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07 Outubro 2016

Provocou discussão a referência do papa ao gênero como guerra mundial e colonização ideológica. Uma análise da coerência de um pensamento, da ligação com o antecessor e de suas consequências pastorais.

A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada no sítio Settimana News, 04-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Depois da viagem à Geórgia e ao Azerbaijão (30 de setembro a 2 de outubro) ressurgiu a pergunta sobre a suposta incoerência do Papa Francisco no que diz respeito às questões de moral pessoal, particularmente em relação à homossexualidade e, mais especificamente, à ideologia de gênero.

A atitude de compreensão e misericórdia se torna, para alguns meios de comunicação, uma contradição com o julgamento severo contra um sistema cultural não compatível com o Evangelho. São inquietas as reações dos conservadores italianos que devem apreciar o rigor, mas não compartilham a abertura pastoral.

Palavras secas

O papa falou da "colonização ideológica" sobre o gênero, na coletiva de imprensa no voo das Filipinas no dia 15 de janeiro de 2015. No discurso em Nápoles, no dia 23 de março de 2015, indicou-o como um "erro da mente humana". No dia 8 de abril, a exortação apostólica Amoris laetitia (assinada no dia 19 de março) continha um número dedicado à questão, o 56:

"Outro desafio surge de várias formas de uma ideologia genericamente chamada gender, que 'nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Essa ideologia leva a projetos educativos e diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo'. Preocupa o fato de algumas ideologias desse tipo, que pretendem dar resposta a certas aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que 'sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar'. Por outro lado, 'a revolução biotecnológica no campo da procriação humana introduziu a possibilidade de manipular o ato generativo, tornando-o independente da relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos casais'. Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos onipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo, somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isso significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada."

Em uma passagem do diálogo com os bispos poloneses no dia 27 de julho de 2016 passado, ele afirmou: "Na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina, na África e em alguns países da Ásia, há verdadeiras colonizações ideológicas. E uma delas – eu digo claramente com nome e sobrenome – é o gender. Hoje, às crianças – às crianças! – na escola se ensina isto: que cada um pode escolher o sexo. E por que ensinam isso? Porque os livros são aqueles das pessoas e das instituições que dão dinheiro. São as colonizações ideológicas, sustentadas também por países influentes".

Tbilisi e suas consequências

No encontro com padres e consagrados em Tbilisi (Geórgia, 1º de outubro de 2016) ele voltou sobre o tema: "Você, Irina, mencionou um grande inimigo do matrimônio hoje: a teoria do gender. Hoje, existe uma guerra mundial para destruir o matrimônio. Hoje, há colonizações ideológicas que destroem, mas não se destrói com as armas. Destrói-se com as ideias. Portanto, é preciso se defender das colonizações ideológicas".

E retomou isso na entrevista de volta da viagem, no dia 3 de outubro, em resposta a uma pergunta sobre a teoria de gênero:

"Acima de tudo, eu acompanhei, na minha vida de sacerdote, de bispo e também de papa, pessoas com tendência e com práticas homossexuais. Eu as acompanhei, as aproximei ao Senhor. Algumas, eu não posso... Mas eu as acompanhei e nunca abandonei ninguém. É isso que deve ser feito. As pessoas devem ser acompanhadas como Jesus as acompanha. Quando uma pessoa que tem essa condição chega diante de Jesus, Ele certamente não lhe dirá: 'Vá embora porque você é homossexual!', não. O que eu falei diz respeito àquela maldade que hoje se faz com a doutrinação da teoria do gender. Um pai francês me contava que, à mesa, estavam falando com os filhos – ele, católico, a esposa, católica, os filhos, católicos, com 'água de rosas', mas católicos – e perguntou ao menino de dez anos: 'E você, o que você quer ser quando crescer?'. 'Uma menina!' E o pai se deu conta de que, nos livros escolares, ensinava-se a teoria do gender. E isso é contra as coisas naturais. Uma coisa é que uma pessoa tenha essa tendência, essa opção, e há também aqueles que mudam de sexo. Outra coisa é fazer o ensino nas escolas nessa linha, para mudar a mentalidade. Estas eu chamo de 'colonizações ideológicas'. No ano passado, eu recebi uma carta de um espanhol que me contava a sua história de criança e de jovem. Era uma menina, uma jovem, e sofreu muito, porque se sentia menino, mas era fisicamente uma menina. Ele tinha contado isso à sua mãe, quando já tinha 20, 22 anos, e lhe disse que gostaria de fazer a cirurgia e todas essas coisas. E a mãe lhe pediu para não fazê-la enquanto ela estivesse viva. Ela era idosa e morreu logo. Ele fez a cirurgia, agora é funcionário de um ministério de uma cidade da Espanha. Ele foi ao encontro do bispo. O bispo o acompanhou muito. Um grande bispo: 'perdia' tempo para acompanhar esse homem. Depois, ele se casou, mudou a sua identidade civil e me escreveu a carta, dizendo que, para ele, seria uma consolação vir com a sua esposa: ele, que era ela, mas é ele. Eu os recebi. Estavam contentes. E, naquele bairro onde ele morava, havia um velho sacerdote, de 80 anos, o velho pároco, que tinha deixado a paróquia e ajudava as irmãs ali, na paróquia. E havia o novo [pároco]. Quando o novo o via, gritava da calçada: 'Você vai para o inferno!'. Quanto ele encontrava o velho, este lhe dizia: 'Desde quando você não se confessa? Venha, venha, vamos que eu te confesso e, assim, você vai poder comungar'. Entendeu? A vida é a vida, e as coisas devem ser tomadas como vêm. O pecado é o pecado. As tendências ou os desequilíbrios hormonais causam muitos problemas, e devemos estar atentos para não dizer: 'Dá tudo no mesmo, façamos festa'. Não, isso não. Mas cada caso, acolhê-lo, acompanhá-lo, estudá-lo, discernir e integrá-lo. Isso é o que Jesus faria hoje. Por favor, não digam: 'O papa vai santificar os trans!'. Por favor! Porque eu já vejo as manchetes dos jornais... Não, não. Há alguma dúvida sobre aquilo que eu disse? Quero ser claro. É um problema de moral. É um problema. É um problema humano. E deve ser resolvido como se pode, sempre com a misericórdia de Deus, com a verdade, como dissemos no caso do matrimônio, lendo toda a Amoris laetitia, mas sempre assim, sempre com o coração aberto."

Bento e Francisco: dedutivo e indutivo

Há uma coerência substancial com o seu antecessor, Bento XVI, que, depois de uma série de documentos das instituições vaticanas (de 1995 a 2014), menciona isso nos votos à Cúria Romana para o Natal de 2008. Ele retorna à questão em 2012:

"A profunda erroneidade dessa teoria e da revolução antropológica a ela subjacente é evidente. O homem contesta ter uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Ele nega a própria natureza e decide que ela não lhe foi dada como um fato pré-constituído, mas que é ele próprio que a cria."

É uma das questões implícitas na encíclica Caritas in veritate (nn. 69-74). A coerência do julgamento não significa identidade de caminhos. Enquanto Bento XVI remonta aos processos culturais da modernidade e ao tema da relação natureza-cultura, o Papa Francisco parte indutivamente da experiência de um homem do "Terceiro Mundo", que constata o condicionamento das ajudas internacionais a aceitações culturais que as pessoas não compartilham e que se apresentam como agressões indevidas. Experiência confirmada por inúmeros episcopados "periféricos".

É indicativa a resposta do papa, ainda na viagem de volta do Azerbaijão, a uma pergunta de um jornalista estadunidense sobre a difícil escolha eleitoral entre Trump e Clinton. À rudeza do primeiro confronta-se o consentimento da segunda a uma difusão da cultura de gênero e de tipo agnóstico.

"Você me faz uma pergunta em que descreve uma escolha difícil. Porque, na sua opinião, há dificuldades em um e há dificuldades no outro. Em campanha eleitoral, eu nunca digo uma palavra. O povo é soberano, e apenas direi: estude bem as propostas, reze e escolha em consciência! Depois, eu saio do problema e vou a uma ficção [um caso imaginário], porque não quero falar do problema concreto. Quando acontece que, em um país qualquer, existem dois, três, quatro candidatos que não são satisfatórios, isso significa que a vida política desse país talvez seja muito politizada, mas não tem muita cultura política."

Espaços pastorais

Caminhos nada idênticos e práticas pastorais não possíveis de ser sobrepostas. No que diz respeito aos temas do anúncio, a moral é segunda (não secundária), os "princípios inegociáveis" perdem centralidade, as práticas normativas cedem espaço ao acompanhamento e ao discernimento. Isso cria espaços de mediação para os políticos católicos, impede o retorno ao intransigentismo do século XIX, não sufoca o debate cultural e teológico, aceita a decisão democrática, investe nos processos pastorais e conserva o depósito e a dimensão crítica da fé.

Francisco não está interessado em guerras frontais de princípio: "Eu nunca compreendi a expressão 'valores inegociáveis'" (Corriere della Sera, 5 de março de 2014); "Não podemos insistir apenas nas questões ligadas (à moral). Eu não falei muito dessas coisas, e isso me foi criticado. Mas, quando se fala disso, é preciso falar em um contexto. O parecer da Igreja, aliás, é conhecido, e eu sou filho da Igreja" (La Civiltà Cattolica, 19 de setembro de 2013). Na Evangelii gaudium, ele lembra a hierarquia das verdades e a estende também para o âmbito da moral (nn. 34-39).

Mais do que de teoria de gênero, se deveria falar de estudos ou de teorias de gênero. O seu caminho é geralmente dividido em três etapas. A primeira é a pesquisa sobre a igualdade de gênero, com a reivindicação da igualdade entre masculino e feminino à descoberta da peculiaridade de ser mulher.

A segunda etapa é a construção do gênero: não é mais um fato da natureza, mas é construído pela sociedade e pela cultura. O gênero é feito, não herdado.

A terceira etapa é a desconstrução do gênero. Ser homem ou mulher deve ser deixado à livre determinação do indivíduo. A própria ideia de gênero deve ser anulada. Somos o que queremos ser.

Essa é a indicação fornecida por J. Butler, de acordo com a qual o indivíduo deve desfazer o gênero que lhe foi imposto pela sociedade, a fim de poder reinventá-lo como escolha pessoal. As possibilidades oferecidas pela cirurgia e pelos artifícios cibernéticos abririam o cenário pós-humano. Certamente pode-se usar o plural (teorias de gênero), mas é difícil negar como é amplamente compartilhada a conclusão de Nicla Vassallo: "A fêmea e o macho, a mulher e o homem não existem".

Em outras palavras, a corporeidade não tem nenhum papel. A complexidade daquilo que indicamos como sexualidade (identidade biológica, ou seja, corpo sexuado; identidade de gênero, percepção sexuada de si mesmos; papel de gênero, comportar-se como homem ou mulher; orientação sexual, modelo estável de atração por homens, ou por mulheres, ou por ambos), se não for conjugada no seu conjunto, pode inverter a lógica tradicional da heterossexualidade e tem consequências fortes sobre a família.

Perceber o desafio não significa homofobia (falta de respeito e de acolhida para com as pessoas), mas simplesmente não aceitar anular as diferenças e a sua base biológica.

Cultura de gênero, teoria fraca, sistema forte

Levando em conta que a teoria de gênero intercepta uma exigência de igualdade, respeito e autonomia pessoal não necessariamente negativos, a sua força de "ideologia" está em interpretar a multiplicação dos modelos familiares, a complexidade das filiações (heterônoma, barriga de aluguel, artificial etc.), o individualismo autonormativo, para além e para fora de todo quadro transcendente e de toda ordem natural. Ela se candidata à interpretação do pós-humano: superar a homologação da espécie, ou seja, a unicidade do projeto humano, para dar origem a uma multiformidade de sub-espécies humanas mais ou menos diferentes nas funções, nos comportamentos, nas vocações. Em um futuro em que o homem terá cada vez menos propriedades compartilhadas, a ponto de transformar a categoria "homem" em uma galáxia de categorias.

A sua força não é comparável com a reinterpretação geral do saber por parte do Iluminismo, nem com a mobilização histórica das massas das revoluções do século XX. Portanto, não está na sua dimensão teórica ou de concepção geral sobre a vida. Ela parece acolher e abranger mudanças que ocorrem em outros lugares. O gender encontra uma repentina compatibilidade na fraqueza de uma política "do imediato", que falsamente reconhece na sexualidade o último espaço para um jogo de possibilidades para o exercício da liberdade. Não compreendendo a contradição entre individualismo-niilismo manifestado com a função própria de um projeto coletivo e de uma visão partilhada do futuro.

A força da teoria de gênero, em última instância, está na funcionalidade em relação à cultura civil da globalização, àquilo que se poderia chamar, com Mauro Magatti, de capitalismo tecnoniilista. Ou seja, um modelo de acumulação econômica que, nesta fase histórica, faz com que o crescimento dependa cada vez mais diretamente da capacidade de inovação técnica e que, consequentemente, necessita de uma cultura niilista, isto é, não resistente, para dispor livremente de qualquer significado, de modo a não ter obstáculos de qualquer tipo para o seu pleno desdobramento.

Uma espiral niilista que necessariamente não tem o aspecto agressivo de um poder ameaçador, mas o aspecto sorridente de quem desmonta e diminui o patrimônio simbólico, sem nunca se encarregar de alimentá-lo. O desafio é muito mais amplo do que a teoria de gênero. À dimensão sociológica, somam-se o juízo histórico-civil e a defesa da política como saber e como práxis. E, não menos importante, a capacidade do cristianismo de atravessar os novos contextos com a transparência do Evangelho, sem ser prisioneiro da sua (invejável) história.

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