento adequado, e a falta de tal unidade é um sinal de uma obstinação que não se mostrará eclesialmente fecunda.
Francisco também entende outra coisa que os nossos bispos estadunidenses precisam entender. Eles começaram essa campanha por um documento formando um “grupo de trabalho” para avaliar como lidar com a presidência de Joe Biden, ou seja, começaram examinando o pecado de um outro. Francisco os encoraja a começar examinando a sua própria pecaminosidade. Esse é o caminho para restaurar a credibilidade da Igreja. Esse é o único caminho.
Neste início do terceiro milênio, o modelo eclesial legado pela Reforma católica do século XVI perdeu credibilidade. Se você examinar um dos destaques artísticos da Roma renascentista, a cúpula da Basílica de São Pedro, o perímetro interior da cúpula tem uma inscrição – as letras têm 2 metros de altura! – que afirma: “Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam et tibi dabo claves regni caelorum”. Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e te darei as chaves do reino dos céus.
A ideia era que a confissão de fé de Pedro em Mateus 16 era a base do poder e do prestígio do papado.
Em vez disso, Francisco propõe, em sua carta a Marx, que, nos nossos dias, é a confissão de pecado de São Pedro em Lucas 5 que fundamenta a credibilidade apostólica do seu cargo e do cargo de bispo. Foi depois que Pedro fracassou – e fracassou repetidas vezes, até negando Jesus três vezes – que o Senhor ressuscitado lhe deu a sua missão final: “Apascenta as minhas ovelhas”.
É essa qualidade de discernimento do papa que o torna atraente para nós, modernos, que elimina as suspeitas e as ansiedades que adquirimos, a perda de confiança, a indiferença, as ocupações. É essa qualidade que distingue a fé verdadeira dos seus fac-símiles. É essa qualidade que contém o poder de renovar a Igreja.
Esperamos que os bispos dos Estados Unidos usem o seu encontro online desta semana para ouvir o desafio e a esperança na visão que lhes foi oferecida pelo sucessor de São Pedro.
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Bispos dos EUA conseguirão compreender a visão eclesial do Papa Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU