13 Abril 2021
A reação da imprensa italiana à morte de Hans Küng era facilmente previsível, em um sentido (positivo) ou outro (negativo). Como verificamos no dia seguinte, o teólogo suíço foi, por um lado, exaltado (segundo alguns, aclamado) e, por outro, culpabilizado pelas mesmas (supostas) características da sua obra teológica: progressista, incômodo, contracorrente, crítico, rebelde (sobretudo em relação ao papa), até mesmo herético.
O comentário é de Sergio Ventura, jurista italiano, em artigo publicado em Vino Nuovo, 11-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
E “herético” foi uma palavra que ressoou ainda mais nas redes sociais, também para acusar de “difusão de heresia” quem, como o próprio Vino Nuovo, estava simplesmente fazendo memória de uma figura teológica do século XX que também fez bem à Igreja Católica – como a própria Pontifícia Academia para a Vida reconheceu neste tuíte: “Desaparece realmente uma grande figura da teologia do século passado, cujas ideias e análises devem sempre nos fazer refletir na Igreja, nas Igrejas, na sociedade, na cultura”.
Scompare davvero una grande figura nella teologia del'ultimo secolo, le cui idee e analisi devono fare sempre riflettere la Chiesa, le Chiese, la società, la cultura. https://t.co/o9fj1xZ5JU
— Pontifical Academy Life (@PontAcadLife) April 6, 2021
A acusação de heresia é definitivamente inadequada. Sergio di Benedetto lembrou isso corretamente no Facebook: “Fala-se de um sacerdote de quem foi removida [em 1979] a cátedra de dogmática, mas que não foi nem suspenso a divinis nem excomungado”, portanto, “de acordo com o Código de Direito Canônico (cân. 1.364), não tendo sido excomungado, não foi julgado herege. E vice-versa”.
A esse propósito, gostaria de acrescentar, como questão de direito, que, constituindo a heresia e a excomunhão algo de análogo a um crime no ordenamento secular (com relativa pena), talvez a introdução no direito canônico de uma espécie de direito à proteção da própria imagem de católico, no que diz respeito a acusações infundadas, ajudaria os próprios católicos a serem mais prudentes e menos violentos em seus julgamentos (muitas vezes precipitados).
Mas, evidentemente, é um período em que as pessoas “batem a língua no tambor” e gostam de andar por aí distribuindo rótulos de blasfêmia e heresia – tão imotivada a primeira, quanto talvez dependente a segunda – a partir daquilo que Gilberto Borghi escreveu aqui [em italiano] a respeito do fato de as pessoas “imaginarem ser as únicas no mundo a terem entendido uma determinada verdade. E se identificarem tanto com a sua afirmação, mesmo às custas de negar outras verdades (talvez até evangélicas!)”, a ponto de viverem dentro de “uma ideologia em que Deus foi reduzido a um determinado conteúdo, que, se for modificado, faz ruir tudo o castelo mental com que nos mantemos de pé”: “A voz de Deus muitas vezes é submersa pela própria necessidade de se saber que se tem uma identidade”, obviamente “cheia do sentido de assédio e da necessidade de se defender”.
Pois bem, essa acusação infundada – e lesiva à imagem do teólogo – me surpreendeu, sobretudo pela sua insistência e impetuosidade, pois parece manifestar um certo aborrecimento com a obra de quem, como Küng, sempre se moveu – nas palavras de Tillich – na linha de fronteira. Naquela fronteira onde “nós” e os “outros”, identidade e alteridade se encontram, se chocam e se confrontam; onde “dentro” e “fora”, nativo e estrangeiro se misturam, se fundem e se confundem; onde se tenta libertar e reunificar caminhos interrompidos, construir pontes e religar laços rompidos. Um caminho de busca que pode ser reconhecido e “bem-dito” sem necessariamente aprovar todas as suas curvas fechadas (mais ou menos íngremes) e todos as suas metas (provisórias).
Nas obras da sua primeira década de compromisso teológico – os míticos anos 1960 – vemos o teólogo suíço trabalhando nos pontos nodais teológicos e eclesiológicos do diálogo ecumênico (justificação, reforma da Igreja, infalibilidade do papa). Dentre as suas obras, estas são as consideradas as mais “robustas” do ponto de vista teórico e sistemático.
É significativo o julgamento que Fulvio Ferrario faz da ouverture teológica de Küng: “Em 1957, esse livro pareceu um pouco estranho (Barth afirmou que Küng o entendeu muito bem, mas não entendeu Trento; Joseph Ratzinger escreveu que o autor havia restituído Trento retamente, mas não havia compreendido Barth)”.
Em outras palavras, as duas identidades (católica e luterana) afirmam que Küng entendeu bem o “nós”, mas não o “outro”; “outro” que, porém, é o “nós” (bem entendido) do ponto de vista do “diferente de nós”, o que confirma, em vez disso, que o teólogo suíço tinha compreendido bem o “nós” e o “outro”, Trento e Barth.
Não por acaso, conclui Ferrario, tudo isso, “quarenta e dois anos depois, seria substancialmente confirmado pela Declaração Conjunta Católico-Luterana” sobre a doutrina da justificação.
Qual heresia haveria em Küng, portanto, se a famosa Declaração de Augsburg, de 1999, mesmo com todos os seus limites e aprofundamentos necessários, foi assinada pelo chefe do dicastério vaticano para a Unidade dos Cristãos (cardeal Kasper), além do secretário-geral da Federação Luterana Mundial (pastor Noko), porque foi ardentemente desejada por São João Paulo II e consentida (com um anexo adicional) pelo cardeal Ratzinger (seguida mais tarde também como Bento XVI)?
E essa declaração não foi confirmada no início de 2021 pelas mesmas confissões cristãs, com o acréscimo dos metodistas, anglicanos e reformados?
Sobre a questão da infalibilidade, além disso, o arcebispo Bruno Forte não testemunhou que Küng a aceitava “na íntegra”, especificando que, apesar do seu “espírito pungente” e “às vezes [os seus] tons ásperos”, “a sua contestação se voltava, sobretudo, a uma forma de interpretar estaticamente a infalibilidade do papa” (La Stampa, 07-04-2021)?
Da mesma forma, na década seguinte – os mais sombrios (e violentos) anos 1970 – o teólogo suíço se concentrou no diálogo com o chamado mundo não crente. Como traduzir o fato de “ser cristão” naquele tempo de secularização? Como se fazer companheiro de viagem dos agnósticos e dos ateus que duvidavam ou não acreditavam na existência de Deus? Como dar novamente razão - com mansidão (1Pd 3,15-16) – da esperança cristã nos chamados novíssimos?
Isso certamente continuando a utilizar uma chave ecumênica, no profundo respeito daquilo que Jesus pregou nos seus discursos de despedida, para que “todos sejam um (...) para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21).
Mas depois, claramente, realizando uma operação especular àquela que, anos (décadas) depois, o cardeal Ratzinger/Papa Bento XVI pediria aos não crentes em diálogo com os crentes.
Em tal diálogo, assim como é legítimo pedir que os não crentes pensem “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse, ou pelo menos como se tivesse sentido o fato de Deus existir (caso contrário, também se tornaria extremamente difícil apenas começar um diálogo), assim também deveria ser igualmente legítimo para um crente que deseja seriamente dialogar com um não crente pensar “etsi Deus non daretur”, como se Deus não existisse, pelo menos no sentido de se fazer as perguntas radicais que desde sempre atravessam também a comunidade cristã: Jesus é verdadeiramente – e em que sentido – o Filho de Deus? Deus – e qual Deus – existe? E o que pode significar hoje – na imagem do cosmos que a ciência nos dá – o além e a vida eterna (seja ela salvada ou condenada)?
Por isso, só podemos compreender, mas não justificar, o espanto de quem – como Roberto Giardina – afirma que, “durante um telefonema, eu lhe confessei que, tendo estudado com os jesuítas, eu era ateu. Tive a impressão de que ele também era. Acho que um teólogo católico, com uma cátedra, não pode usar um ponto de interrogação” (La Nazione, 07-04-2021).
Em sentido contrário, é significativo o testemunho do cardeal Kasper sobre a fecundidade espiritual da teologia “a modo mio” [do meu modo] (nas palavras de Lucio Dalla) de Küng: ele “tinha a capacidade de falar uma linguagem compreensível a todos, de explicar a religião aos outros. Assim, ele ajudou muitos a entrarem na fé ou a permanecerem na Igreja” (Corriere della Sera, 07-04-2021; de forma semelhante no L’Osservatore Romano: “Küng era católico, mas a seu modo [...] e conseguiu, efetivamente, explicar o Evangelho até mesmo a pessoas distantes da fé. Nisso, ele fez bem”).
Portanto: nem herético, nem desviador do cristianismo/catolicismo, pelo contrário. Talvez por isso, relata Kasper, recentemente, “o papa me disse para lhe transmitir as suas saudações e as suas bênçãos ‘na comunidade cristã’”, apesar de Küng ter sido “duro, às vezes injusto”, e de a sua eclesiologia ser “liberal” demais (idem).
Enfim – com os anos 1980 e 1990 – observamos a fase mais enciclopédica da reflexão do nosso teólogo, com os limites e os méritos de todo enciclopedismo. As obras (cada vez mais volumosas) dedicadas às grandes religiões mundiais – relidas no seu caminho histórico, valendo-se da teoria kuhniana dos paradigmas – e ao desenvolvimento de uma ética mundial comum – cada vez mais forçada a se defrontar com os desenvolvimentos científicos – podem ser representadas mais como uma aragem do terreno para quem vai plantar algumas sementes potencialmente resolutiva, como o fato de operar sínteses e visões de conjunto de um caminho passado para evidenciar os nós atuais e as “interrogações do futuro”.
No entanto, escreve Maurizio Assalto provocadoramente, a intuição teológico-política de se opor culturalmente ao choque de civilizações revelou-se, infelizmente, profética: “Pouco tempo depois, os povos balcânicos começariam a se dilaniar no mais feroz conflito europeu pós-Segunda Guerra Mundial. Dez anos depois, o atentado às Torres Gêmeas inaugurou a temporada mais alucinante do terror islamista. E Israel conheceria novas intifadas. O tempo se encarregou de demolir o projeto de Küng. Reiterando, por outro lado, a sua urgente atualidade” (La Stampa, 07-04-2021).
Heterodoxo, mas não herético, atrator (ou conservador) de christifideles, sonhador de um mundo pacificado, como defensor do diálogo ecuménico, inter-religioso e com a cultura (científica e humanística) moderna e pós/tardo-moderna, Hans Küng não podia deixar de apreciar aquilo que foi prometido a esse respeito pelo documento programático do pontificado do Papa Francisco (Evangelii gaudium, especialmente nn. 238-257; mas também nn. 69.71-75; 129.132-134).
Ele foi extremamente crítico, por sua vez, em relação ao pontificado de João Paulo II, acusado – como recorda Lucetta Scaraffia – de “falta de disponibilidade para o diálogo ecumênico e inter-religioso”, sobre o qual sempre me perguntei se o juízo não devia ser mais nuançado, pensando também apenas nos encontros inter-religiosos inaugurados em Assis (1986) ou na encíclica Ut unum sint (1995).
Amigo e colega de Ratzinger desde o fim dos anos 1950, ele dialogou por quatro horas com Bento XVI em 2005, que – em uma nota divulgada naquele dia – confirmou “o seu acordo acerca da tentativa do professor Küng de reavivar o diálogo entre fé e ciências naturais, e de fazer valer, em relação ao pensamento científico, a razoabilidade e necessidade da Gottesfrage (a questão sobre Deus)”, além de ter “apreciado o seu esforço [para] contribuir para um renovado reconhecimento dos valores morais essenciais da humanidade através do diálogo das religiões e no encontro com a razão secular”.
Por tudo isso, surpreendem um pouco as palavras lidas no IlSussidiario.net (assinadas por Federico Picchetto) que descrevem Küng como aquele que “permaneceu praticamente sozinho, gênio sem irmãos, profeta sem um verdadeiro povo (...) no Panteão dos grandes e no das oportunidades perdidas (...) em uma solidão tal que nenhum pensamento pode – em última análise – tornar-se fecundo, transformar-se em estrada”.
Obviamente, não aludimos ao fato de que “a popularidade de Hans Küng dificilmente pode ser subestimada” (B. Salvarani, Avvenire, 07-04-2021), pois não queremos contribuir para confinar o teólogo suíço à figura estereotipada do “teostar” populista (mais do que ele mesmo o fez, como afirma Marcello Neri, por meio do uso das mídias de massa na “diatribe romana”).
Pensamos, em vez disso, na convicção de que o seu estilo teológico de proceder no “limiar” é aquilo que, principalmente na pós (ou tardo) modernidade líquida, permite captar melhor “como” e o “que” o Espírito opera e diz naquele povo “oficioso” que Deus já está constituindo para si ao lado do “oficial”.
Esse povo extra ecclesiam, além disso, também tem aquilo que o Papa Francisco chama de “faro” e sabe discernir – no próprio Küng – aquilo que é um juízo duro e injusto (a ser superado) e aquilo que é uma pista promissora e frutífera (a ser cultivada).
Não entendi bem se, para Marcello Neri, esse estilo teológico também faz parte da “época alta do catolicismo e da teologia” (na qual, porém, “não conseguimos mais subir nem com a escada”), ou se, também com relação a ele, “o tempo presente nos pede outra coisa, outras atenções e sensibilidades”.
Em todo o caso, parece-me possível concluir com a honestidade e a veracidade de Antonio Ballarò, quando escreve que, “vai embora, mas também um grande fragmento da história da Igreja e do século que herdamos. Um fragmento que o pontificado de Francisco deverá continuar em parte a mover e em parte a remover”.
Porque, como lembra Diego Andreatta, “celebrar Küng agora será retomar também a sua profecia de Riva del Garda”, aquela que o teólogo suíço gostava de repetir sempre na última fase da sua pesquisa: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não há diálogo entre as religiões sem pesquisa sobre os fundamentos das religiões”.
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O sonho (herético?) de Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU