13 Março 2012
Quarenta anos depois, volta a ser publicado o livro Ser cristão, de Hans Küng (foto), obra na origem da ruptura do teólogo suíço-alemão com o magistério católico.
A análise é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 11-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há motivo para se alegrar ao reencontrar nas livrarias uma obra como Ser cristão de Hans Küng [a edição brasileira é de 1976, da editora Imago], a 40 anos da primeira publicação: "uma introdução ao ser cristão (...), uma pequena summa da fé cristã", segundo as próprias palavras do autor, voltada a apresentar "não um Evangelho diferente, mas sim o mesmo Evangelho de sempre, redescoberto para o nosso tempo". Uma análise densa e articulada do cristianismo a partir do Jesus histórico e do seu anúncio da "boa notícia", uma pesquisa conduzida com grande competência e grande sensibilidade ecumênica por um então jovem teólogo católico que havia participado do Concílio Vaticano II como perito.
Küng era e continua sendo um apaixonado por Cristo, um fiel convicto de que o Evangelho pode falar ao coração e à mente de homens e mulheres de todos os tempos e de todas as culturas, um pensador que não tem medo de enfrentar os desafios do diálogo com a razão e com as outras religiões. E o impacto profundo que essa sua obra teve junto a muitos cristãos e até mesmo entre aqueles que eram estranhos à Igreja ou tinham se retirado para as margens dela são a prova inequívoca disso.
Falo de "impacto" e não de "sucesso", porque se sobre os números das cópias vendidas de um livro podem incidir muitos fatores contingentes ou não, até mesmo estranhos ao conteúdo, só a mensagem do texto pode influenciar sobre os efeitos duradouros que uma obra pode ter e sobre o enriquecimento pessoal que ela consegue oferecer mesmo a distância de anos.
Nesse sentido, Küng não só expõe "uma" possível eventual introdução ao cristianismo – embora rica e documentada – mas também, através dela, deixa transparecer a paixão de uma busca assídua do radicalismo evangélico, comunica a um grande público o clima espiritual e a vontade de diálogo que marcaram a fecunda época da Igreja nos pós-Concílio, lança raios de luz sobre horizontes de esperança.
Certamente, Ser cristão foi e continua sendo também uma obra altamente controversa: junto com outros textos seus da mesma época, ele lhe valeu a retirada da missio canonica para o ensino da teologia nas faculdades católicas, sem, porém, que se chegasse a uma condenação contra o autor e a sua teologia. A complexidade dos problemas levantados, a dureza de certos acentos polêmicos, a incompreensão recíproca levaram a cavar um fosso cada vez maior entre Küng e o magistério da Igreja Católica.
E exatamente aí o lamento se une à satisfação pela reedição de Ser cristão. Sim, porque esse texto toca a grande oportunidade que não se soube ou não se pôde aproveitar. O teólogo suíço, de fato, propunha "uma introdução [ao ser cristão]: uma introdução diferente ou diferentemente orientada não incorre na excomunhão, mas exige, ao invés, um pouco de tolerância".
A excomunhão não veio, mas a tolerância também se manteve escondida: ela podia desencadear um diálogo extremamente fecundo dentro da própria Igreja, um diálogo talvez duro também, que, no entanto, enriqueceria, a partir de dentro, a comunidade dos fiéis à qual Küng jamais deixou de pertencer. Ao invés disso, consentiu-se com um progressivo distanciamento da pesquisa teológica de Küng do coração da mensagem cristã e, principalmente, do contexto católico. Progresso normal e positivo de uma pesquisa teológica livre e independente? Talvez tenha sido isso do ponto de vista do autor.
Do ponto de vista da comunidade cristã, não só católica, do seu caminho ecumênico, da sua busca de fidelidade cada vez maior ao Evangelho, tratou-se, ao contrário, do enfraquecimento de uma voz devido à perda de autoridade objetiva (a subjetiva permaneceu intacta, ou, melhor, talvez até se reforçou): as posições de Hans Küng, tão estimulantes para os cristãos de hoje e para o ser humano contemporâneo, já não tinham mais como lugar de confronto e de ressonância a comunidade católica como tal. Porém, os problemas levantados na obra – o papel da palavra de Deus, o significado do Jesus histórico, a função da autoridade, as modalidades do exercício do ministério presbiteral, o diálogo ecumênico e com as outras religiões, a abertura o mundo... – permanecem inevitáveis ainda hoje, e a reflexão teológica ainda tem tudo a ganhar ao levar em conta a análise aguda e afiada de Küng.
Não por acaso, o breve prefácio à nova edição de Ser cristão encerra-se com a mesma frase posta como selo da edição original de 1974, afirmação definida pelo próprio autor como "o meu credo": "Seguindo Jesus Cristo, o ser humano no mundo de hoje pode viver, agir, sofrer e morrer de modo verdadeiramente humano: na felicidade e na desgraça, na vida e na morte, sustentado por Deus e fecundo de ajuda aos outros".
Sim, o seguimento cristão, o caminhar sobre as pegadas de Jesus de Nazaré que narrou Deus, pode ter sentido para as pessoas de todos os tempos e culturas, para a redescoberta da humanidade que o habita: aquele que a fé confessa como "verdadeiro Deus e verdadeiro homem" restitui ao ser humano a sua qualidade e dignidade mais profundas.
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Hans Küng e a oportunidade desperdiçada da Igreja. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU